Há algo pior do que esperar anos para o fim de um processo judicial: não receber nada do que foi concedido pelo Judiciário. Isso pode ocorrer na hipótese em que o devedor consegue vender todos os seus bens e desaparecer com o dinheiro. Essa situação não é inusitada. Mas nada é tão ruim que não possa piorar: a MP 1.085, publicada no dia 28 de dezembro de 2021, facilita a vida do devedor que deseja se desfazer do seu patrimônio para escapar da obrigação de pagamento da dívida, prejudicando o credor.

 

De acordo com as regras em vigor antes da MP nº 1.085, a venda de um imóvel na pendência de uma ação que possa levar o proprietário do imóvel à insolvência caracteriza fraude à execução. Isso significa que o credor pode penhorar o bem vendido, a fim de ter seu crédito satisfeito. É o que dispõe o Código de Processo Civil (CPC) em vigor, repetindo regra do Código de Processo Civil revogado. O objetivo não é apenas proteger o credor, que tem direito a receber seu crédito, mas também proteger a efetividade das decisões judiciais. Sem um Judiciário efetivo, não há segurança jurídica.

 

Na esmagadora maioria dos casos, por meio de consulta a registros de acesso público, o comprador consegue previamente saber se a aquisição será em fraude à execução ou não. Por isso a lei não considera a questão da má-fé do comprador como requisito para a caracterização da fraude. Protege-se tanto a segurança da aquisição imobiliária, como a efetividade do Judiciário e o direito do credor que esperou alguns anos para obter decisão judicial favorável. É a maneira que desde o advento do item 14 do Título LXXXIII do Terceiro Livro das Ordenações Filipinas1 foi obtido um equilíbrio entre os importantes valores mencionados.

 

Com a MP 1.085, a situação muda: por via transversa, sem alterar o CPC, aniquila-se na prática a caracterização de fraude à execução. Passa a existir um desequilíbrio: a efetividade das decisões judiciais é diminuída ainda mais e as chances de o credor receber o que lhe é devido passam a ser ainda menores.

 

O pretexto da malsinada medida é a proteção do adquirente do imóvel. Isso não se sustenta: caso se pretendesse conceder maior proteção ao adquirente de um imóvel, bastaria estabelecer em lei que a obtenção das certidões judiciais do vendedor do local do seu domicílio e do local de situação do imóvel descaracterizariam a ocorrência de fraude à execução. Outra solução normativa seria a utilização de um registro eletrônico nacional, a exemplo da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB), que vem funcionando de maneira muito boa. Ao revés, optou-se por simplesmente estabelecer a desnecessidade de se obter certidões dos distribuidores por parte do comprador, sem qualquer preocupação com o direito do credor ou com a efetividade do Judiciário brasileiro.

 

De forma ladina, a MP estabelece que “não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé”. Para os menos versados em registro imobiliário, a nova regra parece ser justa: o que não está no registro imobiliário não pode prejudicar o comprador. O diabo, porém, mora nos detalhes: ação que possa levar o vendedor à insolvência não deve ser registrada na matrícula do imóvel, pois ela não diz respeito diretamente ao imóvel nem a respeito da qualificação do seu proprietário.

 

Para tentar contornar essa lógica existente desde tempos imemoriais, a MP tenta aquilo que fora tentado, sem sucesso, pela Lei nº 13.097, de 19-1-2015, em sua versão original: permitir que ações que não digam respeito ao imóvel possam ser registradas ou averbadas na matrícula do imóvel.

 

Na prática, essa solução não prosperou. Até mesmo seus apoiadores mais entusiasmados perceberam na época que o número de atos que não dizem respeito ao bem imóvel passíveis de registro na matrícula desse bem seria astronômico, o que tornaria caótico o sistema registral. Imagine-se, por exemplo, uma empresa com dezenas ou centenas de reclamações trabalhistas e cada juiz trabalhista determinando que os registradores imobiliários registrem (gratuitamente) na matrícula de cada imóvel da empresa a existência de cada ação.

 

E mais: tratava-se, como se trata novamente, de impor dificuldades e custos adicionais ao credor: ele passa a ter o ônus, por ocasião da propositura da ação judicial, de procurar os imóveis do devedor e fazer os registros exigidos pela lei para evitar que o devedor se furte ao pagamento dos valores devidos. É o cúmulo do absurdo, que se parece com o suplício de Tântalo: alguém que já não recebeu o crédito devido e não tem alternativa que não a de buscar o Judiciário, aguardar anos pela bendita prestação jurisdicional, e ao final, em uma vitória de Pirro, não receber nada caso não tenha procedido à localização e averbação da ação na matrícula dos imóveis do devedor.

