No sistema jurídico brasileiro, verifica-se possível a alteração do regime de bens entre os cônjuges, mesmo após a realização do casamento.
Tal permissivo, está contido no §2º do artigo nº 1.639 do Código Civil, o qual regra:
É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.
No mesmo contexto, o novel Código de Processo Civil, em seu art. Nº 734, também regulou:
A alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros.
Necessariamente, há a obrigatoriedade de intervenção judicial, muito embora se trate de procedimento de jurisdição voluntária, já que não há pretensão resistida dos cônjuges, ora assim, não se trata de litígio.
Legislativamente, projeto de lei que tramita no congresso nacional (PLS 470/2013) denominado por ESTATUTO DAS FAMÍLIAS, prevê a possibilidade de alteração extrajudicial do regime de bens, por meio da lavratura de escritura pública.
Assim prescreve a letra do projeto do estatuto familiar:
SEÇÃO IV DA ALTERAÇÃO DO REGIME DE BENS
Art. 286. A alteração do regime dos bens pode ocorrer consensualmente, por escritura pública firmada por ambos os cônjuges. (grifei)
Art. 287. A alteração deve ser averbada na certidão de casamento e no registro de imóveis dos bens do casal.
Art. 288. Caso os cônjuges, ou apenas um deles, seja empresário, a alteração deve ser averbada na Junta Comercial e no registro público de empresas mercantis.
Art. 289. A alteração não tem efeito retroativo e produz efeito perante terceiros após a averbação no registro imobiliário e demais registros relativos a outros bens.
O projeto do Estatuto das Famílias teve como última movimentação legislativa, aos 24/09/2015, o requerimento de realização de audiências públicas, em número de duas ou mais, com a justificativa de que para o estabelecimento de normas de conduta de orientação e formação de famílias, de que para arquitetar um paradigma para os relacionamentos familiares, necessário se faz a formação de convicção através das diversas opiniões no seio da sociedade. Assim, o projeto que alcança a alteração administrativa do regime de bens, encontra-se parado nos moldes legislativos nacionais.
Na tentativa de alcançar o objetivo da desjudicialização dos atos da jurisdição voluntária, de encontro com a Emenda Constitucional nº 45/2003, foi proposto novo projeto de lei de autoria do senado federal, que tomou o número 69/2016, o qual objetiva a inserção do art. 1.639-A na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), revogando o § 2º do art. 1.639 do Código Civil e o art. 734 da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Código de Processo Civil) modificando assim o título da Seção IV do Capítulo XV do Código de Processo Civil, para então, dispor sobre a alteração do regime de bens no casamento por meio de escritura pública perante o tabelião de notas.
A justificativa do senador, autor do projeto, é a justa simplificação do procedimento, ainda condicionado ao exame do Poder Judiciário.
No quase primeiro-anista, código processual civil, em vigor, é possível identificar o prestígio aos atos notariais tais como, a utilização da escritura pública para a demarcação e divisão de terras particulares (art. 571); nos procedimentos de inventário e partilha (art. 610, §§ 1º e 2º); na usucapião extrajudicial (art. 1.071) e na homologação de penhor legal (art. 703, § 2º), esses dois últimos, já abordados por mim, em outros artigos veiculados no sítio do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal.
O legislador, também referendou a atividade notarial, quando da previsão do divórcio, separação e da extinção de união estável (art. 733).
Malgrado a todos esses avanços, no Brasil, a alteração do regime patrimonial do casal, continua a ser objeto de apreciação judicial, diferentemente da legislação de outros países, tal como na Itália que prevê que os cônjuges podem escolher, a qualquer momento, a mudança do regime matrimonial estabelecido pela celebração do casamento e para fazê-lo, devem recorrer a um notário, que através de um ato público, colhe a vontade do casal, lavra a escritura de alteração e faz a comunicação do novo regime ao registro civil em que se encontra lavrado o assento de casamento em seu estado original.
Tal previsão está adstrita no art. 163 do código civil italiano:
Art. 163. Modifica delle convenzioni.
Le modifiche delle convenzioni matrimoniali, anteriori o successive al matrimonio, non hanno effetto se l'atto pubblico non è stipulato col consenso di tutte le persone che sono state parti nelle convenzioni medesime, o dei loro eredi. (grifei)
O ordenamento brasileiro, além da judicialização do ato, prevê ainda a exigência de que o casal tenha que motivar o pedido de alteração do regime matrimonial de bens (art. 734 NCPC) e para sua concessão, o juiz, deverá apurar a procedência das razões invocadas.
O PL 69/2016, em trâmite perante o Congresso Nacional, (último andamento 14/03/2016), esclarece que a alteração do regime de bens do casamento será feita por meio de requerimento assinado conjuntamente pelos cônjuges dirigido ao tabelião de notas, que, atendidos os requisitos legais, lavrará a escritura pública independentemente da motivação do pedido.
Na Espanha, onde temos, talvez, o notariado mais avançado do mundo, também é possível a modificação extrajudicial do regime de bens.
O artigo 1.317 do código civil espanhol, leciona que a alteração do regime de bens durante o casamento não prejudicará os direitos adquiridos por terceiros.
