(Princípio da prioridade registral – Décima-primeira parte)
 
615.  O art. 191 da Lei brasileira n. 6.015 prescreve a postergação das inscrições definitivas de títulos relativos a direitos reais contraditórios referíveis a um mesmo imóvel, determinando que a inscrição dos títulos posteriores (é dizer, posteriores no protocolo) se protelem por, ao menos, um dia útil.
 
Esta norma, para logo, prestigia a visibilidade tópica da matrícula (e não menos do livro do registro auxiliar), beneficiando sua leitura autônoma, ou sej: sem necessidade de recorrência ao protocolo para aferição da ordem prenotante dos títulos apresentados num mesmo dia.
 
Há outro aspecto a considerar com esse dispositivo do art. 191 da Lei n. 6.015: é que ele também se destina a solver uma concorrência de prenotações, indicando a preferência dos “títulos prenotados no Protocolo sob número de ordem mais baixo”. Trata-se aí de um concurso intratabular de prioridades, quer dizer, de prioridades estabelecidas de maneira endógena ao registro, pois os títulos, uma vez protocolizados, adquirem seu direito posicional e a eficácia prioritária substantiva segundo o regime registral interno: observa-se a ordem da prenotação.
 
616.  Diversamente, ao afastar a aplicação das normas dos arts. 190 e 191 da Lei n. 6.015 “às escrituras públicas, da mesma data e apresentadas no mesmo dia, que determinem, taxativamente, a hora da sua lavratura”, determinando que prevaleça, para efeito de prioridade, a escritura “lavrada em primeiro lugar”, o art. 192 da mesma Lei gravita no âmbito do complexo capítulo da interferência extrabular no concurso de prioridades registrais, scl.: a concorrência de algum fator externo, exógeno, na configuração do status prioritário.
 
Esse fator externo internaliza-se no registro, é verdade, com o protocolo do título, mas não menos verdade é que seu conteúdo notarial é o elemento determinante da vantagem de prioridade que se obtém: a hora da lavratura do ato notarial.
 
A aplicação desse preceito exige a conjunção de vários supostos.
 
Por primeiro, que se trate de escrituras públicas (rectius: escrituras notariais), o que exclui outros títulos não só extranotariais (p.ex., instrumentos públicos de origem judiciária ou títulos particulares), mas também outras espécies de atos oriundos das Notas (assim, a ata notarial). É que as normas excepcionais atraem compreensão e interpretação estritas, não lhes cabendo a extensão para abarcar realidade que não a nelas indicada expressamente. A distinção entre, de um lado, a escritura autorizada pelo notário, e, de outro, a ata notarial, ostenta persistente controvérsia, mas parece de todo razoável a doutrina espanhola −que é a fonte mundial mais expressiva acerca das atas notariais− ao definir a escritura notarial não pela prestação de consentimento, mas por ser seu objeto matéria de contrato: assim, nestes exemplos de Giménez-Arnau, autorizações maritais e paternais, ou meras renúncias que não engendrem obrigações, induzem atas notariais e não escrituras, ainda que naquelas haja manifestações de vontade. Perfilhado que seja esse discrimen, tanto não haja no instrumento notarial expressão de vontade criadora, modificadora ou extintiva de direitos, estar-se-á diante de uma ata notarial (Núñez Lagos), insuscetível de atração da norma do art. 192 da Lei brasileira n. 6.015/1973.
 
Segundo: as escrituras notariais referidas no art. 192 da Lei n. 6.015 hão de ter sido elaboradas em mesma data. Na expressão autorizada de Miguel Fernández Casado, em seu célebre Tratado de notaría, a relação jurídica, objeto do título notarial, é, sob dado aspecto, um fato, e, como todo fato, “es preciso relacionarle con el espacio y con el tiempo”. Porque são essas circunstâncias −de lugar e de tempo− que permitirão aferir a validade e a eficácia da relação instrumentada: p.ex., avaliando a demarcação territorial que limita a fé pública do notário ou as limitações temporais próprias da capacidade jurídica dos outorgantes. Por isto, escritura notarial sem menção de local e data é ato inválido (cf. inc. I do § 1º do art. 215 do vigente Código civil brasileiro; a Lei nacional n. 6.952, de 6-11-1981, acrescentou cinco parágrafos ao art. 134 de nosso Código civil de 1916, e a alínea do § 1º exatamente preceituou a inserção de data e lugar para “a escritura pública, lavrada em notas de tabelião”, de modo a que, assim, o documento preenchesse os requisitos para fazer prova plena).
 
Terceiro: esses títulos, para convocarem a norma do art. 192 da Lei n. 6.015, devem, expressamente, indicar a hora de sua lavratura. Pode dar-se o caso de as escrituras determinarem ambas uma idêntica hora de lavratura; neste quadro, “ficarão em pé de igualdade” (Serpa Lopes), de sorte que a prioridade se resolverá no plano endógeno em favor da prenotação mais longeva.
 
