As diretivas antecipadas de vontade (DAV) é uma escritura de declaração de vontade quanto às diretrizes de um tratamento médico futuro, caso haja impossibilidade de manifestação da própria vontade
“Bom não é viver, mas viver bem.” Essa é uma das delicadas frases do poema “Nênia”, que fala sobre a morte, de autoria do poeta e filósofo brasileiro Antonio Cicero. No ano passado, ele realizou o suicídio assistido na Suíça, onde, ao contrário do Brasil, a lei permite a prática. Em 2023, o imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) havia sido diagnosticado com Alzheimer, uma doença neurodegenerativa sem cura, e não queria ter a vida afetada por seus sintomas, em especial a capacidade de ler e criar.
O figurinista Marcelo Pies, que manteve um relacionamento de mais de 40 anos com o poeta, apoiou a decisão. “O último ano de vida dele foi de muito sofrimento e infelicidade por causa do Alzheimer. A instituição suíça sem fins lucrativos Dignitas, onde meu marido praticou o suicídio assistido, tem exatamente o lema ‘viver com dignidade, morrer com dignidade’. Cicero, que era um intelectual, viveu a vida toda afirmando e apoiando essa ideia”, relata.
Embora a legislação brasileira não permita a prática, por ser cada vez mais comum que as pessoas já tenham tido ou tenham algum parente, amigo ou conhecido com uma doença incurável que o fez ou faz sofrer muito até a morte, a discussão e a repercussão que a morte assistida de Antonio Cicero levanta é positiva para a sociedade.
A Constituição Federal garante o direito à vida digna por meio do princípio da dignidade da pessoa humana. Esse princípio também protege o direito que cada pessoa tem de tomar suas próprias decisões, o livre-arbítrio, desde que não viole os direitos dos outros. “O Brasil deveria democratizar essa questão e debater uma legislação para ser possível a eutanásia e a morte assistida no país. Poucos podem ir à Suíça para morrer dignamente”, diz Pies.
O que já existe no Brasil e pode incentivar discussões sobre a morte assistida é o “testamento vital”, também conhecido como diretivas antecipadas de vontade (DAV), que Cicero já tinha feito havia muitos anos, segundo Pies. Na prática, trata-se de uma escritura pública de declaração de vontade quanto às diretrizes de um tratamento médico futuro, caso haja impossibilidade de manifestação da própria vontade. Em sã consciência, a pessoa pode estabelecer que não deseja se submeter a tratamento para prolongar a vida de modo artificial, por exemplo.
Também não há ainda legislação a respeito da DAV. É a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 1.995/2012 que regulamenta esse instrumento. O Projeto de Lei nº 2986, de 2022, está em tramitação no Senado para que a DAV vire lei. Mas o caminho para isso ainda é longo. Desde maio de 2023, o PL aguarda designação do relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
Mesmo assim, o uso do DAV tem aumentado para evitar brigas de família, segundo o advogado Bruno Araujo França, do Guimarães Bastos Advogados, banca especializada em direito de família e sucessões. “Tem um cliente médico que declarou que, se tiver Alzheimer, não quer ficar em casa de jeito nenhum porque acha muito duro para a família. Quer ser transferido para uma clínica, para se manter bem e a família também”, afirma.
Segundo o Colégio Notarial do Brasil (CNB) em São Paulo, de 2008 a 2024 foram registrados 4.945 DAVs nos cartórios do Estado. Desde o ano de 2013, o volume anual varia entre 181 (2023) e 589 (2021, ano de pandemia).
“A gente fazia carta com a declaração de que a pessoa queria ser levada para a Suíça, onde a legislação permite a morte assistida. Mas por causa do risco do médico que autoriza a viagem ter que responder criminalmente, deixamos de fazer”, diz França. “Nesse caso, para evitar litígio, o ideal é que toda a família, especialmente os herdeiros, esteja alinhada com a decisão do suicídio assistido, o que é difícil para o brasileiro médio, seja por questões religiosas ou morais”, acrescenta.
No caso de Antonio Cicero, sua irmã, a cantora e compositora Marina Lima, com quem ele compôs letras de músicas como “Fullgás”, foi informada do suicídio assistido na véspera do procedimento e, embora triste, aceitou a decisão do irmão, segundo o viúvo do poeta.
Fonte: Valor Econômico
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