(O registro de imóveis e os direitos reais – Quarta parte)
 
679. Se, tal o ensinou Francisco Elías de Tejada −que foi um dos mais profundos e eruditos filósofos do direito do século XX−, é missão do direito a de converter a economia à ética, dessa missão se incumbe, em grande medida, o registro imobiliário, enquanto ordenador e custódio da propriedade privada de imóveis, quer, no plano estático, pela condição de ser seu conservador jurídico, quer, no aspecto dinâmico, por seu papel de vigilância da higidez das transferências de direitos. Ora bem, a perda do sentido da causalidade do registro alimenta a suposição de seu caráter burocrático, dando ensejo aos muito comuns discursos que lhe pregam a substituição por mecanismos cadastrais da administração pública ou por meios tecnológicos entregues à ganância da iniciativa privada (o exemplo emblemático é o da ultimamente constante referência ao blockchain).
 
Já na modernidade se insinuaram críticas contra as causas formal e final −Francis Bacon, v.g., delas disse que eram “virgens estéreis”−, e David Hume, por sua vez, menosprezou a causalidade eficiente, que considerava impossível de percepcionar pela evidência (porque entre a causa e o efeito não haveria algo sensível) ou de apreender pelo intelecto, com que se destruiria todo saber científico. O fato é que, se já o perdimento da consideração do registro de imóveis como causa eficiente da aquisição, conservação e transmissão dos direitos imobiliários debilita, por si só, a importância da atuação registral, muito mais a perda da ideia dos fins registrais, sobre destruir a relevância dos meios inscritivos e publicitários, desordena a atividade dos registros, descorçoa sua reta vinculação com o direito de propriedade e conduz à obnubilação da consciência profissional do registrador.
 
A hoje em moda autocensura do pensamento que, em favor da pensée unique, faz do politicamente correto um fator de aparente prestígio social −e não nos esqueçamos, neste passo, do quanto a muitos coage no cotidiano a pecha de “isolamento na comunidade”− parece interditar a recuperação da teleologia dos direitos reais (sobretudo da finalidade do domínio) e do registro de imóveis. E, no entanto, é necessário empenhar-se nessa recuperação: ter ciência da causa final da propriedade privada é fomentar as indispensáveis ciência e consciência registrais.
 
680.  O direito de propriedade é o direito real por antonomásia: com efeito, se, por sua elasticidade, o domínio abarca diversas possibilidades da relação humana com as coisas −de modo que o direito de propriedade pode dividir-se em diferentes partes, constituindo elas os direitos reais menores−, o domínio nunca perde sua vocação centrípeta essencial, sua tendência à consolidação, de reintegração de suas partes à unidade factual e jurídica.
 
Estas duas características da propriedade −elasticidade e vocação unitária− respondem à natureza da relação dos homens com as coisas. Têm estas a inclinação de possuírem-se pelos homens, e estes, a tendência natural de possuí-las. Mas, se, duplamente −da parte do sujeito e da parte das coisas−, a lei natural é indicativa do relacionamento dos homens com essas coisas, a mesma natureza, todavia, não aponta quem deva apossar-se do quê, é dizer: qual ou quais sujeitos devam investir-se da posse de qual ou quais coisas. Muitos problemas parecem desafiar soluções justas acerca deste apossamento singular das coisas, e ainda aparentem aqui tratar-se de questões remotas para o registro imobiliário, o fato é que, sem considerar a justiça das propriedades, o registro de imóveis será apenas um depósito de títulos, em vez de um agente cooperante para a conversão da economia à ética.
 
Dentre essas questões relevantes para a justiça dos domínios, cinco temas parecem muito agudos e atuais para a boa compreensão do papel do registro imobiliário:
 
(i)     o do destino universal dos bens, incluídos os imóveis;
 
(ii)    o da responsabilidade humana com a preservação das coisas;
 
(iii)   o da pleonéxia (desejo exacerbado de possuir injustamente, para, assim, disse-o Aristóteles, fruir do prazer da ganância, ou seja, o que configura a “cupidez da riqueza” −lucri cupiditatem−, a que se referiu Pio XI na Quadragesimo anno);
 
(iv)   a mobilização do imóvel (dando-se mais valor ao crédito do que à posse real do bem que, pela natureza das coisas, é chamado a ser um assentamento e não uma garantia creditória);
 
(v)    os obstáculos fiscais e administrativos às aquisições de domínio.
 
681. É de evidência que a natureza não identifica quem deva possuir cada coisa ou a quem deva cada coisa pertencer. A natura rerum não dita sequer, em cada caso, se e quando a apropriação deve ser individual ou, por exceção, coletiva. Já, pois, por este primeiro aspecto, emerge da realidade que as coisas tenham, em abstrato, uma destinação universal. E isto mais se compreende quando se pensa que, atribuídas coisas à humanidade, elas se destinem não apenas a parte dela, nem a uma parte contemporânea, senão que ao conjunto dos homens −ao conjunto dos homens do presente e do futuro, como antes já haviam sido fruídas pelos homens do passado.
 
