REGISTROS SOBRE REGISTROS (n. 104)
 
(Princípio da prioridade registral -Décima-sexta parte)
 
Des. Ricardo Dip
 
Já ficou referida a maior importância que a hipoteca ostenta, no âmbito da permuta posicional no registro de imóveis, tema a que podem agregar-se tanto o da reserva, quanto o da postergação (ou posposição) de lugar hipotecário.
 
Cabe salientar que a referência específica às influências −ordinariamente, alterações− de graus (ou postos) hipotecários não implica a negação de que outros direitos inscritos possam suportar influxos símiles. Tratar-se-á, contudo, apenas da hipoteca, por ser ela a que mais comumente interessa à prática e, por isto mesmo, à doutrina consequente do registro imobiliário.
 
À partida, calha dizer que a praxis registral brasileira é pouco menos que alheia a estas figuras, cabendo acrescentar que tampouco se acham previstas expressamente no direito nacional posto.
 
Nada obstante, elas não estão vedadas −cabendo, pois, a prevalência do critério da liberdade de contratação, o prestígio da autonomia de vontades, e, em alguns casos, o concurso congruente da inocuidade de eventual proibição (bastaria pensar, assim o indica Lacruz Berdejo, que, sendo possível renunciar a um direito real, é possível não menos cedê-lo em caso de conflito com outro direito).
 
Tal o vimos numa passagem de Hedemann que vem repetida, quase à letra, na doutrina de Afrânio de Carvalho, o grau hipotecário é “um direito adjunto e independente que pode ser objeto de negócio jurídico separado” (p.ex., venda, dação em pagamento, doação, etc.). No mesmo passo, embora recuse a autonomia valorativa do lugar hipotecário, Roca Sastre admite que possa o locus inscritivo da hipoteca (se se quiser dizer de outro modo: o grau da hipoteca) ser “objeto de alteración por medio de negocio jurídico”.
 
Os influxos juridicamente possíveis no registro, relativos aos lugares (e graus) hipotecários, são de três espécies, assim as enunciamos acima: (i) a permuta de posto, (ii) a reserva de grau e (iii) a posposição ou postergação do lugar registral.
 
Designa-se postergação ou posposição do posto ou lugar registral de uma hipoteca a abdicação −posterior a algum seu registro− do status de prioridade de um credor hipotecário em benefício de uma ou mais hipotecas já provisória ou definitivamente inscritas, ou mesmo de hipotecas futuras (isto, porém, quanto às hipotecas futuras, é matéria controversa).
 
Advirta-se, de logo, que menos incomum é tratar da postergação de grau (posposição de prioridade, de posto. de lugar etc.) no âmbito das inscrições definitivas (para o caso brasileiro, inscrições no livro n. 2, livro do registro geral), mas nada empecilha que se considere a viabilidade de postergação no livro do protocolo.
 
Tomemos um exemplo de posposição de grau: o do credor hipotecário, com registro da garantia, que pleiteie a postergação do status registral de seu direito hipotecário em relação, p.ex., a duas outras hipotecas inscritas de maneira posterior.
 
Trata-se de ato unilateral (Lacruz Berdejo), negócio jurídico de disposição (Roca Sastre) emanado do credor hipotecário, ato insuscetível de prejudicar terceiros, porquanto apenas posterga a preferência inscrita em favor de outros direitos. Discutível é que os direitos beneficiados devam constar do registro −divergente, a propósito, é a doutrina espanhola−, parece admissível, ao lado de uma postergação em ato (relativa a inscrições, tanto as avançadas, quanto a posposta, todas já efetivadas), a postergação potencial, referente a hipotecas futuras (que, neste caso, devem estar anunciadas com especialidade de valor e de tempo, quer de sua duração, quer de limite para inscrever-se).
 
A postergação haverá de submeter-se, no direito brasileiro vigente, ao que dispõe o art. 108 do Código civil: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”.
 
Uma segunda modalidade de influência na gradação hipotecária é a de reserva de lugar (ou reserva de grau).
 
Em rigor, cuida-se aqui de uma variação da figura da posposição, na medida em que a postergação supõe a inscrição hipotecária ao menos do título da garantia posposta. Quer dizer, para a postergação, a hipoteca já deve constar do registro (provisório ou definitivo). Diversamente, na reserva de lugar hipotecário, a garantia já se constituirá posposta pela configuração de uma ressalva de posto antecedente, ou seja, mediante averbação da reserva (no Brasil, observado o art. 108 do Cód.civ.), ou, entendimento controverso sustentado por Martin Wolff, com a hipótese de a escritura de constituição da garantia indicar a possibilidade de retrocesso de preferência diante de hipoteca futura (isto, na verdade, mais parece, com efeito, um caso de ajuste de ulterior postergação de grau).
 
