231. Na medida em que o encadeamento das alienações e onerações imobiliárias, secundum tabulas, deva ser formalmente rigorosa, entende-se que a ruptura (ainda que apenas formal) do trato consecutivo −meio de expressão técnica da legitimação registral e de controle tabular da licitude dos atos de disposição− configure ou não uma ilicitude, sempre imporá alguma sorte de retificação.
 
Isto resulta do próprio caráter do registro, que, sistema jurídico-formal, deve, o menos possível, pender do concurso de correlatos materiais para a asseguração de direitos.  Assim, a retificação do registro −em caso de ruptura do trato consecutivo− é um requisito formal, porque a rígida observância da consecutividade, como ficou dito, é a maneira expressiva com que se formaliza e alicerça a legitimação registral (ou, quando o caso, a fé pública registrária).
 
Ora, a consecutividade registral implica, positivamente, de comum (ou seja, com ressalva do trato abreviado), o prévio registro do título jurídico de que resulte o ius disponendi atual, e, negativamente, acarreta a denegação do registro ou averbamento dos títulos em que o outorgante não seja o legitimado tabular.
 
Há casos, no entanto, em que se rompe o trato consecutivo −isto quer com fundamento jurídico (p.ex., mediante a usucapião ou a desapropriação), quer apenas factualmente. E, para estes casos, impõe-se o reatamento ou recobro da consecutividade, por meio de uma retificação registral.
 
232. Abdicando de discutir aqui sobre o caráter originário da usucapião (o que muitos romanistas avessam), certo é que ela e a desapropriação acarretam, com seus registros, que se interrompa o trato consecutivo (ressalvada a circunstância de que a usucapião confirmatória pode não levar a este resultado, à evidência). Essa interrupção, entretanto, por ser conformada à lei, não impõe retificação posterior alguma; ao inaugurar-se com os registros da usucapião e da desapropriação (pense-se aqui em bens dominicais) uma nova linha filiatória do imóvel, traduz-se em forma (in tabulā) o excepcional concurso extrabular de direitos com transcendência real. Pode mesmo dizer-se que o registro da usucapião é retificador, na medida em que corrige um status jurídico afligido por prescrição extintiva, rendendo ensejo a uma demarcada concorrência da “visibilidade material” extrarregistrária (mais uma vez: o sistema de registro não é a única instituição dirigida à ordem social e ao bem comum).
 
233. A solução há de ser diversa, porém, quando se cuida da ilicitude factual do rompimento do trato consecutivo (p.ex., um imóvel sob a titularidade registral de Tício dispõe-se por Mélvio, que o vende a Semprônia, inscrevendo-se o título dispositivo por erro cartorário). Instala-se, com isto, em lugar do o trato consecutivo o tractus per saltum, em maltrato da cadeia de titularidades que, formalmente, estadeia a legitimação registral (ou, sendo o caso, a fé pública registrária).
 
Parece logo avistável o cabimento de cancelar-se a inscrição ilícita, por nulidade absoluta (ou de pleno direito).
 
No atual quadro normativo brasileiro, não há exigência de pretensão específica diretamente voltada à declaração deste nullum (embora não se exclua a trilha contenciosa autônoma: arts. 212, p.ún., e 216, da Lei n. 6015/1973, de 31-12). Admite-se, porém, o reconhecimento judicial da nulidade seja em incidente de algum processo, seja em via de jurisdição administrativa, observados, em todos os casos, os direitos de defesa e de contradição (vidē art. 214 da Lei n. 6.015, caput e § 1º , dispositivo este último acrescentado com a Lei n. 10.931, de 2-8-2004, art. 59, que assim se acomodou ao previsto no inc. LV do art. 5º da Constituição federal de 1988).
 
233. Nada estorva, porém, que medeie consentimento dos interessados e, em direta atuação extrajudicial, possam eles postular e obter a retificação dos assentos errôneos.
 
