(Princípio da legalidade – Oitava parte)
 
352. Como terminamos de dizer, uma dada animadversão à diagnose dos fatos concretos conjugada com uma tendência obsessiva ao tempo atual têm produzido algum (ainda pouco mas) indesejável efeito de uniformismo nas práticas do registro imobiliário brasileiro.
 
Uma coisa é a uniformidade solidada ao largo do tempo como resultado da boa praxis experienciada. Outra, o uniformismo abstracionista, apriorístico, idealista e que, não raramente, abdica mesmo do hábito intelectual da prudência.
 
 353. Por que alguns registradores tendem a fórmulas prontas, ao prêt-à-porter, inclinam-se a evadir a missão (nem sempre fácil) de serem juristas e, com isto, a acomodarem-se em ser, numa expressão de Rogério Erhardt Soares, “praticantes de farmácia”, consagrando-se meramente em atender de modo ritual à receita que lhes é entregue?
 
Vários são os motivos possíveis para esta conduta de abdicação do diagnóstico dos fatos pelo registrador e de sua inclinação a afeiçoar-se aos tempos que correm (obsessão cronolátrica).
 
Se sindicarmos o mais fundo destes comportamentos, encontraremos a “soberba da vida” (desejo desordenado da própria excelência), é dizer: um amor desordenado que induz à vanglória, de que é fruto o afã de novidades, e à preguiça, que é um dos produtos da acídia, do abatimento moral. Mas aí estão indicados vícios capitais, ou seja, raízes das deficiências comuns a todos os homens.
 
Em alguns outros casos, o temor reverencial ou o medo de punições são as causas da acomodação a modelos que nem sempre se ajustam aos fatos, mas, enfim, modelos que, com se adotarem, parecem retirar dos ombros o peso de uma responsabilidade pessoal.
 
354. Outros motivos, entretanto, aparentam instigar mais de perto um comportamento abdicativo da diagnose dos fatos na praxis registral.
 
Vem até mesmo a calhar, no Brasil, a tratativa deste ponto num momento político em que parece cogitar-se de uma gradual adoção de fórmulas uniformes para todo o registro imobiliário brasileiro.
 
Como não se desconhece, tem-se falado já em “Cartório Nacional” e em unificação federal do Livro n. 2 do registro imobiliário brasileiro, tudo sob a égide de um sistema técnico-eletrônico de registração.
 
355. Ninguém, certamente, recusará a importância da tecnologia para os registros, tamanhos o vulto quantitativo de sua tarefa, a complexidade de sua função, a celeridade que lhes é reclamada, até mesmo a amplitude da publicidade de que são incumbidos.
 
Mas uma coisa é o técnico; outra, o tecnocrata.
 
Uma coisa é a técnica como ferramenta para o registro; outra, o registro como ferramenta para a tecnocracia.
 
Uma coisa é o concurso de experts na parcela da atividade registral própria ao conhecimento técnico; outra, muito diversa, é a direção dos registros pelos técnicos: isto já é tecnocracia.
 
356. Que é a tecnocracia?
 
Esta palavra possui mais de uma acepção no usus loquendi:
 
(i)     pode entender-se como uma forma utópica de governo, que é o sentido manifesto que se encontra já em sua etimologia  (tecnos + cratos =poder da técnica);
 
(ii)    ou, senão isso, uma concepção de poder, “en que la decisión debe emanar del que está técnicamente capacitado para establecer los supuestos” (Roger Grégoire);
 
(iii) poderá comprender-se também como uma concepção acerca da gerência ou direção dos assuntos quer públicos, quer empresariais;
 
(iv)   ou, por fim, em uma acepção imbricada sobre os demais significados, uma despossessão dos responsáveis políticos, substituídos pelos técnicos (Grégoire).
 
357. Compendiando essas várias significações, podemos dizer que a  tecnocracia consiste na planificação, organização, gerência ou direção técnica da sociedade política ou das sociedades intermédias entre o Estado e o individuo, tal que −esta é a clave do conceito− os técnicos influam decisivamente no comando superior desses grupos, substituindo o papel de seus dirigentes.
 
Traduzindo isto para o âmbito particular dos registros: no campo de uma tecnocracia registral, os técnicos planificam, organizam, gerenciam ou dirigem os cartórios (que, não por acaso, já houve quem os prognostique convertidos em meros “escritórios” de uma grande central), comandando-os de modo superior, nisto substituindo o papel dos registradores.
 
