(Princípio da legalidade -Décima-quarta parte)
 
392. Pôs-se à mostra que o juízo de qualificação registral é, definidamente, o juízo da consciência do registrador, e o que agora devemos grifar um tanto mais é o liame entre consciência e liberdade, ou, no plano particular de nosso estudo, entre a consciência profissional do registrador e sua independência jurídica.
 
Para isto, trataremos de examinar, ainda que de modo breve, a estrutura dos atos humanos stricto sensu, buscando nela situar o juízo da consciência, ou, para nosso caso, o juízo jurídico de qualificação.
 
Não custa, porém, antes de nos lançarmos a esta concisa análise estrutural dos atos humanos, averbar que a ancoragem da independência jurídica do registrador no juízo da consciência importa no reconhecimento de que, por natureza (isto é, com transcendência à normativa posta pelo ordenamento da polis), o registrador possui o atributo profissional de ser independente no plano jurídico, dentro, embora, numa ordem circunscrita (scl., sem excluir uma esfera posterior de revisão de seu juízo qualificador).
 
393. Por evidente, não se trata aqui de aprofundar o tema da estrutura dos atos humanos −matéria que se empolga na antropologia filosófica, na psicologia racional e na teologia moral−, senão que se cuida apenas de referir uma notícia razoável da configuração dessa estrutura, de maneira que, de preferência a outras que se têm por mais controversas, elegeremos aqui a doutrina mais segura acerca desta matéria.  (Seguiremos, sobretudo, nesta árdua trilha, brevitatis studio, as sólidas lições recolhidas e ensinadas por Urdanoz, Royo Marín e Basso).
 
394. Conceitua-se classicamente ato humano em sentido estrito o que procede da vontade deliberada do homem −procedit a deliberata hominis voluntate. Trata-se, pois, de um ato praticado sciens et volens, tal que nele se reconhece o próprio agente em ato, ato pessoal,  a atualização de uma potência da pessoa actante.
 
A análise interna da formação do ato humano permite nele destacar 12 etapas de sua gênese e desenvolvimento: cinco delas, estágios intelectuais; seis fases no âmbito da vontade; uma etapa própria de potência executiva.
 
O primeiro estádio do ato humano é o da simples apreensão, que não se confunde, assim é de notar, com a simplex aprehensio rei da primeira operação intelectual (a que produz a ideia). Nesse estádio, o intelecto conhece um dado bem (que se identifica por ser o fim de uma ação) e propõe esse bem à potência volitiva ou vontade (que é um apetite racional por participação).
 
Num segundo momento, a vontade aquiesce a esse bem proposto pela inteligência. E a isto se movimenta a vontade porque ela é exatamente o “apetite do bem”, a potência que é movida pelo bem.  Assinale-se, entretanto, que, ressalvada a necessidade de o apetite volitivo tender ao bem infinito (e, pois, à felicidade do actante), a vontade não tem necessidade, contudo, de querer os bens particulares, finitos, contingentes, a propósito dos quais o querer é livre. Tem-se, portanto, uma radical indeterminação para eleger as ações. A etapa da formação do ato humano, aqui pontualmente examinada, é a da simples volição, em que a vontade tem por objeto exclusivamente o fim que lhe foi indicado pela inteligência, sem ainda considerar os meios para sua consecução.
 
Terceira fase do ato humano: novamente a inteligência intervém, agora para julgar da possibilidade e da conveniência da ação objeto. O de que se trata aqui é de aferir sobre a realização imediata ou mediata do fim proposto, ou de sua impossibilidade.
 
Afirmando-se possível a consecução do fim em exame, atua outra vez a vontade, mediante uma intenção eficaz, já estimando a possibilidade e a conveniência (de fim e de meios) ensinadas pelo entendimento.
 
Tem, então, começo a quinta fase, em que o entendimento delibera ou aconselha, preparando a eleição dos meios. Na etapa de deliberação ou conselho faz-se a sindicância dos meios mais convenientes para cumprir a finalidade objeto.
 
No sexto estágio da formação e desenvolvimento do ato humano, a vontade consente. Neste passo, a potência volitiva apenas considera os meios para atingir o objetivo.
 