 

Eis então a verdade nua e crua: exigir algo quase impossível (que nos lembra a punição de Sísifo) ou com custo extremamente alto, de modo a aniquilar a norma que protege o credor e a efetividade da Jurisdição.

 

A baixa efetividade da prestação jurisdicional é um dos componentes do “Risco Brasil”. A insegurança jurídica é fator que prejudica enormemente o desenvolvimento do País. Quanto maior o risco, maior deve ser o lucro. Trata-se uma lógica matemática, da qual não se pode ignorar. Mas há algo pior que o risco mensurável: a incerteza que, ao contrário do risco, não cabe em uma planilha de Excel. Sem segurança jurídica não é possível juros estruturalmente baixos.

 

Portanto, em vez de aumentar a efetividade das decisões judiciais, a MP 1.085 causa um desserviço às tentativas de diminuir o “risco Brasil”.

 

Além disso, a alteração via medida provisória de tema tratado no Código de Processo Civil enseja uma discussão a respeito da constitucionalidade. Com efeito, há possível vício de inconstitucionalidade na alteração efetuada pelo art. 16 da MP 1.085/2021, uma vez que matéria processual não pode ser objeto de medida provisória.  A questão que se põe é a seguinte: a fraude à execução está regida no CPC, mas o fato de determinada matéria estar no CPC não significa, necessariamente, que ela é processual. Assim, é possível a existência de normas de direito material no CPC. Da mesma forma, pode existir dispositivo de direito processual em lei que versa predominantemente sobre direito material. Possivelmente seja o caso.

 

A fraude à execução (tratada no art. 792 do CPC e atingida por via transversa pelo art. 16 da MP 1.085/2021, que alterou o art. 54 da lei 13.097/2015), é matéria de direito processual ou material? A eficácia ou ineficácia de uma alienação parece ser questão de direito material, mas o objetivo da existência de uma norma (art. 792 do CPC) que visa a proteção da efetividade da jurisdição, embora não diga respeito diretamente a um procedimento em ação judicial, parece ser norma de direito processual. Os tribunais irão dizer se a alteração efetuada pela MP 1.085/2021 com relação à fraude à execução é constitucional ou não.

 

Como se vê, criou-se uma questão que terá de ser dirimida pelo STF – e talvez isso apenas o seja depois de anos de controvérsias e decisões conflitantes. Parece que estamos próximos do Inferno de Dante, para usar mais uma alegoria nesta situação que seria cômica, se não fosse trágica.

 

De resto, apenas aniquilar a fraude à execução como faz a MP nº 1.085 não resolve o problema do princípio da concentração absoluta do registro imobiliário. Tal como descrito em diversas passagens do nosso livro Compra de imóveis: aspectos jurídicos, cautelas devidas e análise de riscos (atualmente na 14ª edição), há fatos e ato jurídicos que dizem diretamente ao imóvel, mas podem não estar presentes (registrados, averbados ou indicados) no registro imobiliário. Há também, além da fraude à execução, outros fatos ou atos jurídicos que, embora não digam respeito diretamente ao imóvel, podem afetar a aquisição do bem por parte do comprador, sem qualquer menção na matrícula do imóvel.

 

Descrevemos no mencionado livro essas situações. Neste pequeno artigo, podemos citar como exemplos de fatos ou atos jurídicos que dizem respeito diretamente ao imóvel o problema dos terrenos de marinha não demarcados, que podem constar no registro imobiliário como de propriedade particular, mas podem vir a ser demarcados como terrenos de marinha, pois são bens da União. A demarcação prevalece sobre o registro imobiliário. Há súmula do STJ a respeito, bem como recente decisão do STJ a respeito do processo de demarcação. Outro exemplo é o direito real de habitação decorrente do direito de família. Como exemplo de fatos ou atos jurídicos que não dizem respeito diretamente ao imóvel, mas podem afetar sua aquisição, podemos citar a regra contida no art. 185 do Código Tributário Nacional, que prescinde de ação judicial, não se confundido por essa razão com a fraude à execução.

 

Há outras situações, razão pela qual a MP nº 1.085 nem de longe resolve o problema do princípio da concentração no registro imobiliário e da segurança jurídica das operações imobiliárias apenas porque, por via reflexa, tenta aniquilar a fraude à execução na hipótese de vendedor tendente à insolvência. Além dos exemplos mencionados neste artigo, o livro trata das demais situações em que o princípio da concentração no registro imobiliário deixa de ser absoluto e não prevalece na prática.

 

Portanto, em vez de aumentar a segurança jurídica, a MP 1.085 cria problemas adicionais a esse respeito.

 

Fonte: Migalhas

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