REGISTROS SOBRE REGISTROS (n. 101)
 
(Princípio da prioridade registral -Décima-terceira parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
Como temos visto, o tema da prioridade não é só jurídico, senão que se estende por toda a parte da vida humana, tanto em seu aspecto individual (pense-se, p.ex., nas prioridades de estudos ou de leituras lúdicas), quanto social e cultural, e, ainda quando a prioridade tenha interesse mais próximo para o direito, ela não deixa muitas vezes de influir-se das aspirações da comunidade, e até mesmo pode ser o reconhecimento de uma preferência já de fato estabelecida em seus usos e costumes (a fila, v.g., é um fenômeno espontâneo na vida comunitária, e ela persevera, ao “espiritualizar-se” juridicamente com a adoção de senhas eletrônicas que são albergues persistentes do critério da primazia cronológica).
 
O próprio sistema do registro imobiliário é, de algum modo, uma recolha espiritualizada de preferências impostas na história das comunidades. A trajetória que vai da substituição da potestade tribal e das relações consanguíneas e religiosas pela potestade do território −refere-se Patricio Randle a que “Inglaterra era antaño el país que habitaban los ingleses. Los ingleses son hoy el pueblo que habita en Inglaterra”−, e, com a consciência do domínio territorial (quer a do espaço público, quer a dos prédios apropriados por particulares), o itinerário histórico da segurança que se simboliza e efetiva com o umbral das portas sucedido pelas muralhas das cidades são, em parte, recolhidos pela função conservadora que se institui, de maneira substituinte, com o registro de imóveis. Cumpre, assim, o registro predial o papel de realizar os mesmos benefícios que se confiavam obter com o controle do território, a saber: identidade, estímulo e segurança (vidē Randle) −os atuais registros públicos −entre eles o de imóveis (registros que já se encontravam, seminais, ao lado dos arquivos, das bibliotecas, das escolas, nas origens mesmas e remotíssimas da transformação das aldeias em cidades) são as moenia contemporâneas das liberdades e das propriedades, e tanto quanto se podia dizer, outrora, não ser possível existir oppidum seguro sem verdadeiras muralhas, pode hoje afirmar-se que não pode haver cidade segura sem verdadeiros registros públicos.
 
É rotineira, de resto, a vantagem de observar os usos e costumes que provaram seu êxito ao largo do tempo, confirmando-se úteis e aclimados às circunstâncias a que correspondam.
 
Diversamente, a adoção de critérios novos e abstratos, divorciados da praxis espontânea no meio social, exprime, com frequência e sem embargo de nisto não se recusar eventual boa intenção, caprichos artificiosos que pouco resistem ou nada à experiência do tempo. Nas origens da cidade, vão encontrar-se os caçadores na liderança política −Mumford chega a ver nisto os “fundamentos do domínio aristocrático”−, e liderança que não derivou de uma criação arbitrária, mas de um consequente social, porque são eles, os caçadores, experienciados na assunção de riscos e no confronto com a morte, e, bem por isso, tiveram reconhecida sua aptidão para liderar.
 
Quanto a esses referidos caprichos artificiosos, no que respeita às inovações legislativas, mais, talvez, do que em outras épocas da história da humanidade, deve dar-se razão a uma sentença atribuída controversamente ao Chanceler prussiano Otto von Bismarck, de que “as leis são quais as salsichas: melhor é que não se saiba como são feitas” −Gesetze sind wie Würste, man sollte besser nicht dabei sein, wenn sie gemacht werden.
 
Parece mesmo que a amplitude sociológica e cultural do tema das prioridades recomenda, de modo prudentemente realista, não se alterarem −salvo haja bons motivos− critérios já sólida e continuadamente estabelecidos de primazia jurídica na comunidade, de maneira que sempre se considerem detidamente vantagens reais que, para o bem comum, haja com estas mudanças, em vez de estimular e correr o risco de, sob a aparência de benefícios, instaurarem-se novidades frustrâneas e depressivas do bem da comunidade. A despeito da fortuna de que fruiu e ainda desfruta a ideia de “revolução urbana” −termo cujo uso inaugural se deve Gordon Childe−, a ascensão da cidade não se deveu ao desprezo das instituições anteriores (p.ex., já presentes na protocidade, quais os santuários, as fontes, os mercados, as fortificações), mas foi fruto, diversamente, da conservação substancial e melhoria dessas instituições (brevitatis studio: Lewis MUMFORD, no sempre essencial A cidade na história).
 
