(Princípio da prioridade registral – Décima parte)
 
613. Examinemos, agora, concisamente, mais três dispositivos da Lei brasileira n. 6.015/1973, os enunciados de seus arts. 190, 191 e 192:
 
Art. 190 – Não serão registrados, no mesmo dia, títulos pelos quais se constituam direitos reais contraditórios sobre o mesmo imóvel.
 
Art. 191 – Prevalecerão, para efeito de prioridade de registro, quando apresentados no mesmo dia, os títulos prenotados no Protocolo sob número de ordem mais baixo, protelando-se o registro dos apresentados posteriormente, pelo prazo correspondente a, pelo menos, um dia útil.
 
Art. 192 – O disposto nos arts. 190 e 191 não se aplica às escrituras públicas, da mesma data e apresentadas no mesmo dia, que determinem, taxativamente, a hora da sua lavratura, prevalecendo, para efeito de prioridade, a que foi lavrada em primeiro lugar.
 
614. Esse art. 190 da Lei n. 6.015, que corresponde à primeira parte do art. 207 do Regulamento brasileiro de 1939, pressupõe títulos com (i) simultâneo processamento registral, (ii) identidade do prédio objeto, (iii) identidade do transmitente, (iv) contradição dos direitos reais a constituir e (v) identidade de fólio real.
 
O primeiro destes pressupostos −o do simultaneus processus in tabulā−, embora pareça de todo evidente, esconde uma questão interessante: Serpa Lopes entendeu essa simultaneidade ao modo de apresentação contemporânea dos títulos, prenotados, pois, num mesmo dia. De não serem os títulos de apresentação simultânea, a regra do art. 207 do Decreto de 1939 não se aplicaria (salvo o caso de segunda hipoteca).
 
Sem embargo da emérita autoridade de Serpa Lopes, o fato é que o enunciado da primeira parte do referido art. 207 do Regulamento −equivalendo ao preceito do art. 190 da Lei n. 6.015− não exprimia textualmente uma limitação à hipótese de concomitância do dia da prenotação dos títulos, sendo certo que, no plano formal, a garantia própria do status posicional emanado do protocolo tabular é o da prioridade de qualificação, não o de prioridade quanto a efetivar-se, lançar-se a inscrição; ou seja, nada impede que um título, prenotado posteriormente a outro, seja inscrito com antecedência, desde que não lhe ofenda a prioridade substantiva. Parece melhor entender que a vedação de inscrições de direitos contraditórios no mesmo dia busque extrair melhores efeitos publicitários a contar da própria visibilidade gráfica da matrícula. E aparenta confirmar-se esse significado normativo com o art. 191 da Lei n. 6.015, ao dispor-se que os títulos apresentados no mesmo dia devam inscrever-se distanciados um do outro por pelo menos um dia.
 
Vai de si que a interdição de, num “mesmo dia”, inscreverem-se direitos contraditórios concirna a um “mesmo imóvel” (é a dicção da lei), mas não é tão ostensiva a exigência de mesmo transmitente. Serpa Lopes −em noção que aqui se reitera− já assentara que os direitos reais contraditórios são “os que, oriundos de um só transmitente e por este atribuídos a titulares diversos e recaindo sobre o mesmo imóvel, se contradizem no seu conteúdo, de modo a se anularem reciprocamente, se fossem transcritos ou inscritos, contemporaneamente” (a ênfase gráfica não é do original). E, na sequência, distinguia, de um lado, os direitos contraditórios, e, de outro lado, os direitos opostos. Esta distinção vem calcada em que, segundo Serpa Lopes, os direitos opostos consistem em um conflito de direitos derivados de transmitentes diversos −e isto se resolve pela prevalência do título originário do legitimado tabular; ao passo em que os direitos contraditórios são os emanantes de uma só procedência, ou seja: de um só transmitente.
 
Em que pese ao acerto deste discrimen de Serpa Lopes, não parece que as designações por ele adotadas se forrem de alguma razoável crítica no plano lógico. A oposição, com efeito, é, classicamente, um gênero referente à propriedade dos juízos [“Oppositio iudiciorum in genere est duorum indiciorum mutua repugnantia (…) et duas species oppsitionis distinguuntur: oppositio contradictoria et contraria” −De Vries], e, assim, a oposição tem por uma de suas espécies a contraditoriedade −oposição de grau máximo (oppositio perfectissima −cf. Fröbes), de que segue a menos feliz denominação de que se valeu Serpa Lopes.
 
