(Princípio da legalidade -Terceira parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
305. Como já ficou dito, na vida dos povos primeiro veio o direito (nascido e solidado nos usos e costumes), só depois veio a lei das potestades.
Tenha-se em conta, a propósito, esta passagem do muito autorizado Lewis Mumford:
 
“Tais conselhos espontâneos [refere-se o autor aos conselhos de anciães de aldeia], unificados pelo uso e pela necessidade, expressavam o consenso humano, não tanto por estabelecer regras e tomar novas decisões, quanto por dar alguma aplicação imediata a regras aceitas e as decisões tomadas num passado imemorial” (no imperdível A cidade na história).
 
E não diversamente, o idioma acompanhou esta precedência do direito como res iusta, estendendo-se, porém, o vocábulo para acolher outras significações −analógicas−, assim as de arte de discernir o justo, lugar onde se outorga a coisa justa, sentença proferida por quem possui o ofício de administrar a justiça (officium pertinet iustitiam facere) e a lei (cf. S.Tomás de Aquino, S.Th., IIa.-IIæ., q. 57, art. 1º, ad 1um e ad 2um).
 
306. Todavia, para bem saber que coisa é a lei −e sabê-la interessa aqui à compreensão mais completa do princípio da legalidade−, precisamos saber antes que coisa é o direito.
 
Terminamos de ver que, em muitíssimos idiomas, a ideia de “direito” corresponde a vocábulos derivados do latim derectum (ou directum). E isto põe em cena uma questão interpelante: por que os romanos tinham duas (na verdade, três) palavras para significar a noção e a realidade do direito?
 
Assim, trataremos de examinar agora a razão (muito provável) pela qual, em Roma, o uso da palavra ius para significar “direito” não inibiu que se formasse e empregasse outra, com, na essência (mas não em todos os aspectos), igual significado, a palavra derectum (que, mais à frente, passou a dizer-se directum).
 
A explicação deste ponto é relevante não só para salientar a complexidade da matéria jurídica, mas para bem compreender o próprio termo latino de + rectum, o que servirá de guia para demarcar −tal importa em nosso campo de estudos− a adequada subalternação do registrador de imóveis ao princípio da legalidade.
Em outros termos: pode o registrador atuar algum tipo de equidade em sua complexa função qualificadora?
 
Veja-se, portanto, que nosso tema não é puramente especulativo, nem estranho à atividade do registrador, senão que se constitui por fundamental para o estatuto da qualificação jurídico-registral.
 
307. Neste capítulo, socorrer-nos-emos principalmente das lições deste grande romanista que foi Sebastião Cruz (1918-1966), para quem as palavras traduzem ordinariamente símbolos, os quais, por sua vez, refletem uma realidade complexa e profunda que uma palavra isolada não consegue exprimir.
 
O símbolo, diz nosso autor, é algo que subsidia o homem na “expressão dinâmica de seu pensamento” e chega a ser “a linguagem acessível do difícil ou até do incompreensível”. Aqui se encontra a chave de as religiões e as mitologias se valerem de símbolos para exprimir seus mistérios, seus ritos, suas liturgias: pense-se, brevitatis causa, nas várias dezenas de parábolas que frequentam os Evangelhos; são metáforas que, de modo mais simples e claro, simbolizam uma realidade complexa; assim a parábola do semeador, a do joio e do trigo, a da semente da mostarda e do fermento, etc..
 
Em suma, as palavras traduzem símbolos, símbolos que são expressões anteriores significativos da realidade, e é com passar do tempo que as palavras tendem a substituir os símbolos na representação das coisas.
 
Mas os símbolos são frequentemente complexos. Neles tudo apresenta significado, e, como já de deixou dito, nem sempre uma só palavra isoladamente consegue traduzir e substituir a complexidade significativa de um símbolo.
 
Daí que surjam, às vezes, várias palavras para exprimir um mesmo símbolo e só assim serem elas hábeis para expressar, em seu conjunto oral ou literal, uma realidade complexa que já se abarcara numa anterior unidade simbólica.
 
308. O grande símbolo do “direito” é a balança: uma balança de dois pratos, com ou sem um fiel  −o fiel que é uma haste ou um fio indicativo de equilíbrio e que se ostenta entre esses pratos “perfeitamente a prumo” (é dizer, perfeitamente vertical).
 
Parece ser que a ideia de “balança de dois pratos” −muito frequente na história humana− derive de uma dada imitação das mãos e da cabeça do homem, valendo aquelas (as mãos) pelos pratos da balança, e a cabeça, pelo fiel.
 
Há indícios de essa balança de dois pratos se ter usado no Egito, faz quatro ou cinco mil anos, e o emprego metafórico da ideia de “balança” se anunciara já na pesagem da alma pelo principal dos deuses mitológicos egípcios −Osíris, o deus dos mortos, o protetor das famílias.
 
Não menos, vamos encontrar a metáfora da balança no Antigo Testamento −inter plures, no Levítico (“Tereis balanças justas, pesos justos…”), no Livro de Jó (“…se pudessem pesar minha aflição, e pôr na balança meu infortúnio”; “que Deus me pese em justas balanças”),  em Oseías (“Esse mercador tem uma balança falsa e ama a fraude”)− e, também, no Apocalipse: ao abrir-se o terceiro selo, vê-se que o cavaleiro que monta o cavalo preto traz uma balança na mão.
 