Chegamos, então, à sétima das etapas: o último juízo da razão prática. Aqui se tem o juízo da consciência. Tem-se neste momento a determinação hic et nunc do que se deve agir para a consecução do fim. Trata-se de um juízo cuja raiz é o ato livre da vontade que estabelece a independência da eleição dos meios. Corresponde, no plano do discurso registral, ao momento próprio do juízo de qualificação (num exemplo: para satisfazer a res certa em dado caso, no qual se estima o acesso de um título, tem o registrador de eleger um meio concreto: deve ou não registrar? É com o registro que se atinge a res certa ou, antes e diversamente, é com denegá-lo que ela se realiza?).
 
Segue-se (oitava fase) a eleição volitiva do meio ensinado pelo entendimento, e, adiante, sucedem-se: a nona fase (já no âmbito da execução) que é a do imperium da razão, o uso ativo determinado pela vontade (décima etapa), o uso passivo compelido às potências executivas que devem executar a ação (décima-primeira fase), e, finalmente, a fruição ou deleite volitivo com o fim cumprido (décimo-segundo momento)..
 
395. Assim, o juízo de qualificação registral −ou seja, o juízo da consciência do registrador no processo registrário a ele submetido− é, propriamente, o juízo discricional que corresponde à sétima etapa do desenvolvimento interno do ato humano:
 
Todavia, como a consciência é um juízo conclusivo ou aplicativo de conhecimentos universais ditados pela sindérese, pelas razões superiores e pelas razões inferiores, entre estas as regras do ordenamento jurídico positivo, pode dizer-se (tal o admite, por exemplo, Domingo Basso) que a consciência está, de algum modo, expandida nas fases anteriores ao juízo discricional, e não será demasiado dizer que esta expansão possa ainda persistir na esfera executória, como consciência simultânea à ação.
 
Neste mesmo sentido, a muito precisa doutrina de Félix Adolfo Lamas −em El hombre y su conducta− ensina que a consciência moral antecedente é consciência do fim operativo, é consciência dos meios possíveis, é consciência da obrigação, da proibição, da autorização, (em alguns casos) de uma certa indiferença na eleição (consciência preceptiva), tudo com o remate de uma “conciencia del dominio y del imperio sobre el acto a realizar”.
 
Pode, então, dizer-se que o juízo da consciência do registrador, embora propriamente sediado no momento discricional do último julgamento prático relativo a dada ação concreta e singular, estende-se a seus supostos anteriores (se se quiser, recolhe-os, inferidos, na conclusão) e persevera ao largo da execução do ato.
 
396. A independência jurídica do registrador −no ato judicativo da qualificação− é, portanto, uma propriedade ínsita à consciência moral do próprio registrador.
 
Com efeito, a vontade é uma potência tendente ao bem, mas, salvo o caso de um bem absoluto (bonus perfectus), a vontade apenas recolhe uma iluminação ou “impressão da inteligência”, ou seja: opções propostas pelo entendimento, e, assim, o querer humano possui uma dada ignorantia electionis, no sentido de que a vontade ignora o que se há de eleger a final: muitas vezes, de fato, a vontade tende a um objeto que lhe parece bom, mas que efetivamente não o é (aprehenditur ut bonum, et tamen non est vere bonum −numa clássica expressão de S.Tomás).
 
De sorte que a nota essencial da eleição do ato humano pela vontade é exatamente a potestade de eleger (potestas eligendi), que se exprime por uma indiferença ativa da vontade −é dizer, por sua faculdade de autodeterminação, em ser o agente “dono de suas próprias ações”, ser livre, ser independente.
 
Posto que a eleição seja própria da vontade, seu objeto, no entanto, é-lhe proposto pela razão, de maneira que esta, a razão, precede e ordena o ato eletivo da vontade, tal que a potência volitiva consuma o trânsito ou movimento racional.
 
Disto se infere que a consciência, ela também, há de ser livre por natureza, sob pena de não ser livre a eleição volitiva antecipada pela moção racional.
 
Na sequência trataremos do papel da normatividade subjetiva da consciência, e de seus impedimentos e erros.