(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 16)
798. Entende-se por extensão objetiva da hipoteca o conjunto de bens principais e acessórios abrangidos pela garantia, é dizer, os bens que constituem o objeto material da hipoteca e, pois, são suscetíveis de constrição na via executória relativa à obrigação garantida não satisfeita.
Há, neste capítulo da extensão hipotecária objetiva, problemas importantes a resolver. Tem de pensar-se nas mudanças corpóreas dos imóveis “fonte de dúvidas potenciais relativamente ao âmbito físico dos objetos das hipotecas” (Rui Pinto Duarte). Em que medida as coisas móveis incorporadas ao imóvel garante se incluem na hipoteca (assim, cabe considerar se os móveis que dão adorno a uma casa ou as máquinas de um estabelecimento industrial estão abarcados pela garantia), ou ainda o que acontece com a edificação erguida no imóvel após a instituição hipotecária (vidē, por muitos, Carlos Martínez de Aguirre Audaz e Guillermo Borda). Disse bem Affonso Fraga que a hipoteca “prende e sujeita totalmente o imóvel onerado, de modo que sejam quais forem suas modificações, o estado em que se achar e a pessoa que o possuir, ela, com o seu laço poderoso, o sujeito no seu todo e em cada uma de suas partes (…)”. Cogite-se, v.g., do que ocorre se houver uma segregação no prédio ou, ao revés, uma agregação assim emerge com os fenômenos naturais das aluviões e avulsões, ou com os artificiais dos parcelamentos e das uniões (nota bene: não se trata de acessões) de lotes? Não é só isto: disputa-se sobre o que os acessórios compreendem neste quadro e também sobre a trasladação da garantia para os subrogados reais (pense-se no caso de um desmoronamento de construção objeto de seguro vidē Valiente Noailles).
Vem ao caso dizer que são principais os bens que correspondem, de algum modo, à categoria de substancial; são os que existem in se por natureza ou (mais raramente) ainda por uma determinação jurídico-positiva; vale dizer, são os bens que têm existência natural ou, secundum legem, própria. Em outros termos: coisas principais são aquelas cuja existência, por natureza ou por (excepcional) estatuto determinativo, não dependem de outras coisas, ao passo em que, diversamente, acessórias são as coisas que existem in aliud são acidentes, são bens que, por natureza, existem em outro: na substância, da qual dependem, ou que, em virtude de uma pouco ou nada comum determinação positiva, sejam tidas por dependentes. Com efeito, pode ocorrer de algo ser acessório secundum naturam, e a lei considerá-lo bem principal (bem separado, independente, autônomo: v.g., uma construção ou plantação podem ser de propriedade de alguém diverso do terreno em que se encontrem), modificando-se, pois, desta maneira, a relação natural de dependência entre os bens (vidē, a propósito, Conselheiro Ribas, Lacerda de Almeida e Carvalho Santos).
De fato, em dadas circunstâncias sobretudo de necessidades econômicas, pode entender-se prudente que se estime separar o acessório do principal, tornar aquele independente deste; mas não falta que a realidade das coisas, de algum modo, reverta na prática uma determinação jurídico-positiva de separação de bens principal e acessório relacionados: exemplo emblemático disto é o de considerar-se, no que se designa como acessão invertida, a maior importância relativa das unidades autônomas nos condomínios edilícios, embora essas unidades sejam juridicamente bens acessórios; nada obstante se aponte a principalidade secundum legem da fração ideal de um terreno, o que nele se constrói detém notória primazia econômica e social.
Esta possibilidade de mudança jurídico-positiva no relacionamento entre os bens (principais e acessórios) explica a razão pela qual o aforismo accessorium cedit principali o acessório segue a sorte do principal pode ser excepcionado, tal já o previa, p.ex., o nosso Código civil de 1916 (art. 59: “Salvo disposição especial em contrário, a coisa acessória segue a principal”), mediante a separação desses bens. Daí haja Vicente Rao ensinado que, sendo a inseparabilidade o característico da subordinação do acessório ao principal, não se impeça, contudo, estimar o tema “do ponto de vista meramente legal”, por mais que, admitir que, em aversão à natureza aversio natura, o acessório não siga a sorte do principal seja, em palavras de Manuel Domingues de Andrade, um “caso particularíssimo”, ou seja, uma exceção muito pontual.
