(Princípio da especialidade -Sexta parte)
 
273. Deflui do nem sempre considerado discrimen entre a determinação e a especialidade subjetivas um consequente relativo à higidez do registro imobiliário: a indeterminação subjetiva é causa de nulidade absoluta do registro, ao passo que o vício da especialidade subjetiva é apenas uma irregularidade com variável graduação.
 
Mas aferir a indeterminação subjetiva é um assunto de aferição casual (scl., em cada caso) e resultante quase sempre da eficácia societária do registro. Isto põe em tela problemas teóricos complexos, p.ex. o do grau de evidência social exigível para a determinação de que se trata; ou ainda a justificativa de limitar o caráter per se nota dessa evidência às fronteiras da circunscrição imobiliária correspondente (o que faz contraponto com a eficácia erga omnes característica das inscrições prediais). Deixemos estas questões, contudo, somente aconselhadas a meditação futura.
 
274. A especialidade subjetiva no registro de imóveis, como está visto já, é uma das três partes da especialidade imobiliária, ao lado da objetiva e da do fato inscritível.
 
O objeto próprio dessa especialidade subjetiva são os atributos da pessoa enquanto importem para determinados efeitos jurídicos. Corresponde à ideia de estatuto, estado ou situação jurídico-pessoal (interessa, a propósito, referir que o art. 25º do vigente Código civil português menciona o “estado dos indivíduos”); isto abrange as qualidades que, segundo a variação dos direitos positivos, influenciem quer a capacidade para fruir um direito −capacidade de direito ou de gozo−, quer a de exercê-lo (capacidade de exercício). Entre esses atributos contam-se, de comum, quanto às pessoas físicas, os relativos ao nome, à filiação, à nacionalidade, à situação matrimonial, ao domicílio.
 
A especialidade subjetiva, pois, bem vistas as coisas, permite reconhecer −ou confirmar− um sujeito de direitos, ou seja, um sujeito ativo ou passivo de relações jurídicas. Assim, o que se obtém com a especialização subjetiva é reconhecer que uma dada pessoa é um centro possível de imputação de efeitos jurídicos (vidē, a propósito, Manuel Domingues de Andrade, nas páginas inaugurais da Teoria geral da relação jurídica). E isto, de tal maneira, que, em rigor, se ponham em recíproca relação necessária a capacidade de direito (inerente à ideia de estatuto ou estado jurídico-pessoal) e a personalidade. Neste sentido, vale mencionar uma gráfica passagem de Domingues de Andrade: “Não se pode ter personalidade e ser-se inteiramente desprovido de capacidade. Nem o contrário” (veja-se, porém, que, com a expressão “inteiramente desprovido de capacidade”, este autor não implicita ser a capacidade idêntica essencialmente à personalidade, embora, a páginas tantas, diga também que se trata de “conceitos idênticos”; mas, com efeito, não o são; são conceitos distintos: a personalidade é sempre um absoluto −ou se tem ela ou não se tem−, ao passo em que a capacidade pode suportar graduação −nesta linha, entre nós, a autoridade de Carlos Roberto Gonçalves, apoiado numa referência de Moreira Alves que, por sua vez, remete à doutrina de Barbero).
 
Deve ler-se, pois, cum grano salis, o que dispunha a segunda parte do art. 1º do Código de Seabra (“Só o homem é susceptível de direitos e obrigações. Nisto consiste a sua capacidade jurídica, ou a personalidade jurídica”), e, por igual, o disposto no art. 1º do Código civil brasileiro em vigor: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.
 
275. Definir ou confirmar um estatuto pessoal é individualizar relacionalmente (talvez melhor: personalizar singularmente na ordem social −ordem, pois, dotada de essencial alteridade).
 
Alexandre Corrêa e Gaetano Sciascia ensinaram que, com o termo status, quer significar-se “a situação de um indivíduo respectivamente a um conjunto de relações”. Status é, pois, uma posição, dentro dos grupos sociais em que se encontra o indivíduo. Por mais, de fato, que, nos tempos modernos e contemporâneos, ganhe força a nota de autonomia individual, o conceito e a realidade do status são sempre relacionais, postos numa ligação social e jurídica segundo o estatuto do indivíduo correspondente.  .
 
276. O nome estatuto deriva do latim status, que significava, entre os romanos, o conjunto das qualidades com reflexo na capacidade jurídica [averbe-se, contudo, que essa acepção não era única: status correspondia também a estamento ou corpus −significação que sobreviverá nos três estados do Ancien Régime−, indicava não menos a condição do governante (status principi), da nação ou do reino (status regni), bem como a segurança de Roma: status romanus; é de Álvaro D’Ors, entretanto, a observação de que a palavra latina status só na Idade Moderna adquiriu o sentido de Estado político; em dado período, ademais, os status relevantes na vida do expandido Imperium romanum foram o econômico, o nobiliárquico, o militar e o burocrático].
 
Três eram os principais status no direito romano: familiæ, civitatis e libertatis. A plenitude da capacidade jurídica, em Roma, apenas a obtinha quem possuísse estes três status: a condição de liberdade (status libertatis) era indispensável ao status civitatis (que foi, a um tempo, negado aos escravos e aos estrangeiros −os peregrini); ser paterfamilias configurava o ponto graduado do status familiæ: os que se submetessem à autoridade do paterfamilias não tinham capacidade para adquirir próprios direitos.
 
