(Princípio da legalidade – Décima – quinta parte)
 
397. Assim o estamos vendo, a qualificação registral (sem prejuízo de seu sentido analógico de “procedimento”), sendo, propriamente, um juízo da razão prática do registrador acerca da justiça −num campo mais restrito: da segurança jurídica− de um ato singular de inscrição de um título, é o que também se pode designar, ainda que com alguma largueza expressiva, de consciência registral.
 
Em outras palavras, o registrador é convocado a decidir, na trilha de um discurso da razão prática, se um título que lhe é apresentado pode ou não registrar-se, ou por outra: se sua solicitada inscrição atende ao objetivo da res certa, do que é uma asseguração jurídica.
 
A experiência cotidiana põe às claras que essa qualificação −é dizer, essa consciência registral− falha algumas vezes. Não se trata aqui só, nem principalmente, dos casos em que o juízo de qualificação se revê e altera em instância posterior, porque sua reforma não significa automático acerto do segundo julgamento; há situações de evidente controvérsia, de soluções adotadas transitoriamente e que logo regressam a entendimentos anteriores, etc. O que neste quadro avulta é a notoriedade de um possível erro do juízo da consciência, de maneira que, ao lado da análise da divisão dos estados de consciência (a saber, consciência verdadeira, consciência falsa, consciência reta ou culpável, certa, duvidosa, perplexa, etc.), é também preciso considerar o papel normativo da consciência registral, até para demarcar adequadamente a atuação razoável do poder de disciplina.
 
398. A consciência é a norma subjetiva e próxima da ação humana, isto é, o julgamento conclusivo do entendimento prático sobre a conformidade de uma ação singular com o bem que é a finalidade desta mesma ação.
 
Nesta mesma linha, a qualificação registral é, pois, a norma subjetiva e próxima de uma inscrição pontual, ou ainda: o  julgamento conclusivo da razão prática sobre a licitude do registro de um título singular, para assim atender ao bem (res certa)  que é a finalidade deste mesmo registro.
 
Ora, assim já ficou afirmado, a normatividade da consciência é de caráter subjetivo, é dizer que opera no próprio sujeito actante, mas isto o faz por meio de uma conclusão do discurso prático. A consciência é um juízo conclusivo ou consequente de dadas premissas, e não uma fonte autônoma criadora de normas objetivas da ação. Ao revés, a consciência infere-se dessas normas, delas instruindo-se mediante as premissas do silogismo prático. Assim, a consciência não tem valor absoluto, e, embora seja um juízo de discernimento do bem e do mal concretos, do justo e do injusto pontuais, do lícito e do ilícito singulares, ela não decide isto por si só, senão que por intermédio do recrutamento de normas objetivas.
 
Sem embargo deste limite, a consciência é também uma norma de ação, é a norma subjetiva e próxima do que se deve agir, e ela, sem dúvida, por ser normativa, obriga o agente: conscientia procul dubio ligat, disse S.Tomás no De Veritate. Mas o problema que logo se avista é o de que, como todos o sabemos da experiência rotineira da vida, o juízo da consciência pode ser falso, seja porque conclua o discurso com incorreção formal, seja porque se ampare em premissa falsa.
 
A premissa maior do silogismo prático em que se forma a consciência resume-se ao primeiro princípio do entendimento prático −bonum est faciendum et prosequendum, et malum vitandum. Esta norma nuclear −de agir o bem e evitar o mal− é ditada pelo hábito da sindérese −que Pieper referiu ser uma “consciência de princípios”, de evidência universal quoad se, em que não pode dar-se erro algum.
 
 Diversamente, quanto às premissas menores desse silogismo prático, compreendendo elas normas de razão superior, normas de razão inferior (em que se incluem as leis humanas positivas) e situações particulares (os fatos com suas circunstâncias), já então pode ocorrer erro no conhecimento da verdade. De fato, pode compreender-se mal o significado normativo das leis de razão superior ou inferior, e não é incomum o erro no âmbito do conhecimento intelectivo do fato singular. Com efeito, no âmbito dos casos, por mais se ponha atenção, sempre pode haver algo que passe inadvertido. Além disto, não é de todo raro que se violem as regras formas da argumentação. Assim, pode produzir-se o erro da consciência.
 
399. Ficou dito que a consciência obriga. Mas vimos também que a consciência pode ser verdadeira ou falsa, e, no entanto, obriga em ambos os casos. Com uma distinção, todavia. Tratando-se de consciência verdadeira, ela obriga absolutamente, essencialmente (simpliciter et per se), ao passo em que a consciência falsa obriga relativamente, é dizer secundum quid et per accidens, enquanto o agente não depõe o erro, de maneira que é uma consciência sub conditione, tal que, deposto o erro, depõe-se também a obrigação de consciência anterior (tomemos aqui breve um exemplo: Tício, julgando erroneamente que dada importância em dinheiro é de sua propriedade, forma a consciência, em uma situação particular, de que deva destinar esse dinheiro à satisfação de uma sua dívida já vencida; formou-se, pois, um juízo de consciência; antes, porém, de realizar esta ação, Tício dá-se conta de que o dinheiro não era verdadeiramente seu, e, assim, deposto o erro de fato, depõe-se a consciência −falsa−, que deixa de ser a norma obrigatória de sua ação. Símile pode ser um caso em que o registrador qualifique positivamente um título, do qual, antes, porém, de inscrevê-lo, suceda nele descobrir defeitos que não tinham sido precedentemente advertidos; a consciência falsa, deposto o erro, já não obriga).
 
