O direito brasileiro sofreu substancial mudança nos últimos 20 anos. A ordem jurídica brasileira foi praticamente reconstruída com a Constituição Federal de 1988; a constitucionalização de vários direitos deu novas cores interpretativas ao direito privado e levou matérias importantes ao Judiciário brasileiro. Eventuais críticas a extensão da atual Carta Constitucional nascem exatamente deste fenômeno de uma constituição ampla e que regula matérias que poderiam perfeitamente serem acomodadas na legislação infraconstitucional. E mesmo com tal amplitude, há ainda no direito brasileiro lacunas importantes, e, que de certa forma merecem nossa reflexão.
 
Dentre os temas contemporâneos a inquietar a comunidade jurídica, os mecanismos de direito financeiro e família se destacam. E neste breve espaço tentaremos discorrer um pouco sobre o instituto do trust e sua utilização como forma de ocultar patrimônio em casos de divórcio e consequentemente partilha de bens.
 
De início devemos alertar ao leitor não ser nosso objetivo fazer uma digressão histórica e esgotamento temático sobre o instituo do trust; mas sim refletir sobre seu funcionamento frente ao mundo corporativo, moderno e dotado de soluções financeiras entre mercados, eventuais medidas de blindagem patrimonial, e, como tal atitude — instituição de trusts — traz reflexos a órbita dos direitos patrimoniais em nosso país.
 
O trust tem seu nascimento nos países anglo-saxões, e com a finalidade precípua de regulação patrimonial na ocorrência de sucessões; trata-se — como a própria tradução literal do termo em inglês sugere — de negócio tido com base na “confiança”, “encargo”, “dever”, etc.
 
Consiste basicamente em confiar bens, patrimônio, à titularidade e administração de um terceiro, que pode ser empresa especializada ou mesmo pessoas físicas que desenvolvam tal atividade. Assim, há uma “aplicação”, transferência propriamente dita de recursos deixando em confiança a um gestor. Tal gestor assume a condição de proprietário daqueles bens mediante encargo, e com a fixação de um beneficiário do patrimônio do trust que não necessariamente é aquele que “aplicou” recursos na formação do trust.
 
Na história recente brasileira, se viu o então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, ser compelido inicialmente pela chamada CPI da Petrobras se detinha alguma conta corrente no exterior, situação que negou peremptoriamente. Posteriormente, viu-se que era beneficiário de um truste invocando a técnica jurídica envolta no instituto declarou que “trust não é conta”.
 
Sem a tergiversação atinente à política brasileira, realmente trust não é conta corrente, nem, tampouco, nenhum tipo de investimento convencional que se tenha previsão idêntica no ordenamento jurídico brasileiro.
 
Existem alguns institutos com certa similitude, embora distante da identidade absoluta. Em artigo escrito em 2010 — e ainda muito atual — o professor Cristiano Rosa de Carvalho com muito acerto, comparou o trust ao instituto da alienação fiduciária de imóveis e a formação de fundos de investimento imobiliários[i] — fazendo uma correlação entre o trust e o patrimônio de afetação previsto na legislação de regência de investimentos imobiliários. É certo que se tratam dos exemplos — no direito brasileiro — mais próximos à instituição de um trust, na medida em que o patrimônio do fundo imobiliário é inatingível por eventuais constrições de bens; e no fato de que o comprador do imóvel na alienação fiduciária pela ausência de recursos, efetiva a compra, transfere a propriedade à instituição financeira, e após ocorrida a condição de pagamento completo, transfere-se além da posse direta do bem (beneficiário) a propriedade ao comprador/fiduciário.
 
O ponto nodal a ser tratado é quanto à transferência da titularidade do patrimônio que é obrigatória no trust, que volte-se a dizer no modelo tratado nessa breve reflexão encontra apenas similitudes legais, mas o instituto em si, não encontra referência expressa na legislação brasileira; logo, importando dizer que quando fazemos tais referência estamos sempre nos reportando a países que aceitam e regulamentam a atividade dos “trustee” ou fiduciários, que podem ser empresas especializadas em gestão de ativos em tal modalidade ou ainda pessoas físicas, ambas vinculadas contratualmente a promover a gestão em favor do daquele que transfere o patrimônio (settlor) e com o encargo de transferência do patrimônio ou frutos decorrentes da administração a um beneficiário (beneficiary).
 