358. Por mais possa reconhecer-se no conceito de “tecnocracia” uma dada noção especulativa do poder, a tecnocracia é, contudo, sobremodo, um exercício prático da direção dos assuntos que interessam ao poder.
 
Já isto o indicara Jacques Billy (in Les techniciens et le pouvoir, 1960), ao dizer que a tecnocracia é uma praxis (um exercício) no âmbito da economia, da indústria e do comércio, seja no âmbito do Estado, seja no de empresas. Uma praxis de planificação, de organização, de direção, de decisão, que se atribui a um pequeno grupo de homens −una elite− de formação técnica.
 
Ou seja, a tecnocracia é um governo de técnicos, mas governo de técnicos, enquanto técnicos.
 
A adequada compreensão deste juízo exige sua reduplicação: repete-se: governo de técnicos, mas governo de técnicos enquanto técnicos, na condição de técnicos. De maneira que é só quando os experts substituem os responsáveis políticos (em nosso caso, os registradores) e assumem o papel de decidir em seu lugar que surge a tecnocracia.
 
Bem o disse o grande filósofo e notário que foi Juan Vallet de Goytisolo, com a tecnocracia assumem o comando homens que, ao menos enquanto se disponham à tarefa do governo técnico, carecem de “una visión basada en un orden de valores determinado por las finalidades superiores”. E, em razão disso, a tecnocracia é um exercício de poderes não só acomodados a uma visão imanente de todas as coisas −na qual não cabem mais valores que não sejam os da economia−, senão que, também, a tecnocracia, por essência, deve exercer uma planificação e direção centralizadas e autoritárias: aos olhos dos tecnocratas, uma administração de coisas, uma busca de eficácia poiética (técnica), “l’assimilation −disse Claude Polin (in L’esprit totalitaire)− de toute société moderne à un vaste atelier”.
 
E como, por outro aspecto, os tecnocratas não têm outro fim que não seja a própria técnica hic et nunc −ou seja, como fez ver Juan Vallet, que apenas lhes interessa “lo que resulta materialmente experimentable en un solo momento”−, indiferente é o valor moral das consequências dessa praxis (ou melhor dito: dessa factio) tecnocrática. Nesse quadro, tão bem está saciar a fome do povo pelo aumento produtivo de alimentos, quanto pela redução, não importa como, de pessoas por alimentar. Assim o disse Patricio Randle, a regra de ouro da cultura tecnológica pode resumir-se nisto: “¿Es posible, es barato? Hagámoslo (…) No importa qué consecuencias humanas arrastre”.
 
359. Além disto, com dotar-se de poder de governo uma classe de especialistas, eles, os técnicos, opinam serem os únicos que detêm a chave de todas as questões, formando assim o muito limitado grupo superior dos que se poderiam chamar sacerdotes da tecnolatria, que, sobre o “mito do apoliticismo” (Grégoire) e  a aversão às ideologias (ou melhor, a tudo o que seja universal), constróem uma casta dirigida à dominação do “comum das gentes”.
 
360. A tecnocracia, no entanto, é ela própria uma ideologia, tomado o termo “ideologia” em uma acepção restrita, qual a de cosmovisão edificada mediante “puras construcciones mentales” (Vallet), às quais, contudo, na tecnocracia, concorrem técnicas muito rigorosas de realização. É um aparente paradoxo, claro, pois ao abstrato e difuso e fantasioso de sua concepção do mundo e da vida, a tecnocracia agrega um rígido, preciso e muito concreto conjunto de meios de toda ordem.
 
361. Não se autoriza no domínio da tecnocracia a compreensão da ordem do universo −há uma recusa tecnocrática nominalista à inteligibilidade do universal; e essa compreensão se substitui pelo exame de parcelas isoladas do todo. O conhecimento do técnico é restrito a um pequeno campo, demarcado em uma parte seccionada da realidade, e, sem embargo, ao técnico se atribui, na tecnocracia, a potestade do governo do todo da sociedade (ou do todo das empresas): nisto se vê a perda das noções de limites e de realidade (Vallet).
 
362. O projeto de instauração tecnológica de um “Cartório Nacional” de registro imobiliário, no Brasil, tal o apregoam alguns respeitáveis importantes pensadores pátrios, justifica, à evidência, a necessidade de retornarmos ao tema da tecnocracia −o que faremos em nosso próximo artigo desta série.