400. Excursionemos neste capítulo por uma brevíssima observação que convenha mais diretamente ao caso do juízo de qualificação registral.
 
O intelecto não capta diretamente o singular. Percepciona-o apenas indiretamente. Isto já o havia ensinado Boécio (universale est dum intelligitur, singulare dum sentitur), cujo entendimento abonou S.Tomás no De Veritate: mens nostra singulare directe cognoscere non potest.
 
Capta-se o sensível pelos sentidos exteriores e percebe-se pelos interiores. No domínio do conhecimento prático, o entendimento vale-se da “razão particular” (ratio particularis) −que também se designa de cogitativa (ou ainda collativa idearum, collativa intentionum particularium, sensus interior)−, que “percepciona objetos singulares não percebidos pelos sentidos externos” (Félix Lamas), assim se formando, quanto ao âmbito do singular, uma premissa menor do silogismo prático (que, ressalte-se, costuma desdobrar-se).
 
O que faz, pois, a cogitativa é descobrir “intenções particulares”. Que se entende por “intenções particulares”? Entendem-se valores concretos para a vida, de sorte que a cogitativa propicia ao intelecto conhecer não só a existência, mas também o quid est do singular −aquilo que é o útil, o nocivo, o conveniente, o inconveniente do singular: “Per la “cogitativa” l’intelletto, nella riflessione, può informasi non solo del’an est, ma anche del “quid est” del singolare” (Cornelio Fabro, Percezione e pensiero).
 
Uma norma (de razão inferior) −p.ex., “compra e venda regular de imóvel registra-se”−, compreende-a o registrador por meio do entendimento. A premissa “isto é uma compra e venda regular (é dizer, de acordo com as regras)” demanda, entretanto, o concurso da cogitativa, cuja função é a de secundar o papel da prudência, à qual a cogitativa serve serve “en la percepción y discreción de la bondad y malicia de los casos particulares ofrecidos en la experiencia” (Santiago Ramírez).
 
Pode haver erro da cogitativa, tanto quanto erro na compreensão do significado normativo das razões superiores ou das inferiores, e ambos levam ao erro do juízo da consciência, que pode resultar ainda de uma incorreção formal argumentativa −a argumentação sofística.
 
401. Ao lado, pois, de uma consciência verdadeira, ou seja, um juízo que se encontra adequado à realidade e conformado aos princípios objetivos da moralidade do ato singular objeto, pode haver uma consciência errônea ou falsa, vale dizer, um juízo que não coincide com a verdade objetiva.
 
Para mais, a consciência pode ser subjetivamente reta, quando, seja ela verdadeira ou falsa, o agente almeja satisfazer a moralidade, a licitude do ato, segundo lhe dita a razão. (O revés da consciência reta é a consciência oblíqua ou viciosa, de quem age contra o ditado de sua razão).
 
Pode ainda a consciência, ratione assensus (é dizer, em razão do assentimento), ser certa, duvidosa, perplexa, escrupulosa ou laxa.
 
Certa é a consciência firme em seu ditame, em que não há razoável receio de errar. Duvidosa, a do juízo vacilante que hesita entre razões de peso tido por equivalente entre agir e não agir em dado caso. Perplexa, a que julga atuar em mal tanto agindo quanto não agindo. Escrupulosa, a que, alguma vez de modo obsedante, em tudo vê problemas e ilicitudes (a palavra “escrúpulo” vem do latim scrupus, i, com o sentido de “pedrinha”). Laxa −ou laxista− é a consciência que conclui pela desobriga das normas por motivos menores desproporcionais, fúteis.
 
402. Ao encerrar esta nossa pequena exposição, quero referir aqui ao tema do valor da experiência jurídica e ao problema da certeza do singular.
 
Tomemos aqui um exemplo. O de um furto: a polícia surpreende Mélvio dentro de uma casa alheia. E ele diz que ali estava para contemplar um belo quadro, nec plus ultra.
 
Todos sabemos, entretanto, por experiência rotineira, que o ingresso em casa alheia, invite domino, é, por si só, indício do que é ordinário nesta invasão: o fim subtrativo. Leia-se o que ensinou Carrara: “… entre mil que entram em casas alheias, estando abertas, e escondem-se nelas, ou que se introduzem derrubando portas, escalando janelas ou portando chaves falsas, um apenas haverá que o faça por motivos de amor, de curiosidade ou de espionagem; o caso mais comum e diário é que isto se faça por fins de furto”. Daí a inevitável conclusão a que chegou o Mestre de Pisa: “… é preciso considerar esses atos como inequívocos a respeito do furto, e reconhecer-lhes o poder de constituir o elemento material da tentativa, a não ser que se apresente um caso de exceção no qual deve rechaçar-se a aplicação deste título, por falta do elemento intencional” (Programma del corso di diritto criminale, § 2.239).
 
Ora, o problema aí é de julgamento de caso, é de consciência atual −e não de consciência habitual (ou sindérese)−, é de prudência (rectius: aquilo que se conforma à realidade), mas, sendo tão difícil, quanta vez, chegar à verdade de cada caso, como esperar que o registrador forme sempre juízos verdadeiros na tarefa dificílima de qualificar?