UNIÃO ESTÁVEL – REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA – Segundo a jurisprudência do E. STJ, aplica-se à união estável o art. 1641, II, do CC – É a idade dos conviventes no início da convivência que importa para eventual imposição do regime de separação de bens, sendo irrelevante o momento em que eventualmente venham a formalizar a união, por meio de escritura pública – Salvo raras exceções, não cabe ao Tabelião ou ao Registrador colher provas da veracidade das idades que os conviventes declararem por ocasião da escritura pública de união estável – Recurso desprovido.
CGJSP > PROCESSO: 1000633-29.2016.8.26.0100 LOCALIDADE: São Paulo
DATA JULGAMENTO: 13/10/2016 DATA DJ: 21/11/2016
Relator: Manoel de Queiroz Pereira Calças
Legislação:
- CC2002 – Código Civil de 2002 | 10.406/2002, ART: 1641, INC: II
íntegra:
Processo nº 1000633-29.2016.8.26.0100 – Parecer 220/2016-E
UNIÃO ESTÁVEL – REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA – Segundo a jurisprudência do E. STJ, aplica-se à união estável o art. 1641, II, do CC – É a idade dos conviventes no início da convivência que importa para eventual imposição do regime de separação de bens, sendo irrelevante o momento em que eventualmente venham a formalizar a união, por meio de escritura pública – Salvo raras exceções, não cabe ao Tabelião ou ao Registrador colher provas da veracidade das idades que os conviventes declararem por ocasião da escritura pública de união estável – Recurso desprovido.
Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,
Cuida-se de recurso interposto pelo Ministério Público, em face de r. sentença que determinou registro de escritura pública de união estável, prevendo regime de comunhão parcial de bens, embora lavrada quando o convivente já contava mais de setenta anos. Sustenta o recorrente que a idade a determinar a aplicação do art. 1641, II, do CC, impondo regime de separação de bens, é aquela da época da lavratura da escritura, ainda que os conviventes declarem que a união teve início ao tempo em que nenhum dos dois havia completado setenta anos, como forma de evitar que o instrumento passe a servir de subterfúgio a quem pretenda fraudar terceiros credores.
Em primeiro grau, previamente à sentença, o Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo e a ARPEN-SP manifestaram-se pela validade da escritura e pela regularidade do registro pretendido.
A Procuradoria de Justiça opinou pelo provimento do recurso.
É o relatório.
Preambularmente, cumpre rememorar a existência de acirrado debate acerca da constitucionalidade do art. 1641, II, do Código Civil. Não faltam doutrinadores a sustentar que a norma viola princípios como os da isonomia, da intimidade e da dignidade da pessoa humana:
Com os magistérios de Milton Paulo de Carvalho Filho:
“Contudo, a jurisprudência e a doutrina observam que o referido dispositivo (art. 1.641, II) fere os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica e da intimidade, bem como a garantia do justo processo da lei, esse tomado na acepção substantiva, firmando entendimento no sentido de que a norma contida no artigo em exame, que repete aquela contida no art. 258, parágrafo único, II, do CC anterior, não foi recepcionado pela CR. Isso porque o nubente ou o companheiro com 70 anos ou mais é plenamente capaz para o exercício de todos os atos da vida civil e para a livre disposição de seus bens. Não há justificativa a amparar o intuito da disposição legal de reduzir a autonomia do cônjuge ou do companheiro, em evidente contrariedade à lei Maior (veja-se a propósito o brilhante acórdão proferido nos autos da Ap. Cível n. 007.512-4/2-00, da 2ª Câm. Do TJSP, em que foi relator o atual Ministro do STF Cezar Peluso, então desembargador daquele egrégio tribunal).” (Código Civil Comentado, São Paulo: Manole, 10ª ed., 2016, p. 1944)
Não destoam do entendimento aludido os ensinamentos de Maria Berenice Dias:
“Das várias previsões que visam negar efeitos de ordem patrimonial ao casamento, a mais desarrazoada é a imposta aos nubentes maiores de 70 anos (CC 1.641 II), em flagrante afronta ao Estatuto do Idoso. A limitação da vontade, em razão da idade, longe de se constituir em uma precaução (norma protetiva), se constituiu em verdadeira sanção. Somente quando o casamento é antecedido de união estável não vigora a odiosa restrição, podendo os noivos optar pelo regime de bens que desejarem.
