(Princípio da legalidade -Segunda parte)
Des. Ricardo Dip 295.
295. Dos muitos a que perguntarmos sobre o princípio da legalidade receberemos uma resposta pronta, firme e singela (não por isto equivocada de todo) de que se trata da observância da lei.
Se, prosseguindo, indagarmos destes muitos: “mas, que é a lei?”, já veremos que alguma dificuldade aparenta insinuar-se. Saber de algum modo definir nominalmente a lei, muitos de fato o sabem: as introduções ao estudo do direito alistam várias conceituações. Nada obstante isto, será que efetivamente estes muitos que repetem essas conceituações compreendem bem as notas constitutivas e relacionais que, na realidade, participam da lei?
Isto não me parece nada simples.
296. É verdade que a segurança jurídica exige a positividade do direito, para que se saiba, de maneira clara e precisa, quais ações, na ordem social, são devidas, permitidas ou proibidas, e para que então se definam e demarquem as consequências jurídicas das condutas. Poderíamos resumir: a segurança jurídica exige leis. (E para o nosso caso: os registros públicos exigem leis).
Todavia, a possibilidade de uma lei substancialmente injusta −é dizer, de uma legis corruptio, lei corrompida− transtorna o otimismo teórico do princípio da legalidade e as expectativas utópicas de construir-se uma sociedade plenamente segura.
Ainda que consideremos aqui somente um domínio mais estrito da atuação jurídica −p.ex., tal se dá com o campo do direito das formas (no qual se arrolam os registros públicos)−, não parece convir, até porque, de mais a mais, não convém a campo algum, que, em torno deste assunto, estejam a formar-se tendências garantistas ou ativistas.
Convém, pois, aproximar-nos cum grano salis desta complexa questão, exatamente para que encontremos o justo médio que, de modo superior, possa afastar-nos de ambas as tendências: quer a do garantismo, quer a do ativismo registrais, vencendo, assim, a tentação de novidades de turno (parece que vem dos tempos edênicos a sedução de os homens sempre buscarem o proibido: nitimur in vetitum semper).
297. Em ambas essas inclinações, garantismo e ativismo, predomina a vontade −potência definidamente não cognoscitiva−, faculdade que, por si própria, não tem aptidão para encontrar a res iusta.
Um registrador garantista estaria circunscrito ao mundo do direito posto, como se seu apertado universo de letrinhas (as das leis) resumisse a experiência integral do que é justo e do que é injusto. Há, no entanto, para além do universo monocromático do garantismo, um mundo de realidades e matizes de cores a considerar. O garantista parece ter o devaneio de que a realidade se construa pelas normas; lembra-me aqui a muito aguda observação crítica de Oliveira Vianna, referindo-se aos idealistas utópicos: “Se puserem no texto da lei, por exemplo, a palavra Liberdade (com L grande) −para logo a liberdade se estabelecerá nos costumes e na sociedade” (in Instituições políticas brasileiras −Parte I, cap. I, n. 3).
Por sua vez, o ativismo é o estabelecimento do reino do subjetivismo decisório, o direito da surpresa, o direito dos ideólogos da justice-loterie (na expressão de Allain Peyreffite no excelente “Les chevaux du lac Ladoga”, in De la France. Paris: Omnibus, Paris, 1992). Isto deságua no que já se designou de hermeneutisme (Yvan Élissalde, Michel Villey), porque a interpretação e a aplicação do direito apenas obedecem aí à mera vontade do intérprete e do decisor. Estaríamos no reino da insegurança.
298. Não se almeja nem uma coisa, nem outra. O registrador está chamado, de modo realista, a atuar com algum modo de equidade, e, ainda que esteja afeto à demarcação posta nas normas, não se imuniza de compreendê-las com liberdade, de interpretá-las (mediando-as em relação aos fatos) e de, até mesmo, quando insuperável se mostre seu conflito com a natureza das coisas, objetar a própria consciência.
É este o quadro de uma liberdade profissional responsável, em que o registrador não é mero executor da lei do soldado −“ordens são ordens” (Radbruch), qualquer seja seu conteúdo−, mas tampouco é a mera voz do arbítrio pessoal, enfim: um “sapador da ordem jurídica”.
299. Queremos saber que é, efetivamente, o princípio da legalidade registral? A tanto, devemos saber o que é a lei. E, para saber o que é a lei, não podemos prescindir da investigação de seu liame com o direito.
Simples assim. Complexo assim.
300. Detenhamo-nos, para começo, pois, em investigar um tanto o conceito de lei e o de seu vínculo com o direito, sem cuja compreensão não se pode saber exatamente que coisa é o princípio da legalidade −incluída a registral.
Iniciemos por observar que o tratamento desse princípio no território do direito registrário tem dado por suposto, frequentemente, a compreensão de um tema que é próprio da propedêutica jurídica e da filosofia do direito. Esse “dar por suposto” acaba, na prática, por transformar-se num “dar de ombros” para o tema que, entretanto, é fundamental para o êxito operativo do princípio da legalidade. Ou seja, há uma espécie de indiferentismo prático −se se quiser, de positivismo implícito− no acercamento da legalidade por juristas de vários domínios segmentares do direito (vale dizer que isto se passa de maneira similar no campo do direito administrativo, no do direito penal, no direito tributário etc.), e isto não pode deixar de afligir a reta compreensão e aplicação das leis.