Artículo 1317
La modificación del régimen económico matrimonial realizada durante el matrimonio no perjudicará en ningún caso los derechos ya adquiridos por terceros.
Assim também prevê o art. 1639-A do PL 69/2016:
Art. 1.639-A. É admissível alteração do regime de bens, mediante escritura pública, ressalvados os direitos de terceiros. (grifei)
Na França, a alteração do regime de bens é feita por instrumento público lavrado por um notário, porém, depende de homologação judicial. Trata-se de procedimento bi-partido, qual seja, lavrado por notário e homologado pelo judiciário. O art. 1396 do Código Civil francês, esclarece a forma notarial:
Tous changements et contre-lettres, même revêtus des formes prescrites par l'article précédent, seront sans effet à l'égard des tiers, s'ils n'ont été rédigés à la suite de la minute du contrat de mariage; et le notaire ne pourra délivrer ni grosses ni expéditions du contrat de mariage sans transcrire à la suite le changement ou la contre-lettre. (grifei)
No projeto brasileiro (PL 69/2016), a previsão é a de que os requerentes devem ser assistidos por advogado comum ou advogados separados, cuja qualificação e assinatura constarão da petição e do ato notarial. Estranha é a redação da possibilidade do asseguramento por advogados separados, já que a pretensão do casal é a manutenção do casamento com outro regime patrimonial.
Objetivando a simplificação e o despapelório, há de se repensar a obrigatoriedade do advogado nesse procedimento, se, no pacto antenupcial a esse não se obriga.
Por certo, nos casos em que haja a partilha prévia quando da alteração do regime, aí sim, necessária a intervenção do patrono, como já se submetem os atos de separação e divórcio extrajudiciais.
O parágrafo 11 do art. 1.639-A CC (objeto do projeto de lei), esclarece que a alteração do regime de bens pode ter efeitos retroativos ou não, a depender da vontade dos cônjuges, ressalvado o direito de terceiros. Caberá ao ato que altera o regime patrimonial (escritura) o estabelecimento se a alteração terá efeitos ex nunc, ou seja da alteração em diante, ou esta produzirá efeitos ex tunc, alcançando patrimônio já existente. Isso é de extrema importância quando se refere a bens imóveis e os efeitos registrais, tal como a vênia conjugal (art. 1647, II CC) entre outras situações periféricas atinentes ao assunto.
Nas possibilidades de alteração do regime, necessário ainda verificar se há atriubuição exclusiva de um determinado bem imóvel à apenas um dos cônjuges, situação essa, em que obrigatoriamente haverá o registro prévio da partilha, e não somente a averbação da alteração do contrato matrimonial. Em todos os casos, o averbamento no registro civil das pessoas naturais é obrigatório.
Há situações em que durante o casamento se dá o desaparecimento da causa suspensiva (aquelas do art. 1.523 do Código Civil) razão aquela que ensejou a obrigatoriedade legal do regime da separação de bens no momento em que se contrai o matrimônio.
Sendo assim, conforme já elucidado no Enunciado nº 262 aprovado na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça, uma vez superada a causa que impôs o regime da separação legal, nada impede a alteração do regime de bens:
262 – Arts. 1.641 e 1.639: A obrigatoriedade da separação de bens, nas hipóteses previstas nos incs. I e III do art. 1.641 do Código Civil, não impede a alteração do regime, desde que superada a causa que o impôs.
O PL 69/2016 também prevê essa possibilidade, se, em se tratando de cônjuges casados sob o regime de separação obrigatória de bens, o tabelião de notas poderá lavrar a escritura de alteração de regime de bens se provada a superação das causas que o ensejaram.
Neste caso, o tabelião deverá publicar edital eletrônico pelo período de trinta dias que devem anteceder a lavratura da escritura de alteração. Eventuais terceiros interessados poderão opor as causas suspensivas que obstam a alteração do regime da separação de bens, e neste caso, o tabelião dará ciência do fato aos requerentes, para que indiquem, em três dias, as provas que pretendam produzir, e remeterá o procedimento ao juízo corregedor, tornando a pretensão litigiosa, e assim, necessariamente judicial.
Com essa análise, se aprovado dito projeto de lei e inserida no ordenamento jurídico brasileiro, se privilegiará a autonomia da vontade e da intimidade do casal no planejamento familiar (artigos 5º, inciso X, e 226, § 7º, da Constituição Federal) e se cumprirá o que a própria legislação infraconstitucional prescreve, que é, a proibição a qualquer pessoa de direito público ou privado, na intervenção ou inferência na comunhão de vida instituída pela família (art. 1513 CC), além de se homogenizar a norma nacional à legislações alienígenas que favorecem a qualidade técnica do notariado.
* O autor é Tabelião de Notas e Protesto Substituto em Itapevi (SP), professor tutor da pós-graduação em Direito Notarial e Registral do Damásio, professor na pós graduação em Direito Imobiliário dos cursos Proordem, Êxito e Escola Superior de Direito em São Paulo, São José dos Campos, Santos, Campinas, Ribeirão Preto e Goiânia (GO); professor na pós-graduação em Direito Notarial e Registral da UNIOES em Recife (PE); Colunista do Colégio Notarial do Brasil.