Decerto, entretanto, essa destinação universal das coisas não refuta a legitimidade de sua posse individual, posse individual necessária tanto para o sustento do indivíduo que as possui, quanto para o sustento de sua família (convém aqui referir a circunstância de o vocábulo “economia” derivar do grego oikonomía, que significa “administração doméstica”; não é demasiado sublinhar que, sendo a família o primeiro e mais natural sistema de relações humanas, a ideia de “propriedade familiar” é um corolário da noção de “patrimônio”, i.e., “bens herdados dos pais” −cf. Louis Salleron).
 
A fruição individual das coisas é mais própria dos indivíduos (e de suas famílias) do que das comunidades que lhes sejam menos próximas, porque o domínio, sendo uma relação ordinariamente imediata do homem com as coisas, é um prolongamento necessário de toda pessoa no mundo material (Johannes Messner): uma necessidade vital da alma –“besoin vital de l’âme”  (Simone Weil)− e a consecução do fim das coisas –“la finalisation des choses par la personne” (Louis Salleron). Quando um indivíduo se apossa de uma coisa, torna-a própria em dois sentidos: (i) faz com que ela, “d’une certaine manière, soit devenue partie de sa propre personne” (Jacques Leclercq); e (ii) faz com que a coisa, ela mesma, cumpra sua própria destinação de servir. Não há, pois, um exagero de expressão quando Leclercq, referindo-se à analogia entre o direito de livre disposição da própria pessoa e o direito de livre disposição das coisas possuídas, acena a um instinto de propriedade –instinct de propriété−, emanante da personalização relacional dos indivíduos com as coisas.
 
Bem se vê, portanto, que a destinação universal das coisas não significa a negação do direito de domínio privado. Tal o diz Salleron, exatamente porque a propriedade individual é um prolongamento da personalidade, a propriedade é privada por natureza –“la propriété est privée par nature”. Daí que, prossegue o mesmo e notável pensador, o papel do estado seja não o de assumir a propriedade, mas o de regulá-la,  para que ela tenha função social. Ora bem, a primeira das funções sociais da propriedade é “a delimitação clara entre o que é de um e o que é de outro” (Johannes Messner), porque deste modo, continua Messner, “a propriedade privada põe-se a serviço da paz social e elimina as disputas”. Observa ainda este autor que, tratando-se de propriedade coletiva, sempre se tem o problema de quem possa dela dispor, gerando inevitáveis conflitos políticos. (Vem a calhar referir, neste passo, a circunstância de que os princípios da especialidade e da continuidade exprimem, no e pelo registro de imóveis, essa primeira e grandiosa função social do domínio).
 
Além disto, outra relevante função social da propriedade privada está em seu contributo para as liberdades concretas dos homens, na medida em que o setor econômico −sob o domínio privado− não é absorvido pelo setor do poder político-estatal (Salleron). Tal o disse Messner, “quando, em um estado, a propriedade privada está protegida pelo ordenamento jurídico, o cidadão estará sempre em melhores condições de exercer uma resistência passiva contra a intromissão do poder estatal (…). Desde o momento em que os cidadãos e suas famílias dependam completamente do estado no terreno material, já não existe obstáculo institucional algum que se oponha ao êxito da pretensão totalitária por parte do poder político”.
 
Por isto, o drama dos socialismos −e não apenas do comunismo, que é a culminância trágica do socialismo− não está só no conhecido fracasso econômico de sua praxis (para aqui não aludir a seu caráter realmente criminoso, como o testemunham os milhões de mortos nos países infelicitados por esta nefanda ideologia), mas em que, com a integração absorvente dos poderes político e econômico, o sistema socialista “désarme le citoyen et le prive de toute liberté” (Louis Salleron).
 
Não é por menos, enfim, que o insucesso do programa “clássico” do socialismo acarretou que se substituísse a desastrada revolução sócio-econômica do gauchisme do século XX por uma revolução moral-cultural (p.ex., Gramsci, Marcuse), a revolução sexista, dando-se, de fato, uma curiosa alteração de posições: diante da força cultural da ideologia socialista neste século XXI −com sua notória hegemonia nos meios de comunicação, nas universidades, no cinema e na literatura− a atual contracultura ou cultura dissidente é a de signo conservador, cujas expressões são tidas frequentemente por transgressoras e heterodoxas (vidē Contreras e Poole). Disso provém, em larga medida, parte dos discursos dirigidos contra o registro imobiliário, pois que ele é um sistema de ordenação e conservação da propriedade de imóveis, contra a qual propriedade ainda têm e mostram seu ressentimento as vetustas ideias socialistas.