(Princípio da legalidade – Décima-nona parte)
 
424. Inscrevem-se no registro de imóveis títulos −em sentido formal− de diferentes naturezas, conforme suas fontes produtivas: assim, títulos administrativos, notariais, judiciais, registrários, eclesiásticos e particulares.
 
Nem sempre −e tal é o caso brasileiro− a normativa de regência dos registros assina expressamente os limites da qualificação de cada espécie desses títulos em acepção formal, de maneira que derivará da praxis, da jurisprudência registral (doutrinária e pretoriana) e mesmo da natureza de cada título a conformação, muitas vezes com persistente controvérsia, dos limites de sua qualificação pelo registrador.
 
Acerquemo-nos, portanto, com redobrada cautela desta intrincada matéria, considerando a variedade dos títulos suscetíveis de acesso registral.
 
425. Título administrativo com interesse para o registro de imóveis é o documento emanado da Administração pública apto a produzir algum efeito na situação jurídica de um prédio.
 
Neste breve conceito, avista-se a repartição do título em seus aspectos formal (documento) e material (com a implícita referência à causa de algum efeito na situação jurídica de um imóvel). Tanto essa causa, quanto seu documento correspondem à ideia de ato administrativo −ato-conteúdo: aquilo que se dispõe com o ato; e ato-continente ou forma do ato: o modo como um ato se exprime, externa-se, exterioriza-se−; e, pois, se bem tenha o conceito um caráter objetivo (ou seja, o da indicação da fonte da proveniência do título), boa parte de sua complexidade resulta de seu conteúdo, como se verá.
 
Não custa dizer, porém, que, ainda no só plano da objetividade ou organicidade do conceito adotado, têm-se já algumas dificuldades, porque a ideia de Administração pública não se confunde com a de Poder executivo, de tal sorte que títulos administrativos podem provir também do Poder legislativo e do Poder judiciário.
 
426. Parece que o ponto clave de tensividade entre, de um lado, a natureza administrativa do documento suscetível de inscrição no registro de imóveis, e, de outro, a exigência de sua qualificação hipotecária, esteja na presunção de validez do ato administrativo.
 
Com efeito, os atos da Administração pública possuem força constitutiva de obrigações não apenas de modo unilateral, mas igualmente autotutelar (ou seja, com direta executoriedade: obrigações de cumprimento imediato), e isto importa em esses atos estejam revestidos de uma validez jurídica presumida, impondo-se aos interessados em impugná-los o ônus de buscar e confirmar-lhes a invalidade.
 
Há, quanto aos atos administrativos, o traslado de uma identidade de validação: presumem-se eles válidos porque legítimas são as autoridades de que provêm (ou, em palavras de García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández: “El acto administrativo se presume legítimo en la medida en que emana de una autoridad que lo es igualmente”).
 
Sem embargo desta presunção de legitimidade do ato administrativo −presunção que é (e exatamente porque é) iuris tantum−, o título administrativo está sujeito à qualificação registrária, porque compete ao registrador o exercício, não menos de natureza administrativa, de verificar se o título se conforma com as exigências do ordenamento registral, e esta competência do registrador é sua função institucional e privativa (isto é a doutrina quod omnes docent: Roca Sastre, Chico Ortiz, Martínez Santos, p.ex.).
 
427. Mas, se na dicção de Chico Ortiz, “la patología del acto administrativo no es muy clara”, tanto mais se agrava a dificuldade de estabelecer os lindes da qualificação registral dos títulos administrativos quando, tal o quadro brasileiro, não há dispositivo legal que sequer assine contornos para o juízo hipotecário.
 
Parece que por algum reflexo da natura rerum −ou, se se preferir, da natura documentorum− haja alguma consonância na praxis registral quanto ao que se pode (ou melhor: que se deve) considerar na qualificação dos títulos administrativos.
 
