(Princípio da legalidade – Sexta parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
336. Da circunstância de o registro não ostentar eficácia saneadora, demarcando-se em inscrever somente aquilo que, de maneira prévia, o registrador reconheça legalmente válido −e é este o motivo pelo qual o “princípio da legalidade do registro” é também denominado “princípio da legitimidade ou validade das inscrições”−, emerge a necessidade de um dado controle anterior à inscrição, destinado a aferir a conformidade do título inscritivo com a realidade jurídica, sob o modo pontual de harmonia com a ordem normativa posta. A este controle (cognitio causæ in tabulā) dá-se o comumente o nome de qualificação registral ou hipotecária.
 
Por meio dessa qualificação, visa-se a aferir a legitimidade do título objeto da inscrição pretendida, de modo que sua validade e autenticidade, bem como sua aclimação ao que consta dos registros, sejam verificadas em cotejo com o parâmetro da legalidade.
 
337. Consideremos um tanto, à partida, o conceito de qualificação.
Trata-se aí de uma palavra de pertença plural, pois é vocábulo do léxico genérico, mas também do filosófico e do jurídico.
 
338. No âmbito genérico, significa ação, ato, maneira ou efeito de qualificar; e “qualificar” é (i) indicar qualidade, (ii) ou atribuí-la, (iii) emitir opinião sobre algo, (iv) apreciar, (v) classificar, (vi) avaliar, (vii) conferir um valor ou título a alguém, (viii) satisfazer um conjunto de requisitos ou condições (cf., entre vários dicionários concordes no essencial, o de Moraes; similar, para o francês qualification e qualifier, o Petit Robert).
 
339. Muito aproximadamente a este sentido, o conceito filosófico de qualificação é o de ação ou denominação afirmativa de um caráter que constitui uma qualidade, seja sob o aspecto apenas descritivo, seja sob o valorativo (vidē Lalande, Jolivet). O que, em rigor, especializa a acepção filosófica é o fato da referência ao predicamento ou categoria de qualidade (é dizer, ao acidente que modifica, de modo intrínseco, a substância). Num plano descritivo, p.ex., dá-se qualificação ao dizer-se: “Esta casa é de madeira; aquela outra, de alvenaria”; já, valorativamente: “Esta casa é cômoda”, “Esta casa é feia”, etc.
 
340. Na perspectiva jurídica, pode a qualificação definir-se tanto operação de discurso, quanto seu ato conclusivo, ao reconhecer o acesso de um objeto (fato, ato, negócio) em uma dada categoria do direito, com o escopo de aplicar-lhe um dado regime jurídico (cf., a propósito, brevitatis causa, Vautrout-Schwarz).
 
341. Trata-se, para logo, de uma operação do intelecto (o todo do discurso) ou o ato que conclui essa operação discursiva (o consequente em que remata o discurso).
O entendimento possui três operações: a da apreensão simples −simplex aprehensio−, cujo produto é a ideia (que se expressa pelo termo); a de julgar −que produz o juízo (exprimido pela proposição); e a de raciocinar, discorrer ou argumentar −cujo fruto é o raciocínio ou discurso (externado pela argumentação).
 
342. O modelo mais próprio do discurso ou argumentação é o silogismo, que se define, com Van Acker, a argumentação em que, posto o antecedente (ou premissa), põe-se por necessidade o consequente (ou conclusão).
 
Já o mais próprio dos mais próprios do discurso é o silogismo categórico de primeira figura, em todos seus modos, porque essa primeira figura (a figura é a forma genérica do silogismo) tem a perfeição discursiva de proceder sempre do termo mais extenso para o menos extenso, por meio do termo que é médio em extensão: esta figura é designada de sub-prae, em atenção ao fato de o médio ser sujeito da premissa maior, e predicado da menor.
 
343. Todo silogismo categórico tem três proposições (é dizer, duas premissas e um consequente) e três termos (o sujeito ou termo extremo menor [t], o médio [M] e o predicado ou termo extremo maior [T]), de maneira que um silogismo de primeira figura −ou em sub-prae− é o que se estrutura assim: M-T (premissa maior, porque contém o extremo maior), t-M (premissa menor) e t-T (consequente ou conclusão). Ex.: Todo direito real é patrimonial. Toda hipoteca é direito real. Logo, toda hipoteca é patrimonial.
 
