(Princípio da legalidade -Sétima parte)
Des. Ricardo Dip
 
347. O discurso de qualificação registral é próprio da razão prática, ou seja, é uma operação intelectual que trata de coisas que o homem deve fazer ou agir −de rebus operabilibus ab homine… de actibus hominum, como deixou dito o gênio de S.Tomás de Aquino.
 
Diversamente, o entendimento especulativo ou teórico se dirige à só contemplação de uma verdade estabelecida −à contemplação de um necessário. Já o fim do entendimento prático, todavia, é o operável (rectius: o agível e o factível). Assim, a razão teórica é apenas apreensiva; a prática, também causativa (ratio vero practica est non solum apprehensiva, sed etiam causativa −S.Th., IIa.-IIæ., q. 83, art. 1), e causativa de coisas singulares e contingentes −singularia et contingentia, porque as coisas contingentes sempre ocorrem nos singulares e sobre os singulares (cf. Santiago Ramírez).
 
Aqui se põe a clave da tarefa qualificadora que se atribui aos registradores: não têm eles uma simples incumbência cognoscitiva, é dizer, de reconhecimento de uma verdade já estadeada, acabada, terminada, mas, isto sim, a tarefa de dirigir-se a algo ainda pendente de realização e sobre cujo valor singular (ou mais exatamente: sobre cujo bem ou mal, justo ou injusto, lícito ou ilícito) deverão eles decidir para aplicar uma dada norma jurídica.
 
Tudo isto envolve uma série de questões, entre elas a da independência do decisor e a do grau de certeza emanada da decisão prática.
 
348. O discernimento do valor concreto de uma ação −ou, dito de modo mais próprio, do bem ou do mal, do justo ou do injusto, do lícito ou do ilícito de uma ação singular− depende de uma disposição intelectual. Não se desse, com efeito, uma dada inclinação ao objeto, não se admitiria possível discernir esse “valor”.
 
Equivale a dizer que, não bastando ao registrador, para bem exercitar suas funções profissionais, um mero conhecimento especulativo das normas jurídicas, porque tem esse registrador a atribuição de julgar se um título individuado, concreto, pode ser, em sua singularidade, inscrito nos livros do ofício predial, de maneira que é necessário possua o registrador uma disposição do entendimento −uma inclinação de ordem intelectual− para o exercício desta arte de julgar.
 
Essa disposição prepara, qual uma potência em movimento, a perfeição a que se dirige, e, reiterando-se, conclui em formar o que os gregos chamavam de “phrónesis”, e os romanos, prudentia. É dizer já um hábito (e hábito virtuoso; virtude, uma das quatro cardeais).
 
349. Duas coisas convém de logo observar: (i) que essa disposição −ou mais adequadamente: a reiteração dela− pode educar-se; (ii) que o hábito conaturaliza as operações a que corresponde. É possível, pois, educar a prudência registral e, com isto, permitir a mais pronta e fácil operação a que destina.
 
A prudência é um hábito formalmente intelectual, mas, pela matéria a que se refere (matéria circa quam), admite-se que seja sob certo aspecto uma virtude moral. Ora bem, as virtudes morais demandam repetição de atos, em nosso quadro: exigem a experiência registral. Já era lição de Aristóteles a de que os jovens podem ter muitas virtudes, mas entre elas não têm a da prudência, porque esta reclama sempre a reiteração de atos, a experiência.
 
A repetição pessoal de atos gera dispõe para a pronta e fácil prática de novos atos de algum modo símiles, porque essa repetição grava uma qualidade na correspondente potência humana (inteligência, vontade ou apetite sensitivo), tal como se a reiteração de um molde em determinada matéria fizesse com que ela estivesse crescentemente mais disposta, com prontidão e facilidade, a receber esse molde.
 
A experiência da similitude prática −ou repetição de atos semelhantes− faz com que se gere uma qualidade ou hábito semelhante, que pode incrementar-se extensivamente (é dizer, abarcando maior número de objetos: p.ex., o alargamento da ciência) e intensivamente (ou per se, quando mais e mais os atos se vão tornando com perfeição crescente).
 