As exigências da averbação de reserva de grau (que Hedemann considera indispensável) são as mesmas que se referem à postergação potencial (é dizer, a concernente a hipotecas futuras: especialização de seu valor e do tempo, tanto de sua duração, quanto do termo ad quem para inscrever-se −cf. Roca Sastre).
 
A reserva de lugar corresponde, no plano econômico, à rotineira exigência de serem de primeiro grau as hipotecas constituídas para se obterem empréstimos bancários.
 
A permuta de graus hipotecários é a troca de postos entre hipotecas inscritas, resguardados os limites de suas correspondentes especialidades.
 
O resguardo desses limites, com efeito, é fundamental para a garantia de terceiros.
 
Suponhamos o seguinte quadro quanto a um dado imóvel (outros exemplos símiles encontram-se, v.g., em Hedemman e Afrânio de Carvalho):
 
(i)      Tício é o favorecido em uma hipoteca de primeiro grau, com o valor de R$500.000,00;
 
(ii)     Mélvio é o beneficiário de uma hipoteca que tem o valor de R$200.000,00;
 
(iii)    Iulius é credor hipotecário −de terceiro grau−, com o valor garantido de R$600.000,00.
 
Tício ajusta com Iulius uma permuta de grau da hipoteca, de maneira que Tício vai para o terceiro posto nesta ordem preferencial exemplificativa, e Iulius beneficia-se com o primeiro lugar hipotecário.
 
Em virtude de execução, o imóvel objeto das garantias é arrematado pelo preço de R$800.000,00. Então, assim ficam os pagamentos correspondentes:
 
(i) Iulius recebe, por força da hipoteca de primeiro grau, R$500.000,00;
 
(ii)    Mélvio, R$200.000,00 (pois que não pode prejudicar-se pela permutação dos graus entre Tício e Iulius);
 
(iii)   Iulius recebe agora o remanescente de R$100.000,00.
 
Exaurido o preço da arrematação, Tício nada receberá, trasladando-se à posição de mero credor quirografário.
 
Parece ter razão Afrânio de Carvalho em negar a viabilidade jurídica, no direito brasileiro atual, da hipoteca de proprietário, porque, embora ela não repugne os fundamentos mesmos com que se admitem a permuta, a postergação e a reserva de graus da hipoteca −quais sejam o da liberdade de contratação, o da autonomia de vontades−, o fato é que essa reserva unilateral de posição tabular tem grande potencial de colisão com a segurança jurídica, por dar preferência a um valor separado, correspondente à dívida objeto −já extinta−, em benefício do próprio devedor.
 
Como quer que seja, a hipoteca de proprietário é a aquisição da garantia pelo próprio dominus, de modo que, operada embora a extinção do débito correspondente (p.ex., mediante pagamento, compensação, renúncia etc.), permaneceria vago o lugar registral da hipoteca, e, pois, a garantia −até então direito real sobre imóvel alheio− converter-se-ia num direito real sobre coisa própria.
 
Ao terminar o capítulo acerca da prioridade registral, parece de todo oportuno referir uma ilustração.

Quer-se mostrar aqui, com a anotação que se mencionará, que o tema da prioridade (designadamente, da prioridade cronológica) não diz apenas respeito aos registros públicos, até porque esses registros exatamente existem para felicitar a vida humana, e não, ao revés, para pô-la a seu serviço. Assim, a conclusão deste nosso capítulo volta-se a exalçar a indefinida importância do tempo e da ordem que lhe sucede nos acontecimentos da história do mundo.
 
Reporto-me aqui a um apócrifo do Velho Testamento, A vida de Adão e Eva, que consta de um manuscrito datado do ano 730 d.C.
 
Pois bem, ali se encontra −reitere-se: é um escrito apócrifo [isto, num sentido etimológico, é o mesmo que “livro oculto”, p.ex., como o eram os livros Sibilinos e o Ius Pontificum dos romanos (Aurelio de Santos); de modo corriqueiro, todavia, um escrito apócrifo significa antes algo de autenticidade duvidosa]−, mas se dizia: neste A vida de Adão e Eva, de leitura muito frequente na Idade média (Ferdinand Holböck), encontra-se um diálogo contundente entre, de um lado, S.Miguel, Princeps militiæ cælestis, e, de outro lado, Lúcifer, quia mendax est et pater eius: o diabo reclama de lhe ter sido imperada a veneração do primeiro homem, Adão, e diz: “Eu não necessito venerar Adão. (…) Não vou venerar quem é mais jovem e é menos do que eu. Eu fui criado antes dele. Antes que ele fosse criado, eu já o tinha sido. Ele, pois, é quem deveria venerar-me”.
 
Pois acontece que a prioridade temporal não era aplicável ao caso. E, como se sabe, depois disto, foi um inferno.