(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: o bem de família – parte 1)
Des. Ricardo Dip
Insista-se em que, a despeito de ser tendencial a vocação do registro imobiliário para a inscrição de títulos aptos a atualizar direitos reais inscrever o título é passar da potência do direito a seu ato, nenhuma é a compulsão deste limite na atividade registral, e, além disto, ainda quanto aos direitos reais, não se tratando, muitas vezes, de mera inscrição (declarativa) desses direitos, mas da inscrição de títulos suscetíveis de constituí-los, não parece bem a asserção um tanto correntia da taxatividade desses títulos.
Todavia, num sistema formal e assim o é o registro de imóveis, espera-se um dado temperamento na admissão de títulos inscritíveis, sob pena de pôr em risco a segurança jurídica que é o fim próximo do sistema registral. Daí a conveniência de arrolar na lei títulos inscritíveis, para apontar critérios paideicos de compreensão e interpretação, ainda que não se tenha (ou não se deva ter) a intenção de alistá-los in numero clauso, e não se recuse, por evidente, o concurso possível de diversas leis dirigidas a formar o elenco das previsões de títulos registráveis.
No direito brasileiro vigente, esta função legislativa fundamental expressa-se no art. 167 da Lei n. 6.015, de 1973, que inaugura a lista dos títulos inscritíveis divididos secundum modos inscriptionis em registráveis stricto sensu (inc. I) e averbáveis (inc. II) com a referência à instituição do bem de família.
Consiste o bem de família na afetação que pode ser legal ou voluntária (ou facultativa, incluído o bem de família testamentário) de um bem (em geral) imóvel às necessidades de sustentação familiar, excluindo-o das vicissitudes econômicas que poderiam levá-lo à constrição e até mesmo à alienação forçada.
O fato de ser comum, nessa afetação, ter-se por objeto o bem imóvel resulta da centralidade que se concede à moradia na concepção desse instituto (por todos, vidē Ademar Fioranelli , Rosa Nery, Ulysses da Silva). Mas isto não impede que, sem perdimento de manter o núcleo da sustentação familiar com a ideia de habitação da família, possa estender-se a afetação a outros bens, p.ex., acessórios, pertenças (referência demasiada, no dizer acertado de Paulo Nader, porque as pertenças são acessórios: ver art. 93 do Cód.civ.bras. de 2002), valores mobiliários (cf., a propósito, o art. 1.712 do mesmo Cód.civ.), embora não caiba expandi-lo para beneficiar potência de moradia: assim é que, Walter Ceneviva, abonado por Ademar Fioranelli, entende incabível haja instituição de bem de família sobre terra nua; mas este de todo razoável entendimento não se estende a excluir, sem mais, as moradias comuns da anti-city, termo criado por Lewis Mumford em 1962 e a que concorrerão outros vocábulos disurbia, exópolis, outer city, outtown, penturbia, ruburbia, technoburb, para reportar-se à maré suburbana que inundou as metrópoles norte-americanas, no avesso das formas e princípios da cidade tradicional: a anti-city ou antipólis corresponde a padrões físicos, funcionais, sociais e culturais contrapostos ao que o Ocidente herdou da polis grega, e é, por isso mesmo, a negação do urbano, a adoção do instável, como a instalação de barracas, tendas, motorhomes etc.; aí teria então de disputar-se acerca de haver ou não mera potência construtiva (segundo os padrões urbanos) ou já moradia em ato.
Persiste a discussão sobre a natureza jurídica do bem de família. A alguns ele aparece sob o molde de um domínio familiar ou uma compropriedade da família, a despeito de manter-se sob a titularidade tabular dos instituidores. A outros, sugere um contrato, uma fundação, um direito real sobre coisa alheira ou ainda um domínio anômalo, aqui na medida em que se põe a salvo de algumas contingências. Mas, na verdade, não se pode reconhecer esse domínio ou condomínio familiar à margem da legitimação registral, o que prontamente se evidencia quando a instituição emerge da manifestação de terceiro não integrante da entidade familiar favorecida. Não é cômodo falar que se trate de contrato, sem que haja vontades contratantes, nem de fundação, sem que se erija e reconheça uma correspondente pessoa jurídica, tampouco de ius in re aliena, quando o próprio dominus se beneficia da instituição (cf. Ademar Fioranelli). Nestas circunstâncias, a ideia de configurar-se com o bem de família um “domínio anômalo” ou um “patrimônio especial” (Álvaro Villaça) quadra-o com a noção da espécie única, beneficiando-o, como é frequente nas classificações jurídicas, do caráter de ser sui generis (cf. Caio Mário e, de algum modo, Serpa Lopes).
Inclinam-se as teses, em linha geral, à conclusão de que o bem de família é um instituto próprio do regime patrimonial das relações de família (e, no quadro brasileiro, isto mais se robustece com a inclusão da matéria no Livro IV do Código civil de 2002, alterando o tratamento anterior, no Código de 1916, em que o bem de família era objeto da parte geral dessa normativa). Efetivamente, o que justifica essa regência excepcional é, de modo direto, exatamente a proteção da família, embora, de maneira remota, isto implique a proteção do bem comum geral, por ser a família a cellula mater societatis.