E este instituto que sempre fora estudado do ponto de vista a impedir a sonegação ou evasão fiscal, e, portanto, no campo tributário, como propriamente descrito por vários juristas, a se destacar artigo escrito em 2015, na ConJur pelo professor Heleno Torres [ii], nesta reflexão tem como palco a transferência indevida de bens, utilizando-se do trust como indevida ferramenta de blindagem patrimonial, e, por consequência sonegações patrimoniais em partilhas decorrentes de divórcio ou partilha de bens post-mortem.
 
Não tem sido incomum que casais que construam patrimônio comum durante longos anos, e, por motivos diversos, levarem sem recursos ao exterior na constituição de um trust. Igualmente não incomum que apenas um deles tenha a exata dimensão do que fora estabelecido na administração, e, quem seriam os beneficiários do trust, e ao divorcia-se e início da partilha, um dos cônjuges se vê, afastado do patrimônio, e ainda diante de um vácuo legislativo, e, tendo sua relação patrimonial regulada por um instituto estrangeiro e pouco difundido na doutrina e jurisprudência brasileira.
 
Ainda que não seja o tema central não podemos esquecer que o Brasil não sendo signatário da Convenção de Haia sobre trusts, em matéria tributária, produziu o Decreto 8.842 de 29 de Agosto de 2016, que, em certa medida regula e melhora a condição interpretativa de não poder o trust ser utilizado como ferramenta e sonegação fiscal, e evasão de divisas.
 
Em causas que envolvam a disputa de bens decorrentes de partilha há que se observar princípios de otimização que impedem o enriquecimento sem causa em detrimento do prejuízo de quem quer que seja.
 
Em linhas gerais a teoria da “substância sobre a forma” é que deve prevalecer, e independentemente da instituição de trusts, deve a entidade familiar promover contratos específicos entre seus membros, e estudar, a depender do limite de investimento saber quanto à obrigatoriedade de informação às autoridades brasileiras, em especial Banco Central do Brasil e Receita Federal, sob pena de evidente ocultação bens.
 
Para complicar o que já se demonstrou não ser simples, a Lei de Introdução ao Ordenamento Jurídico Brasileiro, traz em seu artigo 8º que: “para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-á a lei do país em que estiverem situados”.
 
Volte-se a frisar a perfeita adequação à finalidade que se destina do instituto do trust especialmente em países com tradição em tal instituto como Inglaterra, Suíça, Estados Unidos e Canadá; situação que não pode ser tolerada é a sua malversação para ocultação patrimonial.
 
A assertiva que temos defendido — de insuficiência legislativa para defesa patrimonial frente à instituição de trust — escorasse no fato, especialmente de liberdade absoluta do proprietário instituidor (settlor) inclusive em determinar a legislação aplicável ao trust e seus fundos. É instituto baseado na liberdade, mesmo porque, carrega consigo a natureza jurídica de contrato.
 
O tema é vastíssimo, e adentrar profundamente como mereceria a matéria, implicaria fatalmente em abrir mão da objetividade em textos jurídicos. Objetividade que temos defendido não como forma de empobrecimento das ciências jurídicas, mas, de permitir àqueles atingidos por nossos comentários em compreender minimamente a mensagem, pois, somos prodigiosos na produção de grandes juristas, e para estes, sua erudição já suficientemente motivadora de compreensão e evolução de pensamento dos institutos jurídicos.
 
Fato é que diante do vácuo legislativo é necessário para boa aplicação de um trust familiar (discretionary trusts) fixar regras claras sobre a titularidade do patrimônio a constituir o trust, bem como, de forma complementar regularizar contratualmente os bens que formam o contrato de trust, sob pena, de patrimônio comum ser transferido a um só dos cônjuges em caso de divórcio, ou a sucessores não participantes da legítima, em caso de óbito, prevalecendo pacto que transfere patrimônio comum como sendo de um único proprietário.