Trata-se de presunção juris et de jure de total incapacidade mental. De forma aleatória e sem buscar sequer algum subsídio probatório, o legislador limita a capacidade de alguém exclusivamente para um único fim: subtrair a liberdade de escolher o regime de bens quando do casamento. A imposição da incomunicabilidade é absoluta, não estando prevista nenhuma possibilidade de ser afastada a condenação legal.
Nas demais hipóteses em que a lei impõe esse regime de bens, ao menos existem justificativas de ordem patrimonial. Consegue-se identificar a tentativa de proteger o interesse de alguém (CC 1.641 I). Além disso, a restrição é reversível. Pode o juiz excluir dita apenação (CC 1.523 parágrafo único). Essa chance não é dada aos noivos idosos. Mesmo que provem a sinceridade do seu amor, sua higidez mental ou que sequer têm família a quem deixar seus bens. Não há opção. A lei é implacável. Essa restrição não existe na união estável. Mas como a limitação acabava tornando mais vantajosa a união informal, passou a jurisprudência a impor o regime da separação também à união estável. Surpreendentemente é feita interpretação analógica para limitar direitos.” (Manual de Direito das Famílias, São Paulo: Revista dos Tribunais, 11ª ed., 2016, p. 254/255)
Ainda que se a tome por constitucional, surge outra discussão de relevo, relacionada à aplicabilidade da referida norma à união estável, por analogia. Ainda com Maria Berenice Dias:
“Havia uma circunstância que talvez fizesse a união estável mais vantajosa do que o casamento: quando um, ou ambos, têm mais de 70 anos. Para quem casar depois dessa idade, o casamento não gera efeitos patrimoniais. É o que diz a lei (CC 1.641, II), que impõe o regime da separação obrigatória de bens. Como essa limitação não existe na união estável, não cabe interpretação analógica para restringir direitos. No entanto, o STJ estende a limitação também à união estável.” (Manual de Direito das Famílias, São Paulo: Revista dos Tribunais, 11ª ed., 2016, p. 254/255)
Já para Milton Paulo de Carvalho Filho:
“O inciso II do art. 1641 prevê a obrigatoriedade do regime da separação de bens às pessoas com 70 anos ou mais que contraírem matrimônio. O art. 1723 não faz referência à idade dos companheiros nem, tampouco, o artigo ora comentado ou qualquer outro dispositivo legal, estabelece limite máximo de idade para a adoção do regime de bens pelos companheiros. Portanto, este inciso também não tem aplicação à união estável.” (Código Civil Comentado, São Paulo: Manole, 10ª ed., 2016, p. 1944)
Tais teses, ao menos por ora, não comportaram acolhida das Cortes brasileiras, que têm decidido pela constitucionalidade do art. 1641, II, da Lei Civil, bem como por sua incidência às hipóteses de união estável. De rigor, então, analisar em qual momento a idade dos conviventes deve ser considerada, para fins de eventual imposição do regime de separação de bens.
Como se nota do v. acórdão colacionado a fls. 13/28, o E. Superior Tribunal de Justiça reiterou ser o início da convivência, com os requisitos elencados no art. 1723 do Código Civil, o marco a determinar o regime de bens entre os conviventes, ainda que, posteriormente, lavrem escritura pública de união estável.