É ainda hoje correntio, de mais a mais, compararmos vulgarmente os pesos de duas coisas, para isto estendendo os braços e inclinando a cabeça para a que mais pesa, e a metáfora do “homem-balança” estende-se ao peso e ao contrapeso de razões, de vantagens e desvantagens, de modo que é rotineiro dizer, em português, que “pesamos” razões, “ponderamos” motivos e argumentos, etc. (o verbo latino pondero, infinitivo ponderare, propriamente significa “pesar”).
 
309. Tal o observou Sebastião Cruz, embora a balança de dois pratos seja o símbolo magno do direito, ela não exaure todo o complexo significado de “direito”.
Daí vem que à balança se enseje, entre os gregos, a conjunção simbólica de um deus mitológico: Zeus, suprema encarnação da justiça para a Grégia pagã. Adiante, substituiu-se Zeus por uma deusa secundária, Thêmis −que segura a balança com os pratos bem nivelados (vale dizer, sinal visível da igualdade, porque a balança grega não tem fiel); limita-se Thêmis a cumprir as ordens de Zeus (thêmistes é o “direito” ditado ou imperado por Zeus, transmitido por Thêmis −que por algo viria a ser não a “deusa da justiça”, mas a “deusa da lei” −cf. Pierre Grimal). Mais à frente, Dikê, filha de Zeus e Thêmis, é a nova deusa da justiça grega: tem ela na mão direita uma espada e, na esquerda, a balança; está de pé e com os olhos abertos, simbolizando especialmente a administração da justiça (para isto serve a espada). Dikê é quem diz o direito (dikaión), declarando solenemente o justo quando os dois pratos da balança estão nivelados de maneira igual (isos).  O que conta aí é o império e a administração (ou execução) desta igualdade.
 
Entre os romanos, o primeiro símbolo completo do direito apresenta Júpiter −correspondente ao Zeus da mitologia grega− com uma balança de dois pratos e o examen (o fiel) aprumado ao meio desses pratos. Substituiu-se adiante Júpiter por Dione (similar à deusa grega Thêmis) e, ao fim, apareceu a deusa romana Iustitia, assemelhada à grega Dikê, embora a Iustitia não porte uma espada, segurando com as duas mãos a balança que tem o fiel bem ao meio, e tendo os olhos vendados, ao revés do que se passa com Dikê.
 
Num primeiro momento, com as palavras thêmistes e ius o direito mostra-se sobretudo com a potestade, com a ordem emanada de um poder; com o dikaión grego, já então se declara solenemente (“dá-se a sentença”), observada a condição de que os pratos da balança estejam nivelados (isos). Assim, não se trata só de um mandado de poder, mas de uma declaração de igualdade;
 
Um tanto mais agudizado em Roma, se o ius é o que diz a deusa Iustitia (quod Iustitia dicit), já num segundo momento derectum pressupõe que o examen ou fiel esteja a prumo, vale dizer: esteja reto −rectum−, integralmente, intensamente, perfeitamente reto: por isto, reforça-se a palavra rectum com um prefixo que intensifica seu significado (o afixo de), formando-se o vocábulo derectum (de + rectum).
 
Paralelamente, pois, ao sentido do grego dikaión (“o que diz”), a palavra latina ius significava quod Iustitia dicit −o que a deusa Iustitia diz, mas não apontava o conteúdo da intensa retidão. O ius, para os romanos, era apenas o que procedia de Iustitia. Já a palavra derectum, depois alterada para directum, capta e expressa um núcleo essencial de “direito”: a igualdade dos pratos da balança, o aprumo do examen, isto indica “um certo movimento de cima para baixo” (Sebastião Cruz), como que a referir uma ideia de totalidade, de perfeição, que resulta das divindades (Zeus, Thêmis, Dikê, Júpiter, Dione, Iustitia).
 
Salta, pois, à vista que derectum é o totalmente reto, o muito reto, o plenamente aprumado ou vertical, ao passo em que o ius significava meramente algo ditado pelo juiz (anotou Álvaro D’Ors: “ius est quod iudex dicit”). Derectum é algo além, porque exige que o ius seja intensamente rectum.
 
Disso advém a conclusão −aqui expressa de modo sinóptico− que para o ius ser verdadeiramente derectum não bastava provir de uma potestade (executiva, legislativa ou judicial). O derectum já impõe que o ius seja dotado de aprumadíssima retidão, é dizer, que a igualdade se consume pelo bem realmente devido a outrem.
 
310. Isto nos leva a situar o princípio da legalidade no plano mais agudo de um princípio da justiça, da res iusta, do derectum. Ou seja, não basta pensar na mera existência de uma lei, de uma sentença, de um mandado −o ius como quod potestas dicit−, senão que a verdadeira legalidade é a da ordenação para o muito reto, a ordenação para aquilo que dá a cada um o que é seu (suum cuique tribuere), de sorte que a lei se caracterize como um simples meio ou instrumento de realização do rectum, do derectum.
 
Mas se é assim, como considerar este liame lei-direito na praxis registral, em que o registrador se posta em face de uma imposição normativa heterônoma da qual não se pode, em princípio, apartar, sob pena de converter-se em um iudex de legibus, é dizer: um juiz que julga da lei e não segundo a lei?
 
Estaria o registrador circunscrito ao papel servil de ser um executor de qualquer gênero de ordens, justas ou injustas, conformes ou não ao examen da balança de dois pratos?  Ou, ao revés, teríamos a fatalidade de convertê-lo em um juiz e, para mais, um juiz ativista? Haverá um ponto médio?
É o que buscaremos considerar em nosso próximo artigo desta série.