Assunto controvertido é quando o notário é questionado da possibilidade da lavratura de inventário quando o autor da herança deixou dívida municipal ou federal.
O leitor deve estar se questionando a respeito das dívidas estaduais. A princípio, não há o que se falar em comprovação da inexistência de passivo estadual, vez que tal assunto já foi resolvido em Pedido de Providências instaurado perante a 2ª Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo:
Especificamente, a normativa paulista, no que concerne à prática tabelioa, regra que os débitos tributários municipais e da receita federal (certidões positivas fiscais municipais ou federais) impedem a lavratura da escritura pública, alteração essa introduzida nas normas da Corregedoria pelo Provimento CG 07/2013:
Na mesma linha, no mesmo Capítulo XVI, item 118, o tribunal regra que na lavratura da escritura deverá ser apresentada a certidão negativa ou certidão positiva com efeitos de negativa de tributos. O art. 22 da Resolução 35 do Conselho Nacional de Justiça, já regrava tal situação:
Considero que a normativa estadual paulista esteja desatualizada. A sociedade é dinâmica e com ela seguem as leis e normas. Um mesmo povo não consegue se submeter às mesmas leis por muito tempo.
Quando da edição da Lei 11.441/2007, vigorava em nosso ordenamento processual a lei federal nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973 (antigo CPC), que regrava em seu art. 1.031 a prova de quitação dos tributos do espólio:
O art. 1.046 do Novo CPC, revogou integralmente a lei federal nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973 (antigo CPC) e no nosso pensamento, com a edição dos arts. 610 e 733, a ab-rogação da Lei Federal nº 11.441/07.
No Código de Processo Civil atual, tal comando contido na antiga lei processual, não mais existe, sendo sua correspondência atual, o art. 659:
CPC 1973 | CPC 2015 |
Art. 1.031. A partilha amigável, celebrada entre partes capazes, nos termos do art. 2.015 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, será homologada de plano pelo juiz, mediante a prova da quitação dos tributos relativos aos bens do espólio e às suas rendas, com observância dos arts. 1.032 a 1.035 desta Lei. | Art. 659. A partilha amigável, celebrada entre partes capazes, nos termos da lei, será homologada de plano pelo juiz, com observância dos arts. 660 a 663. |
Veja-se que o novo dispositivo não mais menciona a necessidade da prova da quitação dos tributos relativos aos bens do espólio, em consonância com a nova realidade social.
A Lei dos Registros Públicos determina:
No mesmo sentido, a Lei nº 8.935, de 2004 prevê:
(…)
XI – fiscalizar o recolhimento dos impostos incidentes sobre os atos que devem praticar;
O notário e o registrador imobiliário são responsáveis pelos tributos incidentes pelos atos praticados em razão do seu ofício, jamais sobre os impostos que recaem sobre o bem transmitido, pois se assim fosse, constituiria um modo de cobrança indireta por agente não competente.
A Corregedoria Paulista já se manifestou sobre a forma de cobrança indireta por agente incompetente da regra prevista nos arts. 47, I, b, da Lei n.º 8.212, de 24 de julho de 1991, e no art. 257, I, b, do Decreto n.º 3.048, de 6 de maio de 1999, e no art. 1.º do Decreto n.º 6.106, de 30 de abril de 2007, quanto à dispensa das certidões negativas de débitos emitidas pelo INSS e pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e da certidão conjunta negativa de débitos relativos aos tributos federais e à dívida ativa da União emitida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, tendo em vista os precedentes do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido de inexistir justificativa razoável para condicionar o registro de títulos à prévia comprovação da quitação de créditos tributários. A União tem seus meios próprios de cobrança de eventuais débitos, inclusive, no inventário, quando da declaração de Imposto de Renda – final do espólio, que por meio dos ajustes fiscais necessários, condiciona-se os sucessores às dívidas do falecido na forma do art. 1.792 do Código Civil Brasileiro, sendo que o herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbindo-lhe, porém, a prova do excesso, servindo o próprio inventário como prova da escusa, com a demonstração dos valores da inventariança.
