Já é de amplo conhecimento público que o Poder Judiciário, no Brasil, tornou-se uma espécie de balcão de reclamações, no qual muitas vezes são apresentadas queixas contra empresas sem que o consumidor tenha, anteriormente, procurado resolver seu problema diretamente com o alvo de sua reclamação. É comum, portanto, a judicialização de demandas que poderiam – e deveriam – ser objeto de tratativas prévias entre as partes, o que seria mais eficiente e menos custoso para todos.
 
Os prejuízos daí advindos para o Estado Brasileiro são expressivos: dados do relatório “Justiça em Números”, editado pelo Conselho Nacional de Justiça, indicam que no ano de 2017 as despesas totais do Poder Judiciário somaram mais R$ 90,8 bilhões, o que correspondeu a 1,4% do PIB brasileiro no período. Não obstante os esforços e a soma de recursos despendidos, 29,1 milhões novas ações ingressaram em nossos tribunais, apenas em 2017, e aquele ano terminou com 80,1 milhões de processos ainda em tramitação, sem uma solução definitiva. A título comparativo, em 2009, havia 60,7 milhões de processos em curso no Poder Judiciário, ou cerca de 31% a menos.
 
A despeito dos efetivos e louváveis esforços legislativos e institucionais empreendidos nos últimos anos – tais como a Lei de Arbitragem, a Lei de Mediação, o novo Código de Processo Civil e suas previsões acerca da conciliação e mediação, as iniciativas de empresas e de Tribunais para resolução extrajudicial de conflitos, dentre outros –, é fato que o volume de processos não para de crescer e o Poder Judiciário não tem conseguido reduzir o volume de demandas judiciais à espera de uma solução.
 
A contribuir decisivamente para esse quadro preocupante, não há dúvidas de que, em muitos casos, o ingresso de novas ações judiciais se dá desnecessariamente. Pelos mais variados motivos, diversos anseios da sociedade continuam a ser manifestados diretamente perante o Poder Judiciário, sem que os interessados se valham de outros caminhos prévios ou concomitantes, os quais teriam grandes chances de alcançar uma solução mais rápida e apta a atender aos interesses de ambas as partes.
 
Diante desse cenário, há tempos se vê a necessidade de que a sociedade civil una esforços para criar mecanismos e soluções extrajudiciais para os conflitos, com vistas a melhorar não somente a celeridade processual, mas, principalmente, a economia de recursos públicos. E o próprio Poder Judiciário, sensibilizado e ciente do tema, atento à sua função de atuar apenas como ultima ratio, tem sido um dos grandes impulsionadores de medidas para a busca de soluções extrajudiciais ou autocompositivas, especialmente no âmbito do direito do consumidor.
 
Muitos magistrados e tribunais têm reiteradamente reconhecido que o Poder Judiciário não pode servir como a primeira e única opção para resolução de conflitos, em um quadro de excessiva judicialização de todo e qualquer problema, por menor que seja. Pode-se mencionar a precisão das palavras do Desembargador CARLOS EDUARDO RICHINITTI, para quem “a intervenção do Estado para solução de contendas deve ser por exceção, e não por regra, até porque, em especial em uma sociedade marcada por contratações por adesão e massificadas, não há a menor possibilidade de uma resposta minimamente aceitável caso se continue no caminho atual, de se admitir que tudo pode e deve virar processo.”
 
É também interessante mencionar a decisão proferida pelo Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, não há muito tempo, quando afirmou que “a concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise”.
 
O raciocínio daquele culto jurista e ativo membro do Supremo Tribunal Federal pode – e deve – ser compreendido em sentido amplo: do mesmo modo que a ausência de tentativa de solução administrativa perante o INSS aponta para o desinteresse processual e para inadequação da propositura da ação judicial, a ausência de tentativa de autocomposição junto às empresas fornecedoras de bens e serviços de consumo atesta nada menos do que a desnecessidade da utilização da via judicial (CPC, art. 485, VI). Trata-se, na verdade, de uma interpretação ampliativa dos direitos do consumidor, eis que voltada a solucionar suas demandas previamente, de forma mais eficiente, sem a necessidade de se ajuizar uma demanda e obter, após um longo período de tramitação, uma decisão tardia e assaz custosa do Poder Judiciário.
 
É interessante observar, ainda, a Resolução GP 432017 do Tribunal de Justiça do Maranhão, que sabiamente recomenda a utilização de plataforma de mediação digital criada no âmbito daquele tribunal “nas ações judiciais em que for admissível a autocomposição, e que esta não tenha sido buscada na fase pré-processual” . Ou seja, ainda que uma demanda já tenha sido proposta, a solução pode ser simplesmente dar um passo atrás e aferir se o tema, de fato, merece a atenção e os custos de um processo judicial, ou se, ao contrário, é algo solucionável de plano, entre as próprias partes, de modo mais rápido e eficiente.
 