À margem disto, os direitos potencialmente reais contraditórios são os de natureza tanto absoluta (contradictoria proprie dicta), quanto relativamente oposta (relativa oppositio). São os direitos, portanto, que derivam de títulos com potencialidade para atualizar-se, mas, ora insuscetíveis de coexistência permanente (contradição absoluta), ora apenas podendo conviver com atualização sucessiva (contradição relativa). Note-se, pois, que os títulos, material e formalmente, podem coexistir, mas não o podem os direitos reais resultantes da atualização registral. No primeiro caso, p.ex., não podem coexistir permanentemente dois domínios plenários sobre um mesmo imóvel (Tício aliena inteiramente seu prédio tanto a Semprônia, quanto a Mélvio); no segundo caso, ad exemplum, duas ou mais hipotecas, cujos títulos não contiverem indicação de grau, só podem conviver com inscrições sucessivas no tempo.
 
A referência de Serpa Lopes à anulação recíproca dos direitos reais contraditórios traduz a indicação de que as presunções tabulares opostas entre si são, ipso facto (ou ipso tabula), infirmadas −é o que se designa de neutralização das presunções oponíveis.
 
Essa neutralização deriva da circunstância notória de que de presunções relativas contrapostas entre si não podem preservar-se simultaneamente, porque isto molestaria o princípio de não contradição: algo não pode ser e deixar de ser, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, e esse princípio cobra força tanto no plano ontológico, quanto no lógico, de maneira que as proposições contraditórias entre si se destroem mutuamente.
 
Ora, o mecanismo da publicidade registral opera, neste âmbito, com apoio no locus das inscrições definitivas (para o caso brasileiro, mais comumente o Livro n. 2 -Registro Geral), sem que, ressalvada a via jurisdicional, contenciosa, pois, possa resolver-se o tema das presunções tabulares oponíveis mediante o recurso à ordem das prenotações, porque estas últimas são transitórias, inscrições com validez in itinere.
 
Daí a justificativa da regra do art. 191 da Lei n. 6.015, ao impedir a inscrição, no mesmo dia e no mesmo fólio real de títulos que, contraditórios embora, não sejam de contradição (por óbvio) permanente, porque, fosse o caso de tratar-se de uma contradictio absoluta, já não se poderia inscrever mais que o primeiro deles.
 
Note-se que a exigência de as inscrições contrapostas dizerem respeito a um mesmo fólio (é dizer, a uma só matrícula) deixa margem ao correto entendimento de que, tratando-se de inscrições contraditórias realizadas em matrículas diversas, dar-se-á a consequente neutralização das presunções correspondentes, o que recomendará o bloqueio das matrizes, tudo sem prejuízo do exame de eventual responsabilidade do registrador.
 
Não se poderá, neste quadro, considerar, em via administrativa, a ordem das prenotações, porque o protocolo se exausta com a inscrição definitiva, não tem ele efeito persistente, mas apenas transitório −i.e., eficácia durante o trânsito procedimental do registro permanente (res effecta). Só na esfera jurisdicional, garantidos a ampla de defesa e o contraditório, poderá solver-se qual o melhor direito neste quadro.
 
Remate-se agora com a referência de que alguns dos problemas relativos ao registro dos direitos reais contraditórios emergem de prenotações sem a devida ordem: ad exemplum, Tício, legitimado tabular, vende o imóvel para Mélvio; Mélvio celebra promessa de venda e compra deste prédio em favor de Semprônia; apresentam-se ambos os títulos, simultaneamente, mas a promessa se protocoliza antes da venda e compra, interditando-se o registro permanente daquela. De comum, não haverá grande obstáculo a remover: tanto poderá protocolizar-se novamente a promessa, quanto poderá −isto o veremos adiante− admitir-se, observadas as condições devidas, uma permuta posicional no protocolo. Mas pode ocorrer de um terceiro título, prenotado após os dois primeiros, obstar o registro da promessa (v.g., uma indisponibilidade). Daí a relevância prático-prática de que, nos balcões cartorários, haja um ou mais prepostos (esta palavra me soa infeliz na atividade cartorária… gostava de referir-me a escreventes e auxiliares), repito: um ou mais prepostos experienciados, já vividos na arte registral o bastante para arraigar a virtude da prudência jurídica.
 
Falta-nos o exame do art. 192 da Lei n. 6.015.