Des. Ricardo Dip
 
530. A voluntariedade que se manifesta com a rogação registrária é apenas inaugural ou deve entender-se contínua no tempo e, pois, sujeita a modificações (uma ablação, inclusive)? Em outras palavras, uma vez exprimida e destinada regularmente a rogação, pode dela desistir o solicitante no todo ou em parte? Pode, além disto, alterar-lhe o objetivo?
 
531. A rogação registral é −ou ao menos, pressupõe-se que o seja− um ato humano, quer dizer, um ato integrado por dois princípios fundamentais ou elementos: um, de natureza cognoscitiva (a advertência); outro, de caráter volitivo (o voluntário).
 
Aquele, a advertência, consiste, em resumo, num prévio ou simultâneo conhecimento do ato que se vai praticar ou que se está praticando. Sem que haja advertência (antecedente ao ato ou concomitante com ele), não pode haver ato humano, mas apenas ato do homem.
 
Voluntário diz-se do que procede de um princípio intrínseco −ou seja, de uma inclinação originária do próprio agente− com conhecimento e intenção do fim (lê-se isto em Zalba, com a exatidão costumeira do autor: voluntarium est quod procedit aliquo modo a principio intrinseco sub intellectuali cognitione finis).
 
O voluntário −e, sublinhe-se, a rogação registral deve ser um ato voluntário; desta maneira, tanto quanto o ato voluntário em geral, a rogação registrária pode ser (entre outras muitas classificações possíveis do ato voluntário: cf., brevitatis causa, Zalba, Cathrein, Prümmer, Royo Marín):
 
(i)     explícita: assim a que recai sobre algo singular, concreto, determinado (p.ex., Tício roga que se registrem uma doação e as cláusulas constantes do título);
 
(ii)  implícita: a que concerne a algo geral, indeterminado (v.g., Semprônia solicita que se pratiquem os atos que caibam quanto a um dado título);
 
(iii)  expressa: quando a manifestação de vontade se exprime por meio externo (p.ex., com palavras: “quero que se registre este título”); a rogação registrária expressa pode ser oral, literal (até mesmo de modo obrigatório: vidē § 1º do art. 246 da Lei brasileira n. 6.015/1973) ou gestual (Mélvio, afônico, sinaliza com as mãos que almeja registrar o título que apresenta);
 
(iv)     tácita: em que a manifestação de vontade se induz de outro ato (p.ex., Caio, sem nenhuma palavra ou gesticulação adicional, apresenta um título formal ao balcão de protocolo de um cartório);
 
(v)      presumida: em que a manifestação de vontade se supõe, com plausibilidade, a contar de outra conduta (Iulia, depois de esperar algum tempo na fila do protocolo, recebe um telefonema que lhe noticia situação de emergência; sai, então, do local, deixando ali, porém, sobre o balcão, uma escritura notarial de venda e compra de imóvel);
 
(vi)  atual: quando a vontade se manifesta no momento mesmo em que o ato se realiza (Aemilia, ansiosa com a consumação de um registro, não sai do cartório, dia após dia, até que a inscrição se perfaça, sempre indicando sua vontade em que o ato se pratique);
 
(vii)  virtual: quando a vontade se manifesta à origem e ainda influi no ato em curso, embora o agente não torne a pensar no tema (p.ex., Quintus roga a prática de um registro e, enquanto este se processa, não volta a cogitar do assunto).
 
532. O que se busca mediante a rogação é um registro rei effectæ.  Que quer dizer isto? Quer dizer que, ao solicitar-se o ato, não se está postulando algo já existente (res affecta), mas algo que deve ainda realizar-se ao fim de um processo (uma res effecta).
 
Daí que a rogação, ainda que dirigida primeiramente (na ordem da intenção) a um objeto terminativo (o registro rei effectæ), destina-se, não menos, de certo modo (secundum quid), ao processo −método ou caminho− que culminará no ato final intentado pela vontade do solicitante.
 
Ora bem, disto resulta que, ordinariamente, a atualidade da rogação é originária, mas essa rogação persevera de maneira virtual, porque ela deve estender-se por todo o tempo do processo, até que se consume o registro rei effectæ, que constitui o marco derradeiro da virtualidade da rogação.
 
533. Exatamente porque se trata de um processo, de um iter estendido no tempo, não há, por evidente, segundo a natureza das coisas, óbice a que a vontade firmada à origem possa alterar-se. O que não se exclui é que a lei humana possa, acaso, tornar irretratável a rogação.
 
Não se impede, portanto, que o solicitante, até a consumação do ato registral terminativo (o registro ou o averbamento pleiteados), possa desistir da inscrição postulada. Após a consumação do ato, pode haver seu cancelamento (ato registral negativo), com nova rogação, mas já não será, simpliciter, desistência da rogação anterior que se destinava ao ato positivo de registro ou averbação.
 
Tampouco se interdita que a desistência seja parcial (p.ex., numa dada escritura, consta que dois imóveis são adquiridos por Tício; apresenta ele o título ao registro e, no curso do processo registral, reduz o objetivo da rogação a um só dos títulos materiais, é dizer, a uma só das aquisições; o caso entranha o conhecido tema e interessante da cindibilidade dos títulos formais).
 
534. Questão mais intrincada é a da mudança do objetivo de uma rogação principal unitária (ou seja, que, à origem, tinha um só fim principal; vale dizer que não se consideram aqui os acessórios: p.ex., averbações exigíveis para o fim principal: registro stricto sensu perseguido).
 