Adotando-se esta linha, podem elencar-se, pois, com um dado bastante grau de plausibilidade, serem suscetíveis de controle registral, quanto aos títulos administrativos, quando menos (i) a competência da fonte administrativa, (ii) outras formalidades extrínsecas do documento −o que inclui sua integridade−, (iii) a expressa ressonância quanto à situação jurídica de um imóvel, (iv) a firmeza −ou preclusão administrativa− do ato objeto, (v) sua conformidade com as exigências do trato consecutivo e da especialidade.
 
428. A competência da fonte emanante do título administrativo é um elemento formal externo do documento e do ato-conteúdo, mas pela prioridade que ostenta −sempre a competência é a primeira das questões a examinar−, ela se destaca do exame das demais formalidades documentárias. É mesmo razoável que, faltando a um título administrativo, de maneira manifesta, a competência para sua emissão, o juízo de qualificação registral não necessite ir além de apontá-la.
 
Cabe distinguir, neste capítulo, (i) a competência (ou talvez melhor: capacidade) política; (ii) a competência de ente; (iii) a competência de órgão; e (iv) a competência e legitimidade do agente ou funcionário (vidē, por brevidade de causa, a doutrina sólida de Ricardo Marcondes Martins, em Efeitos dos vícios do ato administrativo).
 
Pode, com efeito, ocorrer que um aparente documento administrativo não provenha de nenhum ente político (no caso brasileiro: União, Estado-membro, Distrito Federal ou Município); suponha-se, p.ex., que uma entidade privada emita, ela própria, uma carta de habitação ou uma certidão negativa de débito. Falta aí a capacidade ou competência política.
 
Pode ainda acontecer, v.g., de um dado município expedir um documento certificante de negativa de débitos estaduais ou federais. Estamos aí à frente da ausência de competência de um ente que, embora dotado de capacidade política, usurpa a competência de outro ente político.
 
Noutro exemplo, uma Secretaria da Educação de um município emite o “habite-se” que é da competência de um departamento urbanístico municipal, e temos um vício que ofende a competência de órgão.
 
Por fim, podem faltar a competência e a legitimidade do agente, não só quando sequer integre a estrutura do órgão ou ente político (deixemos aqui ressalvado o complexo tema de aproveitamento dos atos praticados por funcionários de fato), mas também quando um agente público, dentro embora do órgão em que lotado, exercita função fora dos limites de suas atribuições (p.ex., um escrevente do Tribunal de Impostos e Taxas profere e assina uma sentença em processo fiscal).
 
429. Quanto a este último ponto, diz Trotabas, com a clareza tão comum e elogiável dos autores franceses, que, sendo o funcionário o órgão da Administração, esta qualidade explica a noção de competência, porque ela lhe é assinada para cumprir os atos de sua função. E, assim, a competência é um atributo da função, de modo que não está concedida à livre disposição dos funcionários. Desta maneira, a Administração (que é uma pessoa jurídica) age por meio de seus vários órgãos, e estes constituem-se pelas pessoas dos funcionários, a quem se assina a observância dos atos demarcados para os diversos órgãos, órgãos que, nas palavras de Giandomenico Falcon, “non sono chiamati a fare tutti la stessa cosa, ma a ciascuno è affidato un proprio compito, differenziato da quello degli altri”. Daí a noção de competência administrativa: a repartição do conjunto das tarefas e dos poderes jurídicos repartido entre os diversos órgãos (e funcionários) da Administração.
 
Vejamos, a propósito, o que, depois de assinalar que as pessoas coletivas se exprimem por meio de seus órgãos, diz este excelente doutrinador contemporâneo que é Paulo Otero:
 
“Cada órgão, ao expressar uma vontade juridicamente imputável à pessoa colectiva onde se encontra integrado, exerce um conjunto de poderes jurídicos tendentes à realização das atribuições da respectiva entidade pública. Esse conjunto de faculdades jurídicas confiadas a cada órgão constitui a sua competência.”
 
Ao registrador incumbe, na qualificação do título administrativo, aferir a competência do emissor desse título, dentro das fronteiras que se compaginem com sua inexistência e com sua nulidade, fatores que destroem −por motivos de ordem pública− a presunção de legitimidade do ato administrativo.
 
Continuaremos esta árdua matéria no próximo artigo desta série.