Imóveis financiados e repassados a terceiros por contrato de gaveta, por exemplo, não puderam aderir à suspensão do pagamento das prestações durante a pandemia
A crise desencadeada pela pandemia da covid-19 trouxe vários problemas para os brasileiros, principalmente o desemprego. Com isso, não só a saúde física ficou ameaçada pelo novo coronavírus, mas a saúde financeira foi diretamente atingida, com diminuição da oferta de empregos e queda na renda.
Nesse cenário, alguns brasileiros enfrentam outro problema por uma situação muito comum no Brasil: a compra e venda de bens por meio dos chamados contratos de gaveta, que é um contrato particular feito entre o titular de um financiamento junto a um banco, o vendedor, e um terceiro, o comprador.
No caso de imóveis, logo no início da pandemia, os bancos abriram a possibilidade dos brasileiros com imóveis financiados, por exemplo, suspenderem os pagamentos. Inicialmente, a suspensão valeu por três meses e foi prorrogada por mais duas vezes, com um prazo que chegou a 180 dias. Segundo dados da Caixa Econômica Federal, até o final de 2020, mais de 2,3 milhões de clientes haviam pedido a suspensão temporária do pagamento do financiamento da casa própria. Mas os “gaveteiros”, como são chamados aqueles que têm contratos de gaveta, não puderam aderir a essa medida.
Como resultado dessa situação, segundo a advogada da Associação Nacional de Mutuários, Cristiane Aparecida Curcio Alves Moraes da Costa, atualmente, a associação tem mais de 8,6 mil associados, sendo 40% com ações que envolvem contratos de gaveta e a maioria por atraso no pagamento das parcelas.
A advogada lembra que esse contrato pode ser válido se estiver acompanhado de uma procuração pública feita em cartório, “onde o titular passa para o comprador amplos poderes inclusive com cláusula ad judicia, quando o terceiro pode representar o vendedor judicialmente se necessário”.
Entre os riscos para o comprador com contratos de gaveta, sem a procuração pública, a advogada cita o caso do vendedor sofrer alguma execução de dívida e o pagamento recair sobre o imóvel ou ainda o não reconhecimento da negociação pelos herdeiros em caso de morte. Já o vendedor pode enfrentar problemas se o comprador deixar de pagar as prestações. “No caso de parcelas em atraso, sem a procuração pública, o banco se nega a negociar por não reconhecer aquela pessoa com poderes para isso, o que pode levar o imóvel a leilão.”
Segundo dados da Caixa Econômica Federal (CEF), em 2020, somente um site de leilão anunciou um aumento de 80% no número de imóveis retomados pelos bancos após irem a leilão.
O advogado e especialista em direito civil pela USP, Aires Vigo, dá outros exemplo de problemas que podem ocorrer no contrato de gaveta, quando o imóvel é financiado pela CEF. “Quando o imóvel é adquirido por meio de financiamento, o cadastro passa por análise e o comprador tem que comprovar vários requisitos, como comprovação de renda. Mas quando o vendedor, no meio do caminho, repassa o imóvel a um terceiro, sem anuência da Caixa, o comprador pode não atender às exigências e o banco não registrar o contrato.”
Por isso, a orientação de Vigo para evitar problema futuro, no caso de imóvel, por exemplo, é dar publicidade ao contrato através do seu registro. “No caso de imóvel financiado pela CEF, é importante levar à agência para avaliação do cadastro do comprador, quando este terá que demonstrar a sua condição para arcar com o financiamento, assim o contrato de gaveta será regularizado.” O advogado lembra, ainda, que o não cumprimento das obrigações estabelecidas no contrato, por qualquer uma das partes, pode levar ao rompimento desse contrato.
Ouça a entrevista na íntegra com os advogados Cristiane Aparecida Curcio Alves Moraes da Costa e Aires Vigo para o Jornal da USP no Ar, Edição Regional.
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