(Princípio da prioridade registral -Segunda parte)
 
587. O reconhecimento de prioridade jurídica é um meio de resolução de colidências de direitos cujo objeto tenha um mesmo bem jurídico.
 
Há, contudo, mais de um meio suscetível de adotar-se para a caracterização dessa prioridade:
 
(i)   assim, no que respeita aos direitos creditórios, norteados, ordinariamente, pela tendencial equivalência dos créditos (par conditio creditorum), para que eventuais preferências apenas resultem da lei posta em face da natureza dos créditos (fiscal, trabalhista, alimentar etc.);
 
(ii)   em alguns sistemas registrais existe uma prioridade de lugar (de locus, daí a conhecida expressão da língua alemã: Locusprinzip, indicando o direito de preferência segundo a localização do registro nos livros tabulares; tal se dá com a reserva de grau hipotecário ou com a hipoteca do proprietário, preservando-se espaços lacunares ou espaços vazios nos livros registrais, de sorte que seu preenchimento póstero leva à aquisição de preferência sobre os registros que ocupem local posterior, ainda que lançados estes últimos em dada precedente);
 
(iii)  o sistema do morgadio −morgado −, que torna indivisíveis, inalienáveis e impenhoráveis determinados imóveis, excluindo-os de toda possível colisão, ante a vinculação familiar por tempo indeterminado; na Espanha, o sistema de vinculações (incluído o morgadio −mayorazgo) perseverou até outubro de 1820; em Portugal, até abril de 1832; e, no Brasil, embora não fosse comum adotá-lo, há notícias de sua existência até ao menos o século XVIII, quando não mesmo princípios do século XIX;
 
(iv)   o critério da prioridade temporal ou cronológica, que é o exprimido pela sentença prior in tempore, potior in iure.
 
Ora, o conceito de prioridade de direitos −no modo prior in tempore, potior in iure − relaciona-se com a categoria de tempo, sobretudo a do tempo-duração, o tempo como memória: a continuidade dos fatos “che, come memoria, trova nella collettività la sua nicchia conveniente” −memória que encontra na coletividade seu nicho conveniente (Paulo Grossi, L’ordine giuridico medievale), e, a despeito da possibilidade da escolha de vários critérios para solver os conflitos no campo dos direitos reais imobiliários, a tradição jurídica favorece a adoção do critério cronológico −o critério que “concede el mayor rango a la mayor antigüedad” (Díez-Picazo; já Martin Wolff se referia ao princípio da preferência dos direitos mais antigos).
 
588. A valorização do tempo-duração −aliando a ideia de antiguidade à de estabilidade (é dizer, de situação assentada, pacífica)− tem lastro na história dos povos.
 
O status (posição, graduação, lugar, locus) dos direitos reais imobiliários não é o único que beneficia do reflexo da longinquitas temporis −ou seja, da continuidade de uma situação−,  embora caiba admitir que o exemplo mais gráfico deste reflexo esteja no modo aquisitivo do domínio (mobiliário ou imobiliário) que se dá com a usucapião. Todavia, a preferência jurídica do que é mais antigo vai muito além de ser um meio específico para a solução das colisões no direito real sobre imóvel.
 
São muitos os exemplos com que se pode ilustrar este ponto, de privilegiar-se um direito por força de sua antiguidade relativa (é dizer, de sua precedência em relação a outro).
 
Comecemos pela muito emblemática passagem da alienação dos direitos de primogenitura de Esaú, por um prato de lentilha, em favor de seu irmão Jacó (Gên. 25-27 et sqq.), e recordemos que, à altura, os primogênitos hebreus tinham por direito, entre outros, (i) uma dupla parte na herança paterna, (ii) o exercício do sacerdócio e (iii) o privilégio de transmitir as promessas divinas, sem que aí nada houvesse, de maneira específica, sobre conflitualidade em matéria de direitos imobiliários.
 