A existência de débitos e valores relativos a tributos, sejam municipais ou federais, deve ser discutida nas vias ordinárias, com a garantia constitucional de dilação probatória e do contraditório e ampla defesa. Tais providências, quais sejam, de cobrança, inserção do devedor na dívida ativa, execução fiscal, deve ser tomada exclusivamente pelo órgão municipal ou federal que representa a secretaria que detém o crédito, reitera-se, ao notário e ao registrador não se pode atribuir-se ainda mais esse ônus fiscalizatório, sob pena de afronta ao princípio constitucional esculpido no art. 5º inciso LV da Constituição Federal.
O sucessor uma vez interpelado pelo notário quanto aos débitos incidentes sobre um imóvel, por exemplo, vê-se obrigado à quitação do débito sem ao menos ter a oportunidade de questionar a origem da dívida, e assim o faz rapidamente para evitar condicionar-se a outra sanção do Estado, qual seja, a multa quanto ao recolhimento do imposto causa mortis.
Nessa linha de pensamento, o Conselho Nacional de Justiça, nos autos do pedido de providências nº 000123082-.2015.2.00.0000, formulado pela União/AGU, julgou não haver irregularidade na dispensa, por ato normativo, da apresentação de certidão negativa de tributos para o registro de título no Registro de Imóveis:
Mesma dispensa normativa, consta das Normas Paulistas, no item 60.2 do Capítulo XVI, aplicável à lavratura dos atos notariais.
A cobrança indireta de tributos pelo notário é afronta ao livre exercício à atividade econômica e profissional, bem como da disposição de bens, compelindo ao bem uma situação de “fora do comércio” colidindo, por fim, com o princípio da função social do imóvel, vez que sem a regularização da transmissão sucessória, a propriedade se torna irregular.
Outro argumento para a dispensa é qualidade propter rem da obrigação tributária.
Para corroborar com esse entendimento, convém transcrever o entendimento de Rodrigues (2002. p. 79):
Ora, se a obrigação acompanha o bem, independente de quem seja o titular do direito, a que se serve condicionar a formalização da sucessão a apresentação da certidão negativa de débitos? Se a dívida é junto à união, qual o motivo de se fazer o ajuste final na declaração do espólio, se os herdeiros, no exercício seguinte terão que declarar a aquisição do bem por sucessão causa mortis? O notário e o registrador não podem ser imputados a fiscalizar tal tipo de obrigação tributária, pois o próprio Código Tributário Nacional regra a responsabilidade do sucessor:
131. São pessoalmente responsáveis:
(…)
II – o sucessor a qualquer título e o cônjuge meeiro, pelos tributos devidos pelo de cujus até a data da partilha ou adjudicação, limitada esta responsabilidade ao montante do quinhão do legado ou da meação; (grifei)
Assevero, como de início, que a normativa nos parece desatualizada – a própria norma em capítulos diferentes se contradiz, senão veja o item 119.1, Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo:
Vejamos conforme acima, que o item 116.2 do Capítulo XVI das NSCGJ/SP regra que a existência de débitos municipais e federais impedem a lavratura da escritura de inventário, entretanto o recém colacionado item 117.1 do Capítulo XX, da mesma normativa, retrata que o registrador imobiliário não poderá exigir nenhuma quitação tributária de dívida fazendária. Ora, se não é requisito para o registro, também não o pode ser para a formalização da sucessão (escritura).
A primeira Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital de São Paulo também decidiu nesse sentido:
Sendo assim, nosso entendimento é no sentido da inconsistência da norma Paulista, pela ab-rogação da Resolução 35/2007 do CNJ, da sequela da dívida junto ao bem transmitido aos sucessores do falecido, e no caso de dívida com a união, pela existência da via ordinária de cobrança de eventuais débitos, SENDO POSSÍVEL a lavratura do inventário extrajudicial com dívidas que recaiam sobre os bens do espólio transmitente, sem a responsabilização pessoal, administrativa e tributária do tabelião e do registrador imobiliário.