(Princípio da legalidade -Vigésima parte)
 
430.  Tal se indicou, as hipóteses de inexistência e de nulidade dos títulos administrativos, esta por destrutiva da presunção de sua legitimidade, aquela, a de inexistência, por imune a essa presunção, são atrativas do juízo registral de qualificação negativa (não são as únicas que o atraem, como se verá a seu tempo).
 
O efeito imediato da nulidade do título (e, a fortiori, de sua inexistência), é dizer, nulidade absoluta, plenária, é sua direta ineficácia −reconhecível até mesmo propter officium−, com independência de uma decisão jurisdicional ou da autotutela declarativa dessa nulidade (uma e outra medidas admissíveis, eventualmente, quando seja necessário alvejar a aparência de validade do título ou alguma resistência de terceiro −vidē García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández). Firme, neste sentido, é a lição de Diogo Freitas do Amaral: “Os particulares e os funcionários públicos têm o direito de desobedecer a quaisquer ordens que constem de um ato nulo”.
 
Para mais, o título nulo não pode sanear-se (ratificar-se, converter-se ou reduzir-se), nisto distinguindo-se em face dos títulos anuláveis ou meramente irregulares. Estes últimos, os irregulares, não exigem a edição de ato algum que os corrija, e os anuláveis, por sua vez, admitem convalidação, substituindo-se o ato inválido por outro. Já os nulos, não se convalidam.
 
Seguindo, ad summam, as trilhas bem sulcadas por Marcelo Caetano e, entre nós, por Marcondes Martins, mas tomando o termo convalidação ao modo de gênero −assim o considera Marcelo Caetano−, ratificar é sanar, removendo, com efeitos retroativos, o déficit de um ato inválido −Caupers traz à conta de exemplo o ato praticado por um agente a quem a lei atribui competência delegada, mas que não teve autorização do delegante para exercitar essa competência; converter é transformar um ato em outro, com sanação das deficiências do ato convertido, aproveitando-se, contudo, seus efeitos; reduzir −ou reformar− é excluir uma parte do ato viciado, conservando-lhe a parcela válida.
 
O vício de falta absoluta de competência de ente, de órgão ou de agente para a emissão de um título administrativo é causa designada de nulidade, inviabilizando-se sua sanatória e propiciando-se ao registrador imobiliário o dever de expedir um correspondente juízo de qualificação negativa.
 
431.   Nada obstante isto, cabe uma observação acerca dos títulos expedidos por funcionários de fato.
 
Aqui se trata já de ingressar no campo da inexistência do ato administrativo, campo esse em que, por evidente, não cabe falar, de maneira própria, em destruir-se a presunção de legitimidade do inexistente (ou seja, de um ato que não existe; o que não existe não tem como presumir-se legítimo ou válido). Com efeito, ou não há título administrativo algum que advenha da Administração (em nosso anterior exemplo, é o caso da “carta de habite-se” expedida manifesta e nominalmente por um particular; Zanobini aponta aqui a categoria da “mancanza del soggetto”), ou, noutro exemplo, o título não tem conteúdo (é dizer, um de seus elementos, um dos integrantes internos do ato): assim, uma certidão que não faça referência alguma a seu objeto.
 
Mas pode cogitar-se de um quadro problemático: o de o emitente do título ser um funcionário de fato. Por definição, esse funcionário não possui vínculo de direito com a Administração: não é funcionário de direito, mas funcionário de fato. Tem-se admitido, todavia, que o vício invalidante da funcionalidade de fato não implica, por si só, a invalidade dos atos que haja praticado o funcionário de fato, solução que se impõe “em nome do princípio da aparência, da boa-fé dos administrados, da segurança jurídica e do princípio da presunção de legalidade dos atos administrativos” (Celso Antônio Bandeira de Mello; não é demasiado lembrar o caso romano de Barbario Filipe, o escravo fugitivo que solicitou e obteve a função de pretoria, suscitando entre os glosadores três controvérsias: Barbario foi livre? Foi pretor? Seus atos foram válidos?).
 
O espectro da funcionaridade de fato é muito amplo e abrange desde os funcionários irregulares (os que têm assunção imperfeita: p.ex., ocupantes de cargos criados irregularmente, ou extintos irregularmente, os cargos ainda ocupados, ou com nomeação inválida, etc.), passando pelos funcionários de fato stricto sensu (v.g., o concurso de particular em situação de calamidade pública), até chegar ao limite dos usurpadores, os da autoassunção funcional (para o caso brasileiro, cf. o delito de usurpação de função pública, previsto no art. 328 do Código penal) ou os de antecipação, prorrogação ou perseverança dolosa no exercício de função pública (art. 324 do mesmo Código: “Entrar no exercício de função pública antes de satisfeitas as exigências legais, ou continuar a exercê-la, sem autorização, depois de saber oficialmente que foi exonerado, removido, substituído ou suspenso”). [Merece leitura a meditada monografia de Fernando Henrique Mendes de Almeida, Contribuição ao estudo da função de fato, de que muito me vali neste capítulo].
 
Calha ver que a solução de cada caso referente à função de fato lato sensu exige o detido exame de circunstâncias, quais as de saber se o agente é um funcionário irregular, é um funcionário de fato stricto sensu ou um usurpador de funções públicas; ou seja, tem-se de verificar se o agente se comporta socialmente qual se fora um servidor público (atua em órgão público? Usa bens públicos? É tratado pela Administração qual fora seu servidor regular? −cf. Zanobini), respostas que o registrador nem sempre possui, o que, pois, recomenda, em linha de princípio, a tendencial admissão da validade do título expedido por um desses funcionários de fato (em acepção ampla), ao menos que seja notória socialmente a usurpação ou que haja outra causa que invalide o título.
 