Tomemos dois outros exemplos. Primeiro, o de que houve, no século XIX, uma colisão de interesses da Alemanha, da Bélgica, da França e da Inglaterra contra Portugal, em torno da ocupação do território africano. Portugal, por afirmado (e reconhecido, de algum modo) direito de descoberta e de posse duradoura e pacífica, sustentava seu direito de soberania sobre Angola e Moçambique, o que, num dado aspecto, não se deixou de admitir pela Conferência de Berlim (novembro de 1884 a fevereiro de 1885), embora nela a conclusão impusesse o adendo de que “a soberania dos países europeus sobre territórios em África dependia, não apenas ou não tanto da descoberta e da posse (…), como sobretudo da ocupação efectiva pela potência administrativa” (Diogo Freitas do Amaral). Mas, enfim, não se negava, à raiz, a preferência da invenção dos territórios e de sua posse prolongada.
 
Segundo: a instituição (já acima referida) do morgadio, que adicionava sua voz a uma antiga crítica de Aristóteles contra a pulverização do domínio predial na ilha grega de Lêucade (Política, Bkk. 1266 b 8 et sqq.). Averbe-se que, de comum, a sucessão no morgadio dava-se em favor do primogênito.
 
Em resumo, a preferência dos povos pelo critério da valorização do mais antigo corresponde a um fator objetivo que considera o tempo como duração e, nele, em sua trajetória, a consequente experiência vital da comunidade −experientia cum naturā rerum−, confirmando que o respeito ao duradouro, ao estabelecido, ao assentado, mitiga, senão que em muitos casos até impede, as vicissitudes aflitivas do bem comum.
 
Poderia mesmo conjugar-se o tema com a ideia da prudência, porque esta virtude exige exatamente a memória do passado. Já Aristóteles deixou dito que a prudência é própria dos que já viveram o passado: os jovens, podendo ser geômetras e matemáticos, não parece que possam ser prudentes, porque a prudência tem por objeto principalmente os singulares, cuja familiaridade só se adquire pela experiência  no curso de largo tempo (vidē Ética a Nicômaco, Bkk. 1142 a).
 
Exemplo muito vívido desta memória do passado −ou, se se quiser, do exercício da prudência− encontra-se com o caso de velhinha de Siracusa, celebrizado no capítulo VI do De regno de S.Tomás de Aquino (que cito pela tradução de Arlindo Veiga dos Santos). Trata-se, neste passo, de saber se convém tolerar a tirania branda, pro bono pacis:
 
“… como outrora, em Siracusa, todos desejassem a morte de [o tirano] Dionísio, certa velha orava continuamente a fim de que ficasse incólume e sobrevivesse a ele. Disso sabendo, interrogou o tirano por que [ela] fazia assim. Ao que respondeu: «Quando eu era menina, como tivéssemos pesado tirano, desejava a morte dele; morto esse, sucedeu-lhe outro algo mais rude, cujo fim de dominação eu tinha por grande bem. E começamos a ter mais um governo intolerável, que es tu. Portanto, se fores derribado, sucederá um pior em teu lugar»”.
 
589. Esta perspectiva da prioridade registral como resultante do tempo-duração corresponde tanto ao conceito específico de prioridade substantiva (ou material), cuja eficácia se projeta desde seu termo a quo (no caso brasileiro, o lançamento no Livro do Protocolo), quanto ao de prioridade formal.
 
Da prioridade formal derivam dois efeitos:
 
(i)  o da preferência na qualificação: o titulo protocolizado avantaja-se a todos os que o sucedam na ordem de apresentação, ainda que não lhe sejam concorrentes no plano substantivo (uma questão interessante, porém, tem-se com a ocorrência de previsão legal de prazo muito exíguo para o registro de determinados títulos, o que imporia exceção à regra da prioridade de qualificação dos antes inscritos no protocolo); note-se, por outro lado, que a preferência temporal de qualificação não é o mesmo que prioridade cronológica para a consumação do registro, pois não se impede que se registrem antes títulos que não se oponham a outros com inscrição antecedente, desde que os primeiros apresentados sejam submetidos prioritariamente à qualificação;
 
(ii)  o da clausura do registro para os títulos com apresentação posterior que sejam colidentes, incompatíveis, com um já antes prenotado; a prenotação de um título interdita a inscrição definitiva de todos os que, com apresentação posterior, sejam conflituosos com o precedente; podem eles qualificar-se −vale dizer, examinar-se em ordem a inscrever-se−, mas sempre esbarrarão no entrave consistente na antecedência da prenotação de um título que lhes é oposto.
 
Assim, da prioridade formal nasce um direito posicional que, por si só, com independência de seu conteúdo substantivo, gera efeitos prioritários.