Já na Ética a Eudemo, Aristóteles ensinara ser o homem um animal familiar, e, não diversamente, S.Tomás de Aquino afirmou-o animal conjugal, até mesmo um animal mais naturalmente conjugal do que político pelo fato de a comunidade matrimonial preceder a comunidade civil. Ora, na medida em que a comunidade conjugal se justifica, prioritariamente, pela geração e educação da prole, essa comunidade interessa fundamentalmente à sociedade política e à espécie humana. Em tempos como os atuais, no qual se manifesta uma notória revolução egótica −um hiperindividualismo exacerbado−, é de todo relevante considerar que, ao menos no que diz respeito ao tema do bem de família, prevaleça o interesse político (ou seja, da comunidade política) pelo matrimônio, o interesse de que a família sirva ao bem comum, ao bem da comunidade, principalmente quanto à geração da prole e o sustento da entidade familiar.
Assim, não só a instituição pública de um registro (pessoal) custódio do status do matrimônio, mas também a admissão do bem de família, são ambas emblemáticas da vultosa importância concedida pelo poder político à realidade da família, corpo natural, tanto no concernente à sua constituição (contratação ou instituição) pelo casamento (matrimonium in fieri) em linha de princípio, quanto no que se refere à perseverança sustentável do estado familiar (matrimonium in facto esse). A extensão da ideia de entidade familiar, mediante a proteção jurídica expansiva às instituições-sombra (shadow institutions), nutre-se do mesmo fim de defesa da família, ainda que se controverta sobre a premissa em que se apoie e possa duvidar-se dos efeitos que se obtenham, de fato, com esse alargamento protetivo.
O Código civil brasileiro de 2002 versa o bem de família em seus arts. 1.711 a 1.722, mas há uma de suas espécies em normativa extravagante do Código (a Lei n. 8.009, de 29-3-1990), e o tema é também objeto da Lei n. 6.015/1973 (arts. 167, inc. n. 1, e 260-5).
Ordinariamente, pela falta de regular adimplemento de suas obrigações, o devedor responde com todos seus bens (art. 391 do Cód.civ.), presentes e futuros (art. 789 do Cód.proc.civ. de 2015), “salvo as restrições estabelecidas em lei” (id.), entre essas exceções contando-se a pequena propriedade rural (inc. XXVI do art. 5º da Constituição federal de 1988), o crédito alimentar (art. 1.707 do Cód.civ.), e as várias situações indicadas nos arts. 832 a 834 do Código de processo civil. Por igual, o bem de família é , quando menos, “isento de execução por dívidas posteriores a sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio [sobre o qual recaia a instituição]” (art. 1.715 do Cód.civ.), chegando a, num certo sentido, maior proteção no plexo da Lei n. 8.099/1990, em que se excluem da execução até mesmo dívidas anteriores à vigência dessa normativa especial (calha, todavia, que o art. 3º da Lei n. 8.099 reduz, noutro sentido, a extensão exclusora da via executiva).
Interessam para o espectro do registro imobiliário sobretudo as espécies do bem de família voluntário ou contratual, e o bem de família testamentário, porque um e outro são suscetíveis de inscrição predial.
O bem de família facultativo pode, no direito brasileiro em vigor, instituir-se (i) pelos cônjuges, (ii) pela própria entidade familiar e (iii) por terceiro (art. 1.711 do Cód.civ.). Essa previsão normativa poderia mais diretamente referir que o proprietário do bem ou seus comproprietários detêm a legitimidade para instituir o bem de família indicando-se, pois, o fim precípuo de moradia como destinação de um bem em favor de uma singular comunidade familial; preferiu-se, no entanto, um caminho mais tortuoso, talvez para salientar a expansão do conceito de família. Assim, com a referência à possibilidade de a própria entidade familiar instituir o bem de família abrangeram-se as figuras dos instituidores solteiros, viúvos e chefes de família monoparental (cf. Milton Paulo de Carvalho Filho), e com a alusão normativa à figura dos cônjuges, no plural, não se impôs exigir a manifestação de vontade de ambos quando o bem objeto seja do domínio exclusivo de somente um deles (vidē Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho). Também o terceiro (pessoa que não integra a entidade familiar beneficiada) pode instituir o bem de família desde que haja a aceitação expressa dos favorecidos (p.ún. do art. 1.711 do Cód.civ.), de cuja data emergirá a eficácia da instituição.
É requisito objetivo da instituição do bem de família voluntário, no direito brasileiro vigente, o de que o imóvel referencial não seja de valor superior a um terço do patrimônio líquido do instituidor ao tempo da instituição (caput do art. 1.711 do Cód.civ.), e interessa aqui examinar se é da atribuição do notário ou do registrador o controle dessa proporção.
De logo, o valor proporcional exigível diz respeito, de maneira expressa na lei, ao tempo da instituição, e esta ocorre mediante o registro e não por meio da extração notarial. De onde segue não se atribuir ao notário o controle da proporção valorativa do imóvel objeto material da instituição do bem de família, embora, no âmbito do exercício do cavere, deva aconselhar os clientes em caso de apurar-se antecipadamente a prognosticável ofensa da lei (neste mesmo sentido, Vitor Kümpel-Carla Ferrari e Eduardo Sarmento Filho).
Quanto ao registrador, parece-me tampouco que lhe caiba a tarefa de diligenciar dinâmicos valores de mercado se é que esses valores efetivamente possam apurar-se. O mundo oficial do registrador é o da tábula, não o externo.
Prosseguiremos.