Deve distinguir-se. Não se recusa, ad exemplum, que, tendo Tício pleiteado o registro de uma penhora, altere seu objetivo e postule seja a constrição averbada. (Se isto vai ser-lhe ou não deferido é questão diversa). Da mesma sorte, Semprônia, credora hipotecária, pode solicitar, in itinere, a redução do valor da garantia constante do título e que era, à origem, objeto da rogação.
 
Todavia, não se admite a ruptura com a substância do título material objeto da rogação originária (Mélvio solicita o registro de uma compra e venda, mas, no curso do processo registral, pleiteia que, diversamente, seja registrada uma dação em pagamento, ainda que essa dação seja objeto do mesmo título formal da compra e venda). A razão fundamental do impedimento de alterar-se, neste passo, a rogação originária está em que, propriamente, o que se inscreve é o título em acepção material; de modo que é este, causa jurídica, o que demarca a prenotação e configura o direito posicional correspondente.
 
Noutra ilustração, se pôde Semprônia, em nosso exemplo anterior, reduzir o valor da garantia hipotecária que fora objeto de sua rogação original, diversamente não poderá a solicitante aumentar in itinere esse valor (ou seja, ela roga, de início, que se registre uma hipoteca, indicando-se a garantia de, suponhamos, um milhão de reais −embora o título refira maior valor; no curso do processo registral, pleiteia ela, com inadmitida alteração da instância, que, à luz do título, o valor seja inscrito em dois milhões de reais).
 
Haverá uma série de outras controversas situações a considerar, mas importa aqui pôr em saliência a necessidade de uma apreciação particular dos casos, porque não se pode recusar, de maneira absoluta, a possibilidade de o solicitante alterar o escopo de sua rogação inaugural.
 
535. Neste quadro, deixemos indicada uma questão interpelante e, de fato, muito controversa: a de saber se é possível desistir parcialmente de rogação relativa a registro de permuta de imóveis (que o possa fazer o solicitante que seria beneficiário da permuta, não há dúvida; mas pode fazê-lo o que não se beneficie dela?).
 
Vem de molde −embora não se refira expressamente ao tema da mudança de objetivo da rogação− um julgado do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, que, em votação não unânime (e o fato de ter predominado a solução por quatro votos contra três parece bastante para pôr de manifesto a controvérsia do tema), com admitir a cindibilidade do título material da permuta, implicitamente reconheceu a possível mudança de escopo da rogação de seu registro.
 
Consta do voto condutor do acórdão (que invoca o entendimento cônsono de Ademar Fioranelli, Gilberto Valente da Silva, Antonio Albergaria e Josué Modesto Passos): “O contrato de permuta apresenta quer equivalência de obrigações dos contratantes, quer recíproca dupla função dos bens permutados: na espécie, trata-se de imóveis que, sob certo aspecto, são objeto material de uma aquisição, mas, sob outro, simples instrumento de pagamento da aquisição concorrente”.
 
E prossegue:
 
“Essa característica da permuta não implica, ipso facto, a perda da autonomia jurídica dos títulos, e, com isto, sua consequente cindibilidade formal e material.
 
É que a permuta é um contrato de natureza consensual, de sorte que o titulus se aperfeiçoa sem a tradição. Esta última, quando a permuta diga respeito a bens imóveis, exige o modo registral, constitutivo, para que se atualize a transcendência real do contrato, ajuste que, no entanto, já se tem por aperfeiçoado com o só acordo de vontades, inclusivo da intenção da traditio.
 
Por mais discutível seja que a evicção e o vício redibitório importem num desfazimento obrigatório da permuta −tese que negaria, sem mais, a possibilidade de o prejudicado, em tais situações, eleger entre a (i) indenização e (ii) a recuperação do imóvel que serviu por meio pagamento (vidē, neste sentido, a doutrina de Pelayo de la Rosa Diaz, La permuta: Desde Roma al derecho español actual. Madri: Montecorvo, 1976, p. 360 et sqq.)−, certamente não se admitirá, contudo, que o ajuste de permuta fique entregue à potestatividade de um dos contratantes, ao ponto de que, refutando-lhe o registro (isto é, frustrando-lhe a intenção da traditio implicada no consenso negocial), possa acarretar-lhe unilateralmente a resolução.
 
A própria técnica registral adotada pela Lei n. 6.015/1973 indica, reitere-se, que a necessidade de dois ou mais distintos registros stricto sensu reclame qualificações registrais autônomas.
 
No plano do direito material (i.e., do direito das obrigações), a questão põe-se no plano da eficácia do negócio jurídico, em que está o adimplemento.
 
O figurante que haja sofrido a perda do domínio por força do registro stricto sensu adimpliu bem (ou seja, é válido e eficaz o registro stricto sensu mediante o qual esse adimplemento se perfez).
 
A inviabilidade de outro ou de outros registros stricto sensu (e, portanto, o inadimplemento da outra ou das outras prestações do negócio de troca) não conduzem, necessariamente, à invalidade ou à ineficácia do adimplemento que já se fez. Independentemente de outro registro stricto sensu que se houvesse de lavrar, o primeiro é válido e eficaz, até que se desfaça, desfazimento que dependerá do que, fora do registro de imóveis, ajustarem os figurantes ou decidir o juiz acerca do inadimplemento, segundo o direito material. A conclusão contrária permitiria, aliás, que o figurante de má fé impusesse ao outro todas as despesas de inscrição, ou mesmo que desfizesse unilateralmente o negócio de permuta, recusando-se a dar a registro a transmissão que o favorecesse”.