350. Mais pontualmente, contudo: que é a prudência −quid est prudentia?
 
Georges Kalinowski, polonês que foi um grande pensador do direito e da lógica (1916-2000), ao tratar da “prudência” em um pequeno, mas interessante estudo (“Aplicação do direito e prudência”, 1967) , tomou por ponto de partida o fato de que todos conhecemos pessoas prudentes e pessoas imprudentes. E é da estimativa e da linguagem correntias que digamos daquelas primeiras serem habitualmente prudentes, ou seja, que delas sempre parecemos esperar que tenham agido ou ajam de modo natural, rotineiro, fácil, prontamente, como deveriam mesmo ter agido ou devam de fato agir. Enfim, uma pessoa prudente é a que faz tudo comme il faut, como se deve. E às pessoas imprudentes, ao revés, o que censuramos é o de que não ajam ou não tenham agido como deveriam.
 
A prudência é um hábito, um modo de ser permanente, estável, dinâmico (ou operativo −quoad operari), que dispõe a agir bem. (Não custa aqui lembrar que há outros hábitos operativos, além da prudência: a justiça, a fortaleza e a temperança). Mas este “agir bem” supõe não apenas algum conhecimento do universal (os primeiros princípios da razão humana), senão que, e isto especialmente, conhecer a concreta situação do caso e suas circunstâncias singulares.
 
O homem prudente é o que ensina a verdade prática −ou médio− para a realização das outras virtudes morais, estas que são não cognoscitivas (a justiça radica na vontade; a fortaleza, no apetite irascível; a temperança, no apetite concupiscível; ou sejam, são hábitos não cognoscitivos). É exatamente a prudência a causa pela qual essas outras virtudes, as morais, são virtudes (cf., a propósito, Josef Pieper), porque a prudência dita à justiça, à fortaleza, à temperança (e às anexas delas todas) o bem singular que se há de agir aqui e agora, o mal singular que se há de evitar aqui e agora.
 
Ou seja, não se trata de, com o hábito da prudência, discutir sobre o universal ético ou jurídico, mas sim sobre o bem e o mal concretos, sobre o justo e o injusto pontuais, sobre o lícito e o ilícito singulares de uma dada ação hic et nunc. Assim ensinou Leopoldo-Eulogio Palacios: “Yo quiero saber cuál es el bien que tengo que hacer aquí y ahora, y cuál es el mal que tengo que evitar en este instante”.
 
Daí a excelência da definição clássica de prudência: recta ratio agibilium −a reta razão do agir concreto.
 
351. Embora a prudência não dispense o conhecimento do universal (maxime do que lhe é ditado pela sindérese: hábito dos primeiros princípios da razão prática), o conhecimento mais relevante do hábito prudencial é a realidade concreta, a realidade agível: Pieper diz em exatas palavras que prudente é o que é conforme à realidade.
 
Ainda que o registrador prudente não seja o mesmo que o só registrador experiente −porque a experiência não tem a nota de universalidade que se assina à prudência−, menos ainda um só doutrinador do direito dos registros −o registrador que sabe as leis de cor (e até aquele gênio de memorização que parece recitar os códigos de normas do Judiciário!) será o mesmo, simpliciter, que um registrador prudente.
 
Este, o registrador prudente, combina o conhecimento do universal com a experiência registrária (que ensina a verdade nos fatos contingentes), e apenas assim pode abarcar a realidade inteira (em seu plano de universalidade e no de sua singularidade). Pode e deve conhecer os princípios e as regras, mas, sobremodo, há de conhecer a situação do caso concreto e suas circunstâncias.
 
Nossos tempos têm mostrado, ao revés, uma certa aversão à diagnosis del hecho (estas são palavras conhecidas de José Castán Tobeñas): sabe-se da jocosa referência à “perversão da tecla F3” do programa winword. O registrador prudente é, porém, o que conjuga a memória do passado com a observação do presente e a previsão do futuro. Não é um simples repetidor de soluções achadas num arquivo, tampouco, porém, padece desta obsessão cronolátrica dos que confundem o novo com o verdadeiro (isto é uma espécie de despotismo do tempo que passa).
 
Insistiremos no tema em nosso próximo artigo desta série.