(seq. NOTÁRIO LATINO ou ROMÂNICO):
 
E como já o temos dito, as circunstâncias históricas que plasmaram a transição da Idade antiga para a Alta medieval não beneficiaram o estudo escolar do direito. Bem ao revés, consideremos a imagem de muitos povos bárbaros a invadir o Império romano já debilitado em seu corpo e em sua alma; tal o disse Ferdinand Lot (in La fin du monde antique et le début du moyen age), o Império estava em meio à “luta desesperada de um organismo que não quer morrer”, mas que se vê em um irresistível estado de miséria moral e material. Não era mesmo, ao tempo do saque de Roma por Alarico, que já se pensara tratar ali do apocalipse?
 
Pois bem, os vocacionados a serem iuris prudentes, não tendo escolas de direito a que recorrer para seus estudos, agremiaram-se nos mosteiros, nas abadias, nas catedrais, ali instruindo-se –para praticá-las– nas três primeiras artes liberais (rectius: as artes próprias dos homens livres, a dos que buscam diretamente a verdade e o bem moral; à diferença das artes servis ou utilitárias que são para os homens que se põem a serviço direto do útil).
 
Entre essas três primeiras artes liberais, todas de relevo na formação, proximamente, intelectual e, remotamente, profissional, dos homens livres –a saber, as artes da gramática, da lógica (incluída a dialética) e da retórica–, foi esta última, a retórica, a que mais atraiu a dedicação dos scribæ iurispraxis que são os diretos antecessores do notarius publicus. Veja-se, por exemplo, esta passagem do magnífico e justamente celebrado opúsculo de Charles Haskins sobre a ascensão das universidades: “Os estudos jurídicos subsistiram [entre o século VII e a segunda metade do século XI], repete-se: os estudos jurídicos subsistiram, se chegara, a tanto, meramente como o aprendizado da elaboração de documentos, uma forma de retórica aplicada”… uma forma de retórica aplicada!
 
Mas em que consiste, verdadeiramente, esta arte da retórica, uma das artes do trivium, que, em nossos dias, é um tanto pejorada? As expressões “é retórica”, “é pura retórica”, “é mera retórica” são por agora malsoantes, significando o discurso falacioso, o discurso falso, o discurso vácuo, o diversionista etc.
 
Pode a retórica entender-se como a arte de bem e verdadeiramente persuadir da verdade e do bem, com que, pois, é arte proba na forma e no conteúdo; é a arte de falar (Ernst Curtius), mas de falar –ou escrever– de maneira “adequada ao sujeito” (Graciela Hernández de Lamas), a “adaptação da linguagem às circunstâncias” (Ir. Miriam Joseph), a arte de, sem abdicar da verdade e do bem, moldar-se ao auditório (pois o auditório nem sempre é capaz de seguir uma dada linha de argumentação –Aristóteles); é a arte ou método de construir artisticamente o discurso, sobretudo voltado à persuasão (discurso persuasório; suasoria; deliberativa), embora, secundariamente, possa apresentar outras direções: p.ex., a laudatória –panegyricus– e até a de insignificâncias, como consta já referido na consagrada Retórica a Herênio, falsamente atribuída a Cícero. Quanto a esta retórica de nimiedades (de ciência), mas que pode ter muito valor para a vida, disse Haskins que, sendo poucos os aptos a escrever na Alta idade média, “era ainda menor o número daqueles que podiam redigir uma carta, enquanto os escribas e os notários profissionais, responsáveis pela maior parte do trabalho de correspondência medieval, estamparam nas cartas do período um formalismo repleto dos estereótipos da retórica convencional”.
 
Ao passo em que a gramática coordena as formas para a expressão verbal (oral ou literal) ser exteriormente correta e, assim, exprimir o que pensa o emitente, e em que a lógica, por sua vez, combina conceitos, juízos e raciocínios para bem conduzir à verdade, cabe à retórica a tarefa de manifestar o pensamento com unidade, coerência, clareza, vigor e beleza (Ir. Miriam Joseph), para que o discurso seja persuasivo dos destinatários, seja até uma expressão destinada “a tornar mais forte a causa mais fraca” (Aristóteles).
 
Foi a prática da retórica que deu destreza e prudência aos scribæ e foi-lhes, de par com a educação moral,  gestando a história que um dia, séculos distantes, desembocaria na figura proba e idônea do notarius latinus.
 
Consta da Retórica a Herênio que a função do orador ou do scriptor é, pela retórica, obter, na medida do possível, a “aprovação do auditório”, e isto o foram aprendendo e ensinando os scribæ medievais por meio da combinação da teoria com uma prática reiterada que lhes educou no cavere: ao estudo dos preceitos adicionaram seu frequente exercício muito perseverante, de modo que da experiência vivida e meditada ao largo do tempo se foram formando as prudentes práticas e fórmulas de escrivania, sedimentando-se, especializado, o que veio a constituir o saber notarial.
 
E foi assim que a ars rhetorica, arte maior do trivium, sendo a arte da reta persuasão –ars rectæ persuasionis–, veio a liderar, com justo título, a arte da redação epistolar e documental (ars dictandi), que, sendo ela própria a soma das artes do trivium (Huerta Bono), terá sua consagração definida na ars et scientia notariis.
 
Apenas isto, em tão poucas e desleixadas linhas, para dizer que o notário latino não nasceu neste século, nem foi um Vulcano que o fez irromper, qual Minerva adulta e do nada, da cabeça de algum Júpiter pós-moderno e criativo. O notário tem uma história. Ou seja: ele tem uma natureza.