Para o direito brasileiro, mediante “documento hábil” (vidē o inc. III do art. 250 da Lei n. 6.015, de 1973) pode requerer-se o cancelamento de “qualquer dos atos do registro” (caput do art. 250), e esse referido “documento” pode resumir-se à manifestação de consentimento de todos os interessados, a saber: todos os que possam ser afetados pelo reatamento do trato consecutivo (essa solução retificadora diretamente dirigida ao registro e que não exige instrumentação pública afasta-se da exigência de elaboração de acta pública de notoriedad prevista na normativa espanhola).
 
Até aqui se cuida do cancelamento de registros atritados com a consecutividade, isto é, de uma retificação de caráter negativo. Mas poderia pensar-se em uma retificação apenas positiva?
 
234. O cancelamento registral, segundo a normativa brasileira de regência, no Brasil, admite que sua inscrição se perfaça “a requerimento unânime das partes” (inc. II do art. 250 da Lei n. 6.015/1973), “a requerimento do interessado, instruído com documento hábil” (inc. III do art. 250) e em “cumprimento de decisão judicial transitada em julgado” (inc. I do art. 250).
 
Assim, este cancelamento é uma espécie retificadora favorecida, nos limites da Lei n. 6.015, em relação às demais, bastando considerar, a propósito, a tipologia das retificações positivas ou mistas que, segundo o disposto no art. 213 da Lei n. 6.015, de 1973, são suscetíveis de requerimento do interessado.
 
Todavia, prevendo o Código civil brasileiro, mais amplamente, em seu art. 1.247: “Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule”, é controverso que as hipóteses alistadas no inciso I do art. 213 da Lei n. 6.015/1973 sejam taxativas [(i) omissão ou erro cometido na transposição de qualquer elemento do título; (ii)  indicação ou atualização de confrontação; (iii) alteração de denominação de logradouro público, comprovada por documento oficial; (iv) retificação que vise à indicação de rumos, ângulos de deflexão ou inserção de coordenadas georreferenciadas, em que não haja alteração das medidas perimetrais; (v) alteração ou inserção que resulte de mero cálculo matemático feito a partir das medidas perimetrais constantes do registro; (vi) reprodução de descrição de linha divisória de imóvel confrontante que já tenha sido objeto de retificação; (vii) inserção ou modificação dos dados de qualificação pessoal das partes, comprovada por documentos oficiais, ou mediante despacho judicial quando houver necessidade de produção de outras provas].
 
235. Tomemos duas ilustrações.
 
Primeira: este foi um caso efetivamente ocorrido numa Comarca litorânea de São Paulo. Cinco registros estavam lançados em sequência, quanto a um só lote, com aquisições todas provenientes de um primeiro titular inscrito (assim, R.1: Tício vende a Semprônia; R.2: Tício vende a Mélvio; R.3: Tício vende a Caius; R.4: Tício vende a Paulus; R.5: Tício vende a Petrus). Todos os interessados apresentaram-se em cartório e, em conjunto, reconheceram que o registro verdadeiramente correto era o constante da última inscrição (note-se que nem sempre a mecânica do prior tempore solve bem os direitos em conflito). Reatou-se o trato consecutivo por meio de uma averbação canceladora dos quatro primeiros registros.
 
Segunda: Tício é o titular inscrito relativamente ao domínio de determinado imóvel. Celebra com Mélvio um ajuste de venda e compra desse imóvel. Mélvio, por sua vez, pactua outra venda do prédio em favor de Semprônia. Ambas as escrituras são levadas ao cartório de registro ao mesmo tempo, mas, ao inscrevê-las, por engano, registra-se primeiro a aquisição de Semprônia e, depois, a de Mélvio (suponha-se que o protocolo observara a ordem consecutiva das aquisições).
 
Será a solução mais econômica a de cancelar os dois registros e, após o averbamento negativo, proceder a novas inscrições positivas? Ou bastaria uma averbação que referisse a mudança de ordem dos registros anteriores, operando uma retificação positiva? Eis uma questão controversa, a que pareceria mais razoável adotar a praxis menos dispendiosa.