(Princípio da legalidade – Décima parte)
 
370. Em pequena palestra ministrada no ano de 1991, na cidade de Maceió, tratei de assim definir a qualificação registral imobiliária:
 
“o juízo prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no império de seu registro ou de sua irregistração”.
 
Apontou-se aí expressamente a nota de a qualificação ser um juízo, o juízo de conclusão do discurso qualificador. Isto, porém, não exclui −tal ficou dito na mesma palestra− a extensão do termo “qualificação” para, analogicamente, designar quer a integralidade do discurso argumentativo do registrador, quer a função registral judicativa. Pode assim falar-se em “qualificação” como processo discursivo no qual se conclui sobre a inscrição (ou não) de um título, ou ainda falar-se na “qualificação” como atributo funcional do registrador.
 
371. Quando nos referimos à “qualificação” como discurso, fazemo-lo em sentido figurado, da mesma sorte que dizemos que um silogismo é verdadeiro, quando, propriamente, verdadeiras seja, suas premissas e conclusão.
 
Trata-se aí, assim quer parecer-me, de uma sinédoque, em que se toma o todo (o discurso) por uma sua parte (o juízo consequente).
 
Em verdade, a razão pela qual aparenta prevalecer, como sentido próprio, designar-se “qualificação” ao juízo registral consequente −e, pois, remetendo-se só analogicamente o mesmo termo “qualificação” para denominar o discurso em que se ache esse juízo consequente− está no caráter prudencial da argumentação do registrador (caráter esse de que se tratará mais abaixo).
 
É que −este é o ponto clave− o mais relevante da argumentação prudencial está no império ou preceito, que é a finalidade do discurso da prudência.
 
Então, sumariemos: pode falar-se em “qualificação registral” relativamente (i) à integralidade do discurso qualificador, (ii) à função registrária mesma de qualificar, e (iii) ao juízo conclusivo desse discurso. Mas as duas primeiras destas acepções são figuradas, analógicas; a terceira é própria, por ser a sede preceptiva ou de império do discurso prudencial.
 
372. Já do exposto se avança uma questão conceitual importante: a qualificação registrária não se resume ao mero exame ou verificação de títulos −por mais, é evidente, que esse exame deva realizar-se.
 
Calha que a verificação dos títulos faz parte da fase cognoscitiva ou contemplativa do discurso prudencial, e o mais vultoso desse discurso, tal ficou sobredito, é seu caráter imperativo, preceptivo.
 
Disto resulta a impropriedade da designação que era frequente, entre nós, antes dos anos noventas do século passado, quando denominávamos a “qualificação”, muito comumente, de “exame de título” ou “verificação de título”.
 
Efetivamente, o que mais interessa no discurso de qualificação registral é o império ou preceito: “registre-se” ou “não se registre”. Ou seja, o desfecho, o consequente do exame do título, a qualificação −positiva ou negativa− em sentido próprio.
 
(Abro aqui um parêntese. Deveria começá-lo humilhando-me com a expressão confiteor, Deo omnipotenti… É que terei, de fato, contribuído para um equívoco de linguagem ao falar, na já referida palestra de Maceió, em “desqualificação” com o sentido de “qualificação negativa”. Isto está francamente mal. Só pode propriamente “desqualificar-se” o que antes esteja “qualificado”. Se o desate do discurso de qualificação registral for negativo, não se pode dizer, em linguagem jurídica adequada, própria, que o título se desqualifica, senão que ele, isto sim, está qualificado de maneira negativa para a inscrição pretendida. Há equívocos paralelos na praxis jurídica: p.ex., fala-se em “desprovimento” de um dado recurso; mas “desprover” é propriamente retirar uma provisão que já exista; só muito impropriamente se pensará que “desprover” seja o mesmo que “não prover”. Podem aqui acusar-me alguns de o meridiano −digamos com Corneille: “Ô rage, ô désespoir, ô vieillesse ennemie! N’ai-je donc tant vécu que pour cette infamie?”− achacar-me com pruridos terminológicos, mas, em meu favor, quero sempre lembrar que, com frequência, “les mots ne sont pas inoccents” e, muita vez, ao lado do “deseo pueril de cambiar nombres, sin ton ni son” [Jiménez de Asúa] vem o risco de alterar-se a própria visão da coisa designada).
 
373. É fundamental pensar que o registrador exerce uma função pública −e, assim o tenho muito insistido, uma função pública não estatal, mas função pública, isto sim, comunitária. E de ser uma função da comunidade, a função do registrador está subordinada diretamente à legalidade (ou, mais exatamente, ao direito que deflui da normatividade posta). Por isso, o registrador deve exercitar sua função com independência de comandos hierárquicos, ou seja, ao modo liberal das artes e dos ofícios, é dizer, de maneira independente, só submetida à normatividade.
 
Advindo que, por sua mesma natureza, a qualificação registral deva ser um juízo independente −rectius: um juízo subjetivamente livre, tomado segundo a consciência do registrador−, não pode esse juízo, todavia, estimar-se à margem de alguma demarcação. Não fora assim, admitir-se-ia uma liberdade negativa. Ora, a liberdade, legitimamente, é “poder de eleger os meios, conservando a ordem ao fim” (S.Tomás), não o absolutismo do querer humano (liberdade negativa que, num mote, sintetizou Aleister Crowley, conhecido ocultista britânico: “Faz o que queiras!” −do what thou wilt). Assim, a consciência do registrador é norma subjetiva de seu agir, mas não dispensa a normatividade heterônoma objetiva.
 
374. A primeira limitação ao juízo qualificador registrário é a que provém de ser um juízo sobre meios e não sobre fins: cabe-lhe, com efeito, julgar se dados meios (título, registro e seu relacionamento) atendem ao fim estabelecido na ordem normativa (segurança jurídica): o registrador qualifica secundum normās e não de legibus, julga de mediis e não de finibus.
 
A segunda limitação −quase ou mesmo pouco menos que só distinta da anterior− está no caráter jurídico da função qualificadora do registrador. Os fins a que visa a qualificação (mediatamente, a res iusta; imediatamente, a segurança, a securitas) são finalidades diretamente jurídicas, ainda que se possam admitir, por definição, subalternadas à moral.
 
A terceira limitação diz com o ordenamento jurídico posto −leis (lato sensu) e costumes−, porque, já isto ficou dito aqui várias vezes, a segurança jurídica não prescinde do direito positivo para sua consecução.
 
Quarto limite encontra-se no próprio caso submetido à qualificação: quod non est in instrumenta et in tabulā non est in mundō tabularum.  Neste âmbito, caberá avaliar a demarcação do juízo qualificador segundo a natureza dos títulos (o que, de modo particular, empolga a tratativa da qualificação dos instrumentos judiciais).
 
Um quinto limite pode ainda aqui anunciar-se: é o de o registrador exercer atividade pública. Isto significa, de maneira fundamental, que ele responde a interesses públicos −ou mais distintamente, a interesses públicos primários ou comunais e, com menor graduação, eventualmente, a interesses públicos secundários, estatais, de cunho administrativo, especialmente fiscal. O registrador não é um empresário privado −não é um dono de taberna−, mas um titular de função comunal.
 
É dentro deste complexo conjunto que se move a independência jurídica do registrador, tema sobre o qual passaremos a versar, depois de breve visita explicativa sobre os termos do conceito de “qualificação registral imobiliária”, assim o enunciamos à partida e que aqui repetimos: juízo prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no império de seu registro ou de sua irregistração.