“Nessa toada, verifica-se que, no caso, por ocasião do início da união estável, ou seja, aos 2/11/1999, o ex-companheiro C.G.G. não contava com sessenta anos. Tinha bem menos, 54 anos, de modo que, à luz da orientação jurisprudencial citada, não incidia a imposição do regime da separação obrigatória de bens à sua união estável.” (Recurso Especial 1.383.624/MG, Relator: Ministro Moura Ribeiro, DJ 12/6/15)
Aquela Corte já havia prolatado decisões outras que apontavam para o mesmo Norte:
“É obrigatório o regime de separação legal de bens na união estável quando um dos companheiros, no início da relação, conta com mais de sessenta anos, à luz da redação originária do art. 1.641, II, do Código Civil, a fim de realizar a isonomia no sistema, evitando-se prestigiar a união estável no lugar do casamento.” (REsp 1403419 / MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJE 14/11/2014; grifos não constam do original)
“Devem ser estendidas, aos companheiros, as mesmas limitações previstas para o casamento, no caso de um dos conviventes já contar com mais de sessenta anos à época do início do relacionamento, tendo em vista a impossibilidade de se prestigiar a união estável em detrimento do casamento.” (RESP 1.369.860, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 19/8/2014; grifos não constam do original)
Sedimentado, ainda, que o contrato de convivência pode ser firmado a qualquer tempo, disciplinando efeitos de situação fática que lhe será preexistente. Pertinentes, ainda uma vez, as palavras de Maria Berenice Dias:
“No entanto, há a possibilidade de os conviventes, a qualquer tempo (antes, durante, ou mesmo depois de dissolvida a união), regularem da forma que lhes aprouver as questões patrimoniais, agregando, inclusive, efeito retroativo às deliberações.” (Manual de Direito das Famílias, São Paulo: Revista dos Tribunais, 11ª ed., 2016, p. 255/256)
Aliás, será raro que o documento marque o início da união estável. Deveras, a iniciativa de elaborar contrato surgirá, no mais das vezes, quando a convivência já se tiver tornado pública, contínua, duradoura e com o fim de constituir família. Nos moldes da orientação do E. STJ:
“A união estável, como situação de fato não se sujeita a nenhuma solenidade. Normalmente, concretizar-se-á com o decorrer do tempo, pois não há como saber previamente se ela será duradoura e estável. Dessa forma, eventual contrato de convivência pode ser formalizado a qualquer momento, seja na sua constância seja previamente ao seu início. Isso se justifica, pois, como não se submetem às solenidades e rigores do casamento, os conviventes possuem maior liberdade para decidir o momento em que vão celebrar o contrato. Além disso, o que não é proibido ou contrário à lei, presume-se permitido.” (Recurso Especial 1.383.624/MG, Relator: Ministro Moura Ribeiro, DJ 12/6/15)
Neste passo, cumpre observar ser inexigível do Tabelião ou do Registrador que colham provas para confirmar o momento em que a convivência teve início. Valerá, para tais fins, a data declarada pelos próprios conviventes, ressalvadas situações absolutamente excepcionais, em que o uso da união estável como meio de fraudar terceiros esteja às escâncaras.
De outro bordo, para casamentos precedidos de união estável entre os nubentes, não incidirá a limitação do art. 1641, II, da Lei Civil, se, ao tempo do início da convivência, nenhum dos conviventes tivesse completado 70 anos, ainda que algum deles tenha ultrapassado a idade legal quando do casamento.
“Se tivesse sido, desde logo, celebrado o casamento, quando iniciado o relacionamento entre as partes, o qual perdurou, no total, por mais de 30 anos, não haveria a obrigatoriedade da adoção do regime da separação obrigatória de bens, pois o de cujus ainda não completara 60 anos de idade.
Mesmo não sendo expresso, naquela época (1978), o princípio segundo o qual a Lei deverá reconhecer as uniões estáveis, fomentando sua conversão em casamento (art. 226, §3º, da CF), não havia – e não há – sentido em se admitir que o matrimônio do de cujus e da recorrida tenha implicado, para eles, restrição de direitos, ao invés de ampliar proteções.” (REsp 1254252 / SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 29/4/14)
“O reconhecimento da existência de união estável anterior ao casamento é suficiente para afastar a norma, contida no CC/16, que ordenava a adoção do regime da separação obrigatória de bens nos casamentos em que o noivo contasse com mais de sessenta, ou a noiva com mais de cinquenta anos de idade, à época da celebração. As idades, nessa situação, são consideradas reportando-se ao início da união estável, não ao casamento.” (REsp 918643 / RS, Rel. Min. Massami Uyeda, DJ 13/5/11)
Se, nas hipóteses de casamento precedido de união estável, é a idade dos nubentes ao tempo do começo da convivência que deve ser verificada para fins do art. 1641, II, do CC, igualmente haverá de ser a idade dos conviventes quando do início da convivência o dado de relevo para análise de eventual obrigatoriedade do regime de separação de bens, pouco importando a data de formalização da união estável, por meio de escritura pública.
Frise-se, ademais, que a escritura pública de união estável não vincula terceiros. Aliás, tampouco o faz a coisa julgada da sentença que declare existência e data de início da união estável, quando dada apenas entre os conviventes, por conta de seus limites subjetivos. Quer na hipótese de escritura pública, quer na hipótese de sentença que declare existência e termo inicial da união estável, eventuais prejudicados seguirão podendo mover demanda judicial em face dos conviventes, contestando a data apontada como a de começo da união.
