A desjudicialização é uma realidade, especialmente desde a entrada em vigor da lei 11.441/07, que prevê a possibilidade de inventário, divórcio e separações extrajudiciais consensuais nos cartórios extrajudiciais.
 
A utilização dos meios extrajudiciais é uma forma de ampliar o acesso à justiça, prestigiando-se os meios adequados de solução de conflitos, conforme previsão trazida pelo Código de Processo Civil de 2015.
 
Cumpre, contudo, destacar que a genuína implantação da Justiça Multiportas em nosso país precisa estar acompanhada por dois elementos de suma relevância, a saber: (i) observância do devido processo legal extrajudicial e das garantias fundamentais do processo; e (ii) mudança de cultura dos operadores do direito.
 
O procedimento extrajudicial tende a ser mais rápido e menos burocrático para as partes, mas algumas formalidades são mantidas, inclusive a representação dos interessados por advogado. Tanto a separação e o divórcio, quanto o inventário extrajudicial independem de homologação judicial e apenas podem ser realizados em havendo a concordância de todos os interessados com relação a todos os termos. Sendo assim, se houver litígio, o único caminho é o judicial.
 
A legislação vigente veda a realização de separação, divórcio e inventário extrajudicial quando houver incapazes interessados.
 
Desse modo, a existência de crianças ou adolescentes – salvo se tiverem sido emancipados, conforme artigos 12 e 47 da Resolução 35 do Conselho Nacional de Justiça – impede a realização de inventário, separação, dissolução de união estável ou divórcio pela via extrajudicial, o que faz com que as partes tenham que se sujeitar ao processo judicial.
 
A Resolução 35 do Conselho Nacional de Justiça, que regulamenta separação, divórcio e inventário extrajudiciais, faz previsão no art. 34 e seu parágrafo único de que as partes devem declarar ao escrivão não possuírem filhos comuns ou de que o cônjuge virago não se encontra em estado gravídico, ou ao menos, que não tenha conhecimento sobre esta condição.
 
Tal proibição tem como intuito proteger o interesse dos incapazes, pessoas vulneráveis e que demandam um maior cuidado e fiscalização para garantia de seus direitos. Todavia, será que tal proteção poderia ser relativizada na prática, desde que garantidos os direitos por meio da fiscalização pelo Ministério Público?
 
Diante disso, inicia-se um movimento voltado à paulatina flexibilização desse requisito negativo, conforme a seguir.
 
Em 2021, na Comarca de Leme, Estado de São Paulo, houve a concessão do primeiro alvará judicial do Brasil para a realização de inventário extrajudicial com interesse de incapazes, nos autos do Processo n. 1002882-02.2021.8.26.0318. No caso concreto, a escritura pública de inventário estava pronta para a assinatura quando um dos herdeiros faleceu de COVID, sendo necessário acrescentar ao ato seus filhos incapazes para representá-lo. O advogado do caso solicitou judicialmente alvará para que o inventário pudesse ser concluído na modalidade extrajudicial, o que foi deferido.
 
O magistrado, nesse caso, autorizou a realização extrajudicial de inventário, apesar de haver interessados menores de idade, considerando-se que foi proposta a realização de “uma partilha ideal, de acordo com a lei”, o que eliminaria os riscos de prejuízos aos interesses dos incapazes.
 
No Tribunal de Justiça do Acre, o juiz de Direito Edinaldo Muniz, titular da Vara de Registros Públicos, Órfãos e Sucessões e de Cartas Precatórias Cíveis da Comarca de Rio Branco editou a Portaria 5914-12, onde autoriza que, no âmbito da competência daquela Vara, possam os cartórios extrajudiciais lavrar escrituras públicas de inventário, mesmo havendo herdeiros incapazes. A portaria prevê a formalidade de que a minuta final da escritura seja previamente submetida à aprovação do juízo, que ocorrerá após a manifestação do Ministério Público.
 
Na Portaria consta que o requerimento será feito por meio de pedido de providência, provocado por herdeiros interessados e/ou pelo próprio cartório do inventário extrajudicial e que não haverá cobrança de custas judiciais, apenas emolumentos extrajudiciais. Por fim, determina que a versão final da escritura de inventário deve fazer referência à manifestação e aprovação prévia do representante do Ministério Público e do juízo competente.
 
Ainda no que tange ao inventário, José Luiz Germano, José Renato Nalini e Thomas Nosch Gonçalves defendem a possibilidade da realização extrajudicial com herdeiros incapazes quando a partilha ocorrer por parte ideal e for igualitária.
 
Na hipótese do divórcio extrajudicial, diante da Emenda Constitucional 66/10, que permite o divórcio direto sem qualquer cumprimento de prazos, formalidades ou requisitos, não há razão para proibir a realização do divórcio pela modalidade extrajudicial, remetendo-se ao Poder Judiciário apenas as questões relativas aos filhos, como guarda, alimentos, regime de convivência etc.
 
A taxa de congestionamento em demandas de direito de família é de 69% segundo o relatório Justiça em Números de 2021. Diante de tal quadro, o abrandamento da proibição de separação, divórcio, dissolução de união estável e inventário extrajudiciais diante da existência de incapazes poderia trazer um impacto positivo para o desafogamento do Poder Judiciário.
 
O Tribunal de Justiça de Goiás editou o Provimento 42/19 com vistas a alterar o Código de Normas daquele Estado para autorizar a separação e o divórcio extrajudiciais em que haja filhos menores, desde que os interessados comprovem ao delegatário do cartório extrajudicial que já ajuizaram ação judicial para deliberar sobre os direitos dos filhos, cabendo ao cartório extrajudicial, por sua vez, comunicar ao juízo competente a lavratura da escritura, no prazo de 5 dias úteis.
 
No âmbito da separação e do divórcio, Tomas Nosch Gonçalves propõe alteração da Resolução 35 do CNJ para que sejam permitidos na forma extrajudicial, inclusive com solução das questões relativas à guarda e alimentos, com concordância do Ministério Público.
 
Necessário consignar já haver previsão de intervenção do Ministério Público nos casos em que há interesse de incapazes no Provimento 83/19 do CNJ, ao se referir ao procedimento de reconhecimento de paternidade ou maternidade socioafetiva (inclusão do §9º ao art. 11 do Provimento 63), a demonstrar a viabilidade de sua manifestação nos procedimentos extrajudiciais desenvolvidos em cartório.
 
Constata-se, pois, um salutar aceno, tanto da doutrina quanto dos tribunais, no sentido de admitir a adoção da via extrajudicial para a realização de separações, divórcios e inventários em situações em que há interesse de incapazes. No entanto, considera-se que o ideal seria, a fim de evitar a necessidade de autorização judicial em cada caso concreto, extirpando-se instabilidade e insegurança jurídicas, a alteração da legislação em vigor, com vistas a autorizar a via extrajudicial, ainda que exista interesse de incapazes, desde que haja expressa concordância do Ministério Público.