Conforme afirmei no artigo anterior, não vejo distinção entre a família formada pela união estável e a formada pelo casamento.
 
Há, no entanto, é claro, diferença entre uma situação de união estável e o que se poderia chamar de um simples namoro.
 
Estou convicto de que uma adequada análise de qualquer ato ou negócio jurídico deve sempre se iniciar pelo plano da existência, na linha proposta por Pontes de Miranda. Neste, devem-se verificar os elementos essenciais do ato ou negócio, que são o(s) sujeito(s), o objeto e a vontade. Sem qualquer desses elementos, o ato ou negócio simplesmente não existe.
 
Alguns casos que na prática podem gerar tanta dor de cabeça, como o da união estável x namoro, e até o do Uber, talvez se resolvessem por uma melhor análise dos elementos essenciais do negócio de que se trata, sobretudo da vontade.
 
O que difere a união estável do simples namoro, afinal, é a vontade. Em ambos os casos, os sujeitos e o objeto são os mesmos.
 
Na linha que sigo, o negócio jurídico que se passou a denominar união estável se forma quando sujeitos se aproximam para manter um relacionamento conjugal com o intuito de estabelecer uma comunhão de vida. Daí se depreendem os elementos objetivo e subjetivo da união estável, respectivamente: o vínculo conjugal, ou seja, a existência de relações sexuais; a comunhão de vida. É a comunhão de vida que fará surgir daquela relação uma entidade familiar, ou seja, uma família.
 
Por sua vez, o simples namoro consiste no negócio que se estabelece entre sujeitos que se aproximam para manter um relacionamento conjugal, sem o intuito de estabelecer uma comunhão de vida. Daí que o simples namoro se configura pela existência de relações sexuais habituais; mas, como não há intenção de estabelecer comunhão de vida, não surge, do namoro, uma família.
 
Agora, para que não surjam dúvidas, é preciso esclarecer que, tanto no caso da união estável, quanto no do simples namoro, a ideia de vínculo conjugal e de relações sexuais não se refere especificamente a nenhum dos atos sexuais — pode, no caso concreto de um namoro, por exemplo, limitar-se ao beijo de língua —, mas exclui outras relações afetivas em que não há nenhum contato sexual — como a que se estabelece entre irmãos, entre amigos etc.
 
Que difere, então, a união estável do simples namoro?
 
Como, em ambos os casos, há o elemento objetivo, o relacionamento conjugal, o que será determinante para configurar a união estável ou o simples namoro será o intuito de estabelecer comunhão de vida, ou seja, a vontade dos sujeitos.
 
Certamente o leitor já deve ter lido outro autor escrever que o que configura a união estável é a intenção de constituir família. Ao mesmo tempo em que a afirmação não está exatamente errada, também não é precisa.
 
Senão, vejamos. Quando duas irmãs decidem passar a viver juntas, mudando-se para um mesmo imóvel, e passando a dividir o dia-a-dia, estabelece-se entre elas um vínculo que faz surgir uma família, porém de núcleo parental (aquele em que não há relações sexuais). (Vale relembrar, no livro de Direito de Família que você usa, a diferença entre as famílias de núcleo conjugal e as famílias de núcleo parental).
 
Por isso, se eu digo que “Caio e Maria estão vivendo juntos porque querem constituir família”, eu não sei se há entre eles união estável. Isso dependerá do outro elemento que a constitui: o vínculo conjugal. Se Caio e Maria forem amigos, por exemplo, e quiserem constituir um núcleo familiar parental, haverá família, mas não união estável. Todavia, se Caio e Maria tiverem um relacionamento sexual, aí sim, somando-se esse elemento à vontade deles de constituir família, haverá união estável.
 
Por isso, prefiro não dizer tão somente que a união estável surge entre sujeitos que têm vontade de constituir família, mas que surge do relacionamento conjugal de sujeitos que têm o intuito de estabelecer uma comunhão de vida.
 
Por fim, eu diria que há dois obstáculos que a prática impõe a essa distinção — que é, na teoria, simples.
 
Primeiramente, o Código Civil escolheu como regime de bens padrão da união estável, ou seja, aquele que vale se os conviventes não tiverem escolhido outro, a comunhão parcial (art. 1.725). Eu bem acho que melhor teria feito o legislador se tivesse escolhido o da separação absoluta — o que não impediria os conviventes, por óbvio, de preferir o da comunhão parcial.
 
Em razão da regra legal, quando alguns conviventes descobrem, ao final do relacionamento, que são meeiros do patrimônio adquirido na constância do relacionamento, mesmo tendo havido entre eles o vínculo conjugal e o intuito de estabelecer comunhão de vida (sem o que, aliás, o regime de bens nem se aplicaria), um deles passa a negar que a união tenha existido, para evitar a partilha. E, como o que difere o namoro da união estável é justamente o elemento subjetivo, ou seja, aquele que é difícil de provar — a intenção dos sujeitos —, o conflito se instaura. Já houve caso concreto em que a gota d’água na formação da convicção do juiz foi o fato de que o sujeito que negava a existência anterior do relacionamento havia mantido seu status de relacionamento no Facebook durante o período da suposta união estável como “em um relacionamento sério com” a pessoa que afirmava ter havido a união. E, com base nisso, o juiz declarou a existência da união estável.
 
Em segundo lugar, é preciso reconhecer que, muitas vezes, os próprios sujeitos têm dificuldade de enxergar, com clareza, a sua intenção no relacionamento; outras vezes, enxergam sua vontade, mas não compreendem que esta muda a natureza jurídica do seu vínculo.
 
Afinal, se, por um lado, é fácil perceber a transição entre o simples ficar — existência de relações sexuais eventuais — e o namoro — quando a relação se torna habitual —, pode não ser tão simples dar-se conta do momento em que o simples namoro tornou-se algo mais sério.
 
No passado, quando, em um modelo diferente de sociedade, o namoro era um relacionamento entre pessoas que moravam separadas, em geral com os pais, e que só se viam em público, e cujo contato sexual sexual limitava-se a um beijo, ou a andar de mãos dadas, sua configuração era bastante mais simples.
 
Porém, no século XXI, não se estranha que namorados tenham qualquer tipo de contato sexual, e é até comum que morem juntos.
 
A tão só prática dos atos sexuais não é suficiente para transformar o namoro em união estável, como estamos dizendo. Mas, a intenção de estabelecer uma comunhão de vida, sim.
 
Ora, a partir do momento em que os sujeitos dividem as alegrias e as tristezas da vida, viajam juntos, passam os momentos de lazer juntos, sofrem juntos, e até mesmo moram juntos, como afastar o elemento subjetivo configurador da união estável?
 
Não é, certamente, elaborando um instrumento escrito para o acordo, incluindo nele cláusula excludente de união estável. O que configura a união estável é a presença dos seus elementos configuradores, não uma cláusula contratual, tal como o que configura o contrato de trabalho não é a forma do contrato ou o nome que se lhe dá, mas a habitualidade, a subordinação e a remuneração.
 
Quando namorados descobrem que a lei os considera conviventes em união estável, e quando não querem partilhar bens, o que devem fazer não é simplesmente negar a união estável por meio de uma cláusula contratual, mas, por meio de um instrumento bem feito, optar pelo regime da separação.
 
* Advogado e consultor jurídico do Escritório Elpídio Donizetti Advogados. Parecerista e conferencista.