Que se encontra, ao fundo, no conceito de “lei” jurídica? A relação entre ela, a lei, e aquilo que é justo. Daí se vê que o menosprezo da apreciação deste liame desemboca no gravíssimo erro de tomar a existência factual da lei como algo para realização autônoma e suficiente (há mesmo quem afirme que a res iusta não tem interesse, porque já agora se fala, alguma vez, em um “direito sem destino”, um direito que “vai e vem, mas não sabe ‘por quê’, nem ‘aonde’ ir” −un diritto senza destinazione: che va e va, ma non sa ‘perché” e ‘verso dove’ muova -Natalino Irti).
301. Mas não deve ser assim. A lei é um meio, não uma finalidade. Meio de que ou para que? Meio de realizar o justo. Meio para chegar ao direito.
Pensemos um pouco: há uma passagem no De legibus de Cicero (Livro I, cap. 16, 43-4) que nos pode convencer da evidência da verdade oposta a esse positivismo corrente: “Se a vontade dos povos, os decretos dos chefes, as sentenças dos juízes, constituíssem o direito, então, para criar o direito ao latrocínio, ao adultério, à falsificação dos testemunhos, seria bastante que tais modos de agir tivessem o beneplácito da sociedade”.
Prossegue Cicero:
“Se tanto fosse o poder das sentenças e das ordens dos insensatos (stultorum), que estes chegassem ao ponto de alterar, com suas deliberações, a natureza das coisas, por que motivo não poderiam eles mesmos decidir que o mau e pernicioso se considerasse bom e salutar? Ou por que motivo a lei, podendo transformar uma injúria em direito, não poderia converter o mal no bem? −bonum eadem facere non possit ex malo?”
E a estas interpelações responde Cicero: “É que, para distinguir as leis boas das más, outra norma não temos a não ser a da natureza” −nulla alia nisi naturæ.
Tome-se ainda este exemplo relatado por León Tolstói: vendo um oficial russo esbofetear injustamente um soldado, Tolstói indagou do ofensor se nunca tinha pensado no fato de que todos nós somos irmãos. E o oficial agressor, em vez de responder-lhe, dirigiu-lhe, cínico, esta pergunta: “Já leu os regulamentos militares?”.
Eis aí, de algum modo (embora um tanto simplista), o confronto entre duas cosmovisões: uma, que considera o justo das coisas; a outra, que se contenta com as letras das leis (“ordens são ordens”… ponto e basta).
302. Parece ser que, na linguagem e no uso dos povos, primeiro foi o direito, depois, a lei; e, de permeio, entre ambos, as ideias de ciência jurídica, de arte do direito, de lugar para a prática do direito, de sentença ou decisão jurídica.
Averbo aqui ter adotado por espeque, brevitatis causa, para seguir neste nosso tema, os estudos de quatro graves autores, quais sejam: Joaquín Costa (em sua Teoría del hecho jurídico individual y social), Vallet de Goytisolo (Las definiciones de la palabra derecho y los múltiples conceptos del mismo; e Metodología de las leyes), Guido Soaje Ramos (El concepto de derecho) e Sebastião Cruz −este último, cujo opúsculo Ius. Derectum (Directum) é uma destas imperdíveis maravilhas da literatura jurídica.
303. Pois bem, a primeira noção de “direito” adveio da palavra ius, que remonta ao indoeuropeu, mas, em dado tempo, ao ius concorreu o vocábulo derectum (ou, talvez, directus, a, um), com o mesmo significado de ius, embora −segundo boa parte dos autores− termos estes sem relação etimológica entre eles.
Três coisas logo parecem dever tratar-se neste capítulo: (i) o fato de que, nas línguas românicas, tenha prevalecido o étimo directum ou derectum; (ii) por que surgiu, de par com a palavra ius, outro vocábulo, derectum, com igual significado de ius?; (iii) qual o numen ou sentido fundamental de derectum?
304. Embora não faltem vocábulos românicos derivados de ius (p.ex., entre nós, as palavras “justiça”, “jurisprudência”, “justo”), é de derectum ou directum que provêm o português “dereito” (que se converteu em “direito” por força do costume lusofônico de não raro pronunciar o e mudo qual se fora um i); o romeno “derept”; o castelhano “derecho” (antigamente: drecho); o italiano “diritto” (outrora: dritto); o catalão “dret”; o francês, “droit”; o provençal “drech”, etc. [Há uma possível explicação para a falta das vogais “e” ou “i” nos vocábulos “drecho”, “dritto”, “dret”, “droit” e “drech”: muitas vezes, no latim, perdeu-se a vogal da sílaba inicial quando seguida de “r”; assim, derectum ou directum converteu-se em drectum].
Sebastião Cruz sustenta, doutamente, que a razão desta preferência genética está calçada na complexidade do símbolo do direito, circunstância que mais reforça a ideia da prioridade da noção inaugural de “direito” sobre suas derivações analógicas, entre as quais se encontra a “lei”.
É disto que trataremos em nosso próximo artigo desta série.