Quando o direito se evapora −na conhecida alusão de Mireille Delmas-Marty−, quando o sentimos como algo vago, difuso, algo que hoje nos impera o que fazer para amanhã impor-nos exatamente o oposto, parece que vivemos na expectativa contínua da anistia do dia seguinte, tamanha a instabilidade jurídica que revoluteia a vida comunal. E, neste quadro, o direito já não será um fator que nos estabilize, que nos dê segurança, mas algo fluido, lábil, algo que hoje nos sinaliza que coisa podemos fazer, para logo dizer-nos que o não podíamos ter feito. Daí que o direito se torne uma coisa estranha, algo completamente exterior a nós, algo que não nos toca a alma, algo que nos é imposto, só isto, nada mais que isto: um constrangimento externo. Perde, assim, sua amorabilidade.
 
Avista-se que o registro predial sofre hoje de uma propensão inspirada pelo adultério entre o fideísmo socialista (que não ficou sepulto sob os escombros do Muro de Berlim) e o neo-liberalismo, e sua coalescência acarretou a inclinação de o registro aparentar agora ser mais um defensor do crédito e da fluidez do que da estática própria do valor público e privado da territoriedade. Em vez de prestigiar a segurança do controle territorial −de que a propriedade privada do solo emerge por antinomásia−, o registro predial coevo parece, sobretudo, convocado a militar em prol do crédito, o do erário inclusive, o que explica a atual simpatia do administrativismo (que é apenas uma faceta do socialismo) pela defesa da segurança dinâmica.
 
Postas estas breves sugestões de cautela, ao tratar agora −nesta exposição− de questões candentes, como o sejam as de reserva e permuta de prenotação ou de graus de hipoteca, bem como a da hipoteca de proprietário, devemos indagar, com toda prudência, se as soluções que se sugiram, refugindo, embora, do habitual na praxe registrária brasileira, são boas ou más novidades (se é que são novidades). Cabe perguntar se, enfim, são achados que se descobrem ao modo de verdadeiras funções ainda não desenvolvidas no grande potencial do registro imobiliário? Ou, ao revés, não são realmente funções registrais? Porque estas, veja-se isto com cuidado, só são verdadeiras funções do registro quando cumprem o fim a que se destina o mesmo registro, de sorte que, muitas vezes, há falsos meios registrários porque são meios avessados do fim registral, meios que se apartam do fim de segurança jurídica e do bem comum, para, diversamente, atender a meros interesses privados, muita vez, por lástima, para servir à cupidez dinerária e à ambição do poder de alguns poucos.
 
A prioridade no registro imobiliário −a bem dizer, prioridade pelo registro ou para o registro− pode ser direta ou indireta. Direta é a que se produz de maneira interna ao registro, pelo assento na tábula. A indireta, a que se produz fora do registro, para o qual reflete o efeito prioritário.
 
A prioridade direta −esta classificação é de López de Zavalía− pode ser final ou terminativa (prior locus rei effectæ) ou inicial. Aquela, a terminativa, é a em que a prioridade guarda correspondência com a data do assento permanente (é dizer, com a inscrição que se tem por definitiva; no caso brasileiro, os lançamentos nos Livros ns. 2 e 3 do registro de imóveis). A prioridade inicial é a ditada pelo assento no protocolo, ou seja: pela prenotação. Esta é a que vigora no direito posto brasileiro. Raúl García Coni designa essa prioridade inicial de retroprioridade endógena, porque, de fato, a eficácia substantiva da prioridade consuma-se apenas com a res effecta, vale dizer, com a inscrição definitiva, mas, nada obstante, retroage ao tempo da prenotação.
 
No âmbito exclusivo da eficácia formal da prioridade, caberia ainda reconhecer uma outra espécie de retroprioridade endógena, qual seja a da reserva de prioridade −categoria que, como adiante melhor a veremos, não existe no direito brasileiro atual, e que se considera uma tutela in itinere do título registrável (García Coni).
 
A prioridade indireta, por sua vez, remonta-se ao tempo do título em sentido formal (o instrumento que se apresenta ao registro), e, bem por isto, López de Zavalía denomina-a retroprioridade exógena. Adota-a o direito argentino, assim se lê no art. 5º de sua Lei n. 17.801/1968 (de 28-6), que enuncia: “Las escrituras públicas que se presenten dentro del plazo de cuarenta y cinco días contados desde su otorgamiento, se considerarán registradas a la fecha de su instrumentación”.
 
Cabe observar que a Lei argentina n. 20.089/1972 (de 15-9), alterando os arts. 3.137 e 3.149 do Código civil da República Argentina, estendeu à hipoteca o regime do art. 5º da citada Lei n. 17.801; o prazo de 45 dias corresponde ao tempo da garantia de imutabilidade do assento, por força da extração de um seu certificado que produz o efeito de uma anotação preventiva (cf. art. 25 da referida Lei n. 17.801). Desta maneira, a paralisia cautelar das inscrições relativas a um dado imóvel habilita a retroprioridade endógena.