277. Para o registro de imóveis importa considerar o estatuto jurídico-pessoal enquanto relacionado (ou relacionável) aos direitos patrimoniais imobiliários.
 
Pode mesmo pontualizar-se a caracterização da especialidade subjetiva, para o registro predial, dizendo-a individualização dos sujeitos ativos e passivos com interesse jurídico singular em uma relação patrimonial-imobiliária.
 
Isto demarca, em linha de princípio, o que se deva recrutar do estatuto pessoal para a inscrição no registro de imóveis. Suponha-se que uma pessoa −Mateus Crassus− padeça de alergia à lactose; esta informação, relevante no âmbito das relações de consumo, nenhum interesse possui para o registro predial; ou ainda que outra pessoa ostente grau superior de escolaridade: isto não tem relevo para o registro de imóveis, embora possa tê-lo, por exemplo, para o processo penal; noutro caso, nada se vê possa interessar ao registro imobiliário saber que Tício seja paciente de coreia de Huntington (embora esta notícia haja de pôr de orelha em pé um corretor de seguros de vida).
 
Cabe à lei assinar os elementos que devam constar do registro para os fins da especialização subjetiva, e, no caso brasileiro, indicam-se, para a matrícula, o nome, o domicílio e a nacionalidade do proprietário, e, se pessoa física, seu estado civil, sua profissão, o número de sua inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de identidade, ou faltando este, sua filiação (prossegue a lei: “tratando-se de pessoa jurídica, a sede social e o número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério da Fazenda”).
 
Quanto às demais inscrições no Livro n. 2 do Registro de Imóveis, prevê-se a indicação do nome, do domicílio e da nacionalidade do transmitente, do devedor, do adquirente, ou credor, e repetem-se as demais exigências já acima referidas (vidē art. 176 da Lei n. 6.015/1973).
 
278. Alguns outros elementos de status devem, no entanto, estimar-se importantes para o registro imobiliário: pensem-se, por exemplo, nos estatutos pessoais correspondentes à ausência, à emancipação e à interdição (cf. o art. 9º do Código civil brasileiro; dispositivo, de resto, que fulmina a tese do numerus clausus −interior à Lei brasileira n. 6.015− quanto aos atos registráveis stricto sensu).
 
279.Soa evidente que os status pessoais devam confirmar-se por meio de documentos públicos idôneos, e uma parcela dos atributos das pessoas demanda prova registral (assim, os dados de nome, nacionalidade, estado civil, por exemplo). Prova registral esta que só pode provir do registro civil das pessoas naturais.
 
O que faz o registro de imóveis é replicar −sem, contudo, dotar-se de eficácia probatória quanto ao status pessoal inscrito− o que está assentado no registro civil.
 
Não parece bem que esses dados −sendo eles próprios das atribuições do registro civil das pessoas naturais (para o caso brasileiro: art. 29 da Lei n. 6.015, de 1973)− possam suprir-se por declarações notariais. Pode o notário certificar, com fé pública, que viu uma certidão do registro, mas não pode fazê-lo com relação à veracidade do conteúdo dessa certidão.
 
280. Há algo mais.
 
O escopo determinativo dos sujeitos, no registro de imóveis, permite que neste se recolham dados adicionais que, próprios embora do registro civil, deste não constem.
 
Ponhamos aqui em destaque o tema do nome (o que, por si só, já vem com suas complicações; bastaria cogitarmos dos pseudônimos, dos nomes comerciais e, como foi posto em moda recente, dos nomes sociais).
 
É cediço considerar que o nome das pessoas naturais é um bem de sua personalidade, um bem de sua identificação pessoal. Adquire-se por filiação, pelo casamento, pela mudança oficial autorizada e até por meio de prescrição aquisitiva (cf. o paramétrico Raymond Lindon, Les droits de la personnalité).
 
Não se quer pôr aqui em discussão um tema que diz respeito mais direto ao estudo dos direitos da personalidade e do registro civil −qual o de saber se e quando um nome fictício, um pseudônimo, adquire, por sua notoriedade, o direito de reputar-se bem de identidade pessoal.
 
À margem de debater sobre os meios de exercício e proteção desses nomes fictícios, o que aqui se almeja considerar é um problema com propositada demarcação factual: o registro de imóveis pode incluir, para fins de subsídio de determinação subjetiva, alcunhas, pseudônimos, nomes literários, artísticos, etc., sem que isto produza efeitos, necessariamente, junto ao estado jurídico que se publica no registro civil.
 
Assim, suponha-se que Mateus Crassus (a quem se fez referência anterior) −tal se indica seu nome, Mateus Crassus, no assento civil de seu nascimento− leve, ao registro de imóveis, uma escritura notarial em que, adicionalmente, haja referência a um seu nome artístico ou literário (p.ex., “Mateus Chubby”). Não se pode recusar que, do registro imobiliário, conste “Mateus Crassus, também conhecido por Mateus Chubby, brasileiro, solteiro, etc.” Isto não maltrata a unicidade civil do nome, contanto que se preserve a menção do nome constante no registro das pessoas naturais (nome oficial que deverá enunciar-se em todo título que advenha para posterior inscrição predial, porque a referência “Mateus Chubby” só será aí um meio adjutório de determinação, sem implicar mudança no status pessoal que, neste quadro, apenas poderá resultar do registro civil).
 
Prosseguiremos.