O que se observa, portanto, é que felizmente tem se tornado cada vez mais comum a adoção de uma visão moderna e contextualizada das normas e princípios que norteiam o direito constitucional de ação e a inafastabilidade da jurisdição, para que o exercício da jurisdição seja precedido da adoção de meios extrajudiciais consensuais de solução de disputas. Como se sabe, o direito de ação não é absoluto, de maneira que o seu exercício se sujeita a determinadas condições, as quais visam, justamente, assegurar a resposta eficaz do aparelho estatal. E essa resposta eficaz, como visto acima, vem sendo dificultada pelo ingresso desnecessário de novas ações em nossos tribunais.
 
Nada mais adequado, pois, do que condicionar a intervenção do Poder Judiciário nas relações entre particulares à verificação de que, de fato, tal intervenção é mesmo imprescindível, o que só é possível se, antes, houver a busca de soluções extrajudiciais ou autocompositivas dos litígios. Esse enfoque, ademais, traz maior valor e reconhecimento para o trabalho do juiz togado, o qual poderá se debruçar, com maior profundidade, apenas sobre os temas que comprovadamente não puderam ser solucionados em outras esferas.
 
Para viabilizar essa autocomposição, é de se notar a importante iniciativa do Governo Federal por meio da plataforma “Consumidor.Gov”, que permite ao consumidor registrar suas reclamações diretamente perante inúmeros fornecedores já cadastrados, oferecendo-lhes a oportunidade de obter uma solução amigável, rápida e eficaz dos problemas apresentados. O “Consumidor.Gov”, aliás, tem demonstrado a sua eficácia e chamado a atenção de juízes, os quais, em diversos casos, vêm determinando a suspensão de processos para que o consumidor registre a sua reclamação naquela plataforma e tente obter a solução autocompositiva de sua queixa, antes de seguir com a ação judicial.
 
Exemplo disso é a decisão proferida no processo de nº 0301833-12.2018.8.24.0064, movido por um consumidor catarinense contra uma empresa, em que o juiz determinou, já de início, o sobrestamento do feito por 30 dias, “para que a parte autora apresente, junto à ferramenta gratuita disponibilizada no site do TJSC ou na página denominada ‘http://www.consumidor.gov.br’, os fatos narrados na inicial e o registro de seus pedidos em relação à parte ré, sob pena de, em não assim fazendo, se considerar a ausência de pretensão resistida e o feito ser extinto por falta de interesse processual (NCPC, art. 485, VI).”
 
É com bons olhos, portanto, que se nota, cada vez mais, o reconhecimento pelos magistrados de que o exercício da tentativa de autocomposição em ambiente externo ao Poder Judiciário não nega vigência ao direito de ação e ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, consagrado no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal. Aplica-se o direito, assim, de forma mais próxima da realidade de nossos tribunais e de forma a assegurar, àqueles que realmente necessitam da intervenção estatal, a obtenção de uma resposta mais célere e eficaz.
 
Ademais, as decisões favoráveis à necessidade de prévia tentativa de autocomposição em nada prejudicam a efetiva defesa em juízo dos direitos do consumidor, caso necessária. Ao contrário, trata-se de iniciativa que fortalece e empodera o consumidor, que poderá, diante da contraparte, buscar solução muito mais eficiente, rápida e benéfica para a sociedade como um todo, sob todos os aspectos, até mesmo do ponto de vista da sustentabilidade ambiental. E, evidentemente, caso não seja alcançada a autocomposição, o consumidor poderá, então, recorrer à via judicial, tendo, então, como demonstrar a sua real necessidade.
 
É evidente, portanto, que a solução extrajudicial ou autocompositiva de conflitos deve ser priorizada. O sucesso de tal iniciativa é essencial para que se alivie o peso das pilhas de processos que se acumulam por nossos tribunais, para que sejam otimizados os recursos dispostos ao funcionamento da máquina judiciária e para que, enfim, o Poder Judiciário possa, de fato, atuar de forma mais célere e eficaz em prol daqueles que realmente dele necessitam – e não daqueles que, por um individualismo exacerbado, o buscam precipitada e desnecessariamente.
 
*Luiz Gustavo De Oliveira Ramos – Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP (1993). Mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC (2010). Pós-Graduado em Administração de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo – FGV/SP (2004). Participou do “Program of Instruction for Lawyers” promovido pela Harvard Law School (2002).
 
*Michel Schifino Salomão – Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP (2007). Pós-Graduado em Processo Civil e em Economia Financeira pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo – FGV/SP (2012/2015).