Quarto: devem as escrituras apresentar-se a registro no mesmo dia; sem essa concomitância diária no protocolo, deve seguir-se o critério correntio de prevalência da prioridade endógena.
 
617.  A norma do art. 192 da Lei n. 6.015 admite, pois, uma interferência de origem externa na prioridade registrária, acolhendo, embora, como visto, em espectro muito restrito, uma prioridade notarial.
 
Como fenômeno, é de supor de rara ocorrência, porque o concurso de seus requisitos é notoriamente incomum.
 
Mas isto não diminui a importância teórica de considerar a concorrência de um elemento exterior ao registro afetando a eficácia de prioridade substantiva emanante da inscrição tabular.
 
Não parece demasiado referir a circunstância de que, ainda neste quadro excepcional, prevaleçam as ideias de anterioridade e ancianidade como fatores de priorização. Já não se tratará aqui, à vista de um status manifestamente exceptivo, de reduzir o axioma clássico prior in tempore, potior in iure ao aforismo específico e corrente no âmbito registral prior in tabulā, potior in iure, senão que se vai ao encontro de uma formulação ainda mais restritiva e antecedente: prior in scripturā tabellionis, potior in iure. Ainda uma vez aqui parece convir a referência de Paulo Grossi à memória da coletividade, à importância que a comunidade concede ao critério de precedência temporal.
 
Deste modo, a eleição da anterioridade notarial para alguma (exceptiva) forma interferente na prioridade do registro tem uma fonte inspiradora e impulsiva na própria vida da comunidade. Lewis Mumford observou que já nos primórdios da cidade −é dizer, ao tempo em que, de fato ainda aldeia, a cidade já gestava sua estruturação embrionária (reporta-se ele, de maneira ilustrativa, à situação da Mesopotâmia no ano 4.000 a.C.) −repetindo: já nos tempos inaugurais da cidade humana havia Conselhos de Anciães, responsáveis pela organização do governo e do direito, pela distribuição da justiça, conselhos formados espontaneamente e que, diz Mumford, “expressavam o consenso humano”, não ao modo do legislador moderno e contemporâneo que faz as leis que ele próprio, a seu talante, entende caber, mas para “dar alguma aplicação imediata a regras aceitas e a decisões tomadas num passado imemorial”. Por que um Conselho de Anciães? Porque, em uma cultura não livresca, em uma cultura oral, “apenas os velhos tiveram tempo suficiente para assimilar tudo aquilo que se deve conhecer”. Disto advém que fosse a idade o critério que “estabelecia a precedência hierárquica e a autoridade”.
 
Também entre os antigos gregos −é ainda recolha de Lewis Mumford− o respeito pelo costume e pelo direito consuetudinário, ou seja: o respeito pela anterioridade, era o obstáculo popular ao capricho tirânico dos poderosos. E se bem a história não oculte haver um “sentimento de senilidade” (Curtius) e a “lamentação da senectude” (Lucrécio), tempera-os a sabedoria mediante os tópoi de uma conjugação do elogio dos jovens com o respeito aos velhos: p.ex., o topos do puer senex (ou puer senilis) aparece já no fim da Antiguidade pagã (Curtius), e Ovídio considera ser um presente divino a união da maturidade com a juventude.
 
Enfim, tal o fez ver Romano Amerio, a juventude, em rigor, é um bom projeto de não juventude, e é efetivamente estranho que, para algumas ideologias de turno, a idade madura projete-se modelada sobre a ideia de juventude, em vez de firmar-se no telos de uma sabedoria da maturidade.
 
Mas deixemos apenas referido este assunto de efebismo ou mesmo efebolatria (o culto e a adoração da juventude) −com seus consequentes de estímulo ao pouco interesse ou nenhum pelo passado, de impulsão à crítica ligeira (a supremacia do dóxico), de fomento às previsões meramente intuitivas−, porque o ponto aqui relevante, em nossos limites do direito registral, é exatamente o oposto, é o do prestígio da anterioridade e da ancianidade notariais ainda que em confronto com o sistema formal do protocolo tabular.
 
Prosseguiremos neste assunto, mais alargadamente. E aqui, ao modo de desfecho acerca da gravidade e da experiência que se esperam reconhecer no “tabelião de aldeia”, encerremos este passo com uma sentença de Alphonse Daudet, no Tartarin de Tarascon: “un tout petit monsieur en redingote noisette, vieux, sec, ridé, compassé (…) le parfait notaire de village”− “um senhor muito baixinho, vestindo sobrecasaca marrom, velho, seco, rugoso, altivo (…): o típico tabelião de aldeia”.