Em síntese, na situação versada nos presentes autos, é de se admitir, como data de início da convivência, 15/10/12, época em que o convivente contava 68 anos, escapando, pois, do regime de separação obrigatória de bens.
Aliás, a intelecção divulgada pelo aresto de fls. 13/28, aplicada à situação destes autos, vai além da possibilidade de adoção do regime de comunhão parcial: proíbe a adoção do regime de separação de bens. Com efeito, definiu o E. STJ que a escritura pública de união estável lavrada depois do início da convivência não poderá alterar o regime de bens, que será aquele legalmente previsto ao tempo do início da convivência, conforme as características dos conviventes.
Sobremais, como forma de equiparar a união estável ao casamento (art. 1639, §2º, da Lei Civil), a Corte Superior fixou que somente por decisão judicial o regime de bens vigente entre os conviventes poderá ser alterado e esvaziou a eficácia da cláusula de separação de bens, estipulada entre os conviventes com o intuito de modificar o regime legal da comunhão parcial.
“O dispositivo legal autoriza que os conviventes formalizem suas relações patrimoniais e pessoais por meio de contrato e que somente na ausência dele aplicar-se-á, no que couber, o regime de comunhão parcial. Numa palavra: enquanto não houver a formalização da união estável, vigora o regime da comunhão parcial, no que couber.
O contrato de convivência, no entanto, não pode conceder mais benefícios à união estável do que ao casamento, pois o legislador constitucional, não obstante reconhecer os dois institutos como entidade familiar e lhes conferir proteção, não os colocou no mesmo patamar, pois expressamente dispôs que a lei facilitará a conversão daquele neste (§ 3º do art. 226 da CF).
Nessa linha de pensamento, como no casamento o regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento (§ 1º do art. 1.639 do CC/02) e a sua modificação somente é permitida mediante autorização judicial requerida por ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvado o direito de terceiros (§ 3º do art. 1.639 do CC/02), não vejo como o contrato de convivência poderia reconhecer uma situação que o legislador, para o casamento, prevê a intervenção do Judiciário.
É a situação dos autos, pois durante oito anos de convivência e diante da ausência de contrato presume-se que vigia entre o casal o regime da comunhão parcial de bens. Após, com a superveniência do ajuste, modificou-se o regime para o da separação total de bens e lhe conferiu efeitos retroativos, como se o outro jamais tivesse existido e produzido efeitos jurídicos. Admitir essa situação seria conferir, sem dúvida, mais benefícios à união estável do que ao matrimônio civil, bem como teria o potencial de causar prejuízo a direito de terceiros que porventura tivessem contratado com eles. Essa pode ter sido a vontade do legislador quando produziu a norma em análise.” (Recurso Especial 1.383.624/MG, Relator: Ministro Moura Ribeiro, DJ 12/6/15)
Desta feita, são premissas fixadas pelo E. STJ: a) O art. 1641, II, do Código Civil aplica-se analogamente à união estável; b) O marco inicial da união estável é o começo da convivência pública, contínua, duradoura e com o fito de constituir família; c) É a idade dos conviventes ao tempo do início da união estável que deve ser analisada, para eventual imposição do regime de separação de bens, na forma do art. 1641, II, do CC, ainda que se casem, ou lavrem escritura pública de convivência posteriormente; d) Assim como acontece com o casamento (art. 1639, §2º, do CC, o regime de bens vigente entre os conviventes quando do início da união estável somente poderá ser alterado por decisão judicial.
Por todo o aduzido, afigurando-se de rigor o registro, o parecer que, respeitosamente, submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido de se negar provimento ao recurso administrativo.
Sub censura.
São Paulo, 11 de outubro de 2016.
Iberê de Castro Dias
Juiz Assessor da Corregedoria
DECISÃO
Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, nego provimento ao recurso administrativo.
Publique-se.
São Paulo, 13 de outubro de 2016.
PEREIRA CALÇAS
Corregedor Geral da Justiça
Assinatura Eletrônica
PROCESSO Nº 1000633-29.2016.8.26.0100 – SÃO PAULO – MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO – (220/2016-E) – DJe 21.11.2016, p. 10.