As demais figuras do silogismo categórico −prae-prae (ou bis-prae), sub-sub (ou bis-sub) e a galênica (ou prae-sub)−, assim como toda classe do silogismo hipotético (silogismo condicional, disjuntivo e conjuntivo) são formas legítimas, mas imperfeitas de discurso, e sua legitimidade repousa em que podem reduzir-se a um dos quatro modos do silogismo categórico de primeira figura.
 
Os modos são formas específicas dos silogismos, que se definem pela quantidade do sujeito e pela quantidade do predicado (ou qualidade positiva ou negativa da cópula das proposições). Reduzir uma forma imperfeita de silogismo é exatamente transformá-lo em um dos quatro modos possíveis do silogismo de primeira figura.
 
344. Prosseguindo: o discurso silogístico é uma operação do entendimento −propriamente da razão, enquanto esta, a razão, pode distinguir-se da inteligência (não diferenciar-se, realmente, contudo). A inteligência apreende e julga (primeira e segunda operações intelectuais); a razão, discursa, argumenta, silogiza (terceira operação do intelecto). Ambas são uma só e mesma faculdade, mas distinguem-se suas ações.
 
O modelo mais próprio do discurso é, como ficou dito, o do silogismo categórico de primeira figura, mas isto não significa que seja o mais usado nas atividades discursivas humanas. Parece que o entimema, silogismo abreviado, é de uso mais corrente (no entimema, uma das premissas está implicitada: p.ex., “O usufruto é direito real. Logo, o usufruto é suscetível de ser registrado” −silogismo em que se implicita a premissa “Todo direito real é suscetível de ser registrado”), mas, se tomarmos em conta, v.g., as notas devolutivas expedidas pelos cartórios de registro, as dúvidas que os registradores suscitam e até as decisões que proferem, veremos que nelas se encontram um ou mais silogismos (concatenados), nos quais uma ou ambas as premissas se acompanham de fundamentação. Trata-se aqui de uma das espécies de silogismo complexo: o epiquerema (as demais espécies são o polissilogismo, o sorites, o dilema e o silogismo oblíquo, estes quatro mais raramente encontrados no “discurso dos registradores”).
 
Além de uma razão −pode dizer-se− natural de a argumentação qualificadora no registro vir externamente fundamentada (é dizer, com motivação expressa), para atender aos interesses (i) da segurança jurídica, (ii) do próprio rogador do registro e (iii) dos terceiros em geral (de cuja defesa se incumbe o registrador), é frequente imponha o ordenamento positivo o dever dessa motivação (no caso brasileiro, arg. do art. 198 da Lei n. 6.015, de 1973, e até mesmo da Constituição federal de 1988, inc. LV do art. 5º, para propiciar-se o exercício do direito de defesa e de contraditório).
 
A estas referências, considere-se, em acréscimo, que a motivação explícita (quando menos) da qualificação registral negativa favorece o controle judiciário (para o quadro brasileiro, vidē § 1º do art. 236 do Código político em vigor).
 
345. O direito à motivação extrínseca na qualificação registral −ao menos na negativa− não exclui, porém, a fundamentação expressa mediante oposição, ou seja, por meio do assentimento explícito ao juízo oposto do pretendido pelo interessado: não falta à motivação o entendimento que explicita as premissas de fato e de direito em que se apoia, afirmando uma tese avessa à almejada pelo apresentante do título, ainda que não mencione expressamente a tese desse apresentante.
A motivação do juízo oposto ao propugnado pelo apresentante, contudo, deve ser explícita. Porque só assim se saberiam os fundamentos da inferência imediata em desfavor da proposição oposta (seja ela contraditória, contrária ou subcontrária). Não fora assim, haveria implicitude de motivação, o que acarreta vício formal da qualificação.
 
346. No próximo artigo desta série, discutiremos sobre o caráter teórico ou prático da qualificação registral. Ou seja, é ela operação ou ato da razão especulativa ou da razão prática? Se da prática, em que consiste exatamente seu caráter prudencial? Por que, além disto, pode falar-se tanto em operação quanto em ato de qualificação?