432.  A competência de ente, órgão ou agente público é um pressuposto do título administrativo −vale dizer, correspondente a uma situação de fato ou de direito externa ao título−, e diz respeito, como visto, à assinação de um conjunto ou medida de poderes exercitáveis pelo órgão de um dado ente político e por um agente dentro de um órgão.
 
Trata-se de matéria integrante do campo do direito organizatório e que tem sua ratio essendi na pluralidade de órgãos a quem se imputam pontuais deveres de atribuição. (Averbe-se que se fala, na doutrina, em “órgão instituição”, que se distingue do “órgão indivíduo”, de sorte que é admissível o discrimen entre órgão e agente, ainda que, não raro, os autores equivalham as expressões “órgão” e “agente”).
 
O relevo desse pressuposto competencial pode avaliar-se já pelo fato de que, numa lição de Roberto Dromi, “en el derecho público la competencia es la excepción y la incompetencia la norma”, de modo que a aferição dessa competência recai de maneira expressa no âmbito do ius positum (em palavras de Bénoit a competência é a base de toda a ordem administrativa e é o “premier aspect du principe de la légalité qui régit toute l’action administrative”; não se exclua, porém e sem mais, o papel do direito costumeiro), além de ser intensamente exigível para que o controle de legalidade se dedique ao que excepciona o que é ordinário na normativa.
 
433.  Além de uma capacidade geral-administrativa −a “capacidade genérica de direito público”−, também existe uma capacidade específica, denominada “competência atribucional” (vidē Fernando Henrique Mendes de Almeida), e esta pode distribuir-se, segundo diversos critérios, em:
 
(i)     competência material (ratione materiæ), que se define por meio de seu objeto e conteúdo (p.ex., uma certidão negativa de débitos é atribuição de um órgão fiscal; a “carta de habite-se”, de um órgão urbanístico);
 
(ii)    competência territorial (ratione loci), que se assina consoante uma demarcação de lugar (nacional, regional, municipal, etc.; também se denomina “competência espacial” e “competência horizontal”);
 
(iii)   competência temporal (ratione temporis), que se configura dentro num dado período de tempo, “competência temporária” (v.g., a do exercício de veto, pelo Poder executivo, no processo legístico); e
 
(iv)   competência por graus (ratione gradationum), que é a referida à posição do órgão (ou agente) no âmbito hierárquico da Administração. Essa competência ratione gradationum pode compreender-se como uma subdivisão da competência material (García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández) ou admitir-se de modo autônomo (Roberto Dromi), e, ordinariamente, ela não comporta exercício ablativo da competência que corresponda, in suo ordine, quer ao órgão superior, quer ao inferior. Todavia, neste campo tem-se o complicador da transferência ou traslado de competências, mediante as espécies de delegação, avocação, substituição, subrogação e suplência, que tornam árdua, para o registrador, a verificação do pressuposto competencial. (Delegação −no que aqui releva− é a transferência competencial de um órgão superior a um inferior; avocação, a assunção, por órgão superior, da competência própria do inferior; substituição, o traslado, por um superior comum, de competência de um inferior a outro inferior; subrogação, a transferência competencial de órgão que se escusa ou recusa −p.ex., por motivo de impedimento− a um órgão subrogante; suplência, o traslado da competência em razão da ausência temporária −ou mesmo, definitiva, nos casos de interinidade− do agente correntemente dotado da atribuição primária; cf., brevitatis causa, Roberto Dromi).
 
434.   Os vícios de incompetência material e territorial tanto podem ocorrer mediante invasão de atributos de autoridades não administrativas (quais as próprias das funções legislativas e jurisdicionais), quanto por meio de transbordamento de atribuições −“straripamento di potere” (Zanobini)−, o que ocorre na esfera interna mesma da Administração. Em ambos os casos, cabe recusar o acesso registral do título administrativo, em virtude de sua invalidade subjetiva absoluta.
 
O controle registrário desse pressuposto competencial dos títulos administrativos justifica-se exatamente em razão de submeterem-se quer a Administração pública, quer o registro de imóveis, aos ditames da legalidade. Nos casos de ofensa à repartição normativa das competências ratione materiæ locique, é o próprio conteúdo do título administrativo que não contém força de observância [não custa aqui destacar, a propósito, o que dispõe o art. 11 da Lei brasileira n. 9.784/1999, de 29-1, ao ditar que “a competência (administrativa) é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos”; não diversamente, lê-se no art. 12.1 da Lei espanhola n. 30/1992, de 26-11 (Ley del Régimen Jurídico de las Administraciones Públicas y del Procedimiento Administrativo Común): “La competencia es irrenunciable y se ejercerá precisamente por los órganos administrativos que la tengan atribuida como propia, salvo los casos de delegación o avocación, cuando se efectúen en los términos previstos en ésta u otras leyes”; noutra lei espanhola, que modificou, em parte, a de n. 30/1992, estatui-se serem nulos “de pleno derecho”, entre outras hipóteses, os atos administrativos “dictados por órgano manifiestamente incompetente por razón de la materia o del territorio” −alínea b do art. 47-1 da Lei n. 39/2015, de 1º-10].