799. Estas questões todas demandam solver-se em harmonia com a variedade dos ordenamentos jurídicos (cf., a título ilustrativo, os arts. 691º e 692º do Código civil português, e os arts. 402, 1.212 e 1.877 do Código civil espanhol). Também entre nós assim se passa.
Já o Código civil brasileiro de 1916 previra recaísse a hipoteca sobre “os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles” (inc. II do art. 810), no que itera nosso vigente Código civil (art. 1.473: “Podem ser objeto de hipoteca: I- os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles” nunca, porém, os acessórios sem o principal; para o entre bem principal e acessório cf. art. 92 do Cód.civ.), indicando ainda as soluções para outros pontos do capítulo da extensão objetiva da garantia: p.ex., no art. 959, dispondo que “conservam seus respectivos direitos os credores, hipotecários ou privilegiados: I – sobre o preço do seguro da coisa gravada com hipoteca ou privilégio, ou sobre a indenização devida, havendo responsável pela perda ou danificação da coisa; II – sobre o valor da indenização, se a coisa obrigada a hipoteca ou privilégio for desapropriada”; ou ainda, no art. 1.474: “A hipoteca abrange todas as acessões, melhoramentos ou construções do imóvel. Subsistem os ônus reais constituídos e registrados, anteriormente à hipoteca, sobre o mesmo imóvel” (todavia, não abrange as pertenças cf. art. 94 do Cód.civ.: “Os negócios jurídicos que dizem respeito ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade, ou das circunstâncias do caso”; pertenças [p.ex., máquinas em um imóvel rural] são “bens que, não constituindo partes integrantes [tais o são, v.g., os edifícios], se destinam, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento de outro”).
A propósito das “acessões, melhoramentos ou construções do imóvel” assim os refere o art. 1.474 do Código civil em vigor, convém lembrar desta lição de Affonso Fraga, para quem, ainda quanto às acessões artificiais (p.ex., edifícios e moinhos), não há necessidade, para que se compreendam no âmbito da hipoteca, de que se indiquem elas, de maneira específica, no ato de inscrição: “o vínculo hipotecário se estende aos melhoramentos feitos no imóvel”, o que, prossegue Fraga, “não passa de uma aplicação às relações de segurança hipotecária da velha máxima quod solo ædificatur solo cedit”.
Neste mesmo sentido, Serpa Lopes, invocando o aforismo acessorium sequitur principale, afirmou que “a acessão é um fato, cuja existência independe de qualquer inscrição, transcrição ou averbação”. Isto, por si só, soluciona o problema da extensão hipotecária a fatos não inscritos, mas não resolve a questão relativa às construções que terceiros façam em solo alheio (vidē arts. 1.219 a 1.222 e 1.253 a 1.259 do Cód.civ.bras.), matéria de todo interpelante e controversa que dividiu a doutrina pátria (p.ex., Clóvis Beviláqua e Lafayette, de um lado; Azevedo Marques e Serpa Lopes, de outro), e a cujo propósito, perfilhando o entendimento dos primeiros, inclinou-se Francisco Eduardo Loureiro, vigente o Código civil de 2002, a que o direito dos terceiros, neles suposta a boa-fé, possa exercer-se mediante indenização e retenção, ainda em face do arrematante ou do adjudicatário, porque “as acessões e benfeitorias valorizaram o imóvel e integram o preço da arrematação, de modo que a não indenização vulneraria a cláusula geral que veda o enriquecimento sem causa”.
Vê-se no mesmo sentido, também em antiga, mas ainda vigorante lição do Conselheiro Lafayette:
“O terceiro que em boa fé faz benfeitorias necessárias ou úteis no prédio alheio, tem, como é sabido, direito a haver do dono o custo delas, ou o valor que acrescentam ao imóvel (…). Ocorrendo o dito caso, o credor hipotecário, em cuja utilidade verte a despesa, é obrigado a descontá-la do preço do imóvel arrematado, e a entregar a respectiva importância ao autor das benfeitorias.”