(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 22)
 
Des. Ricardo Dip
 
817. Por hipotecas tácitas compreendem-se as que não exijam, para constituir-se, consentimento do instituidor, ato correspondente e documentação explícita (ou seja, as tácitas exatamente discriminam-se das hipotecas expressas, é dizer das manifestas, das exteriorizadas por meio de palavras que representem o consentimento institutivo). De comum, também se diz que essas hipotecas tácitas –ou implícitas– não reclamam publicidade registral.
 
Disto resulta que nelas se avistem os traços das antigas hipotecas ocultas e, em algum caso, até mesmo das hipotecas gerais sobre o patrimônio do devedor, o que, pois, logo põe em relevo sua reconhecida inconveniência prática.
 
No direito brasileiro, tem-se ainda uma vigente referência legal às hipotecas tácitas no Código do Comércio –Lei n. 556, de 25-6-1850–, cuja só primeira parte foi revogada com o advento do Código civil de 2002 (cf. art. 2.045). Essas hipotecas vêm mencionadas nos arts. 470, 471, 564, 876, 877 e 878 do Código comercial, no último dos quais artigos se trata da hipoteca tácita geral:
 
“Art. 878 – Têm hipoteca tácita geral em todos os bens do falido:
 
1 – O credor por alcance de contas de curadoria ou tutoria que o falido tivesse exercido;
 
2 – O credor por herança ou legado;
 
3 – O credor que presta alimentos ao falido e sua família, ou de ordem do falido, nos seis meses anteriores à quebra (art. 806).”
 
No direito espanhol, poucas são ainda as hipóteses subsistentes de hipoteca tácita, sobrevivendo apenas as que se admitem em favor (i) dos Fiscos –nacional, provincial e municipal– para garantia do pagamento de tributos, (ii) de seguradoras, em determinadas situações, e (iii) de condôminos para satisfação de despesas comuns em período anual.
 
818. Qualquer pessoa, quer física, quer jurídica, contanto esteja “no exercício pleno da capacidade de alienar imóveis, pode hipotecá-los para segurança de dívida sua ou de terceiro” (Lafayette), ou seja: dívida pessoal do instituidor ou dívida que lhe é estranha.
 
De dois modos pode um terceiro constituir a hipoteca: de um modo impróprio, quando o faz (i) por meio de representação do devedor; e doutro modo quando está (ii) na condição própria de um terceiro alheio à relação obrigacional a que se reporta a hipoteca.
 
Essa representação, por sua vez, pode originar-se diretamente da lei (representação legal) –assim a que concerne à dos pais quanto aos filhos menores (vidē art. 1.691 do Cód.civ.bras.)– ou provir de acordo de vontades (representação convencional: cf. art. 115 do mesmo Cód.civ.).
 
O contrato-tipo da representação (art. 653 do Cód.civ.bras.), isto é, o mandato, sempre que o ato objeto da representação deva celebrar-se por escrito (parte final do art. 657) não pode ser oral (ou prefere dizer a lei que o mandato não pode ser “verbal”; também usa este adjetivo o art. 656). Além disso, para que o representante –scl., o mandatário– possa constituir uma hipoteca, o mandato há de ser especial (art. 660: “O mandato pode ser especial a um ou mais negócios determinadamente, ou geral a todos os do mandante”), porque “o mandato em termos gerais só confere poderes de administração” (caput do art. 661) e, prossegue a normativa, “para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar outros quaisquer atos que exorbitem da administração ordinária, depende a procuração de poderes especiais e expressos” (§ 1º do art. 661; o itálico não é do original).
 
Diz Affonso Fraga, a propósito, que o mandato sempre exige “inteligência restrita”, de maneira que a circunstância de conferir-se pelo mandante “um poder latíssimo para alienação, não sofre interpretação extensiva para compreender o de hipotecar que requer sempre poderes especiais (nota n. 2.024 de seu justamente festejado Direitos reais de garantia).
 
Pode, entretanto, instituir-se a hipoteca por terceiro que não seja representante legal ou convencional do devedor, mas quem, “impelido pela gratidão, amizade ou qualquer outra causa” (Fraga), padece em seus bens o ônus da garantia hipotecária de dívida alheia.
 
O terceiro prestador da garantia não há de considerar-se responsável pela dívida, nem seu confitente (ou recognoscente), sendo-lhe ela de todo estranha. Bem o disse Clóvis Beviláqua, o prédio vinculado é o que responde pelo débito, não seu proprietário. Contrai-se com a garantia uma obrigação hipotecária, mas não a pessoal a que ela se reporta (Lafayette). Não se trata, para já, de um fiador, cujo patrimônio responda pela dívida correspondente, embora nada impeça possa o terceiro instituidor da hipoteca ajustar em conjunto a obrigação pessoal da fiança. Já isto o ensinara Dídido Agapito da Veiga: “Quem assim grava seu imóvel com por obrigação alheia não toma o compromisso de solver tal obrigação, de pagar a dívida; apenas afeta o imóvel à sua solução até o valor do mesmo. (…) O terceiro hipotecante pode ser fiador do devedor, neste caso o imóvel hipotecado não é a garantia única do credor”.
 
O fato de o terceiro instituidor da hipoteca não incluir-se na relação obrigacional a que se refere a garantia acarreta, salvaguardada a hipótese de uma cláusula expressa em contrário, que esse terceiro não esteja obrigado a responder pelo reliquum (quando o valor do imóvel for insuficiente para saldar a dívida garantida), nem a substituir ou reforçar o bem garante, “quando, sem culpa sua, se perca, deteriore, ou desvalorize” (art. 1.427; já era assim no Cód.civ. de 1916, art. 764, e antes mesmo: Decreto n. 169-A e Decreto n. 370, ambos de 1890). Se o bem se deteriora, desvaloriza ou perde por culpa do terceiro, então contrairá ele a responsabilidade por isto, mas à conta de ser uma resultante de delito civil (Clóvis).
 
Excutida a garantia pelo credor da hipoteca, com a alienação do imóvel garante, se houver remanescente em favor do terceiro, tem este o direito de receber a sobre (superfluum). É o que alguns designam direito de hyperocha, vale dizer, o direito de exigir do credor –tanto do credor do pignus, quanto do credor hipotecário– a restituição da demasia obtida com a alienação, o que exceder do valor garantido.
 
Embora alguns romanistas refiram o termo hyperocha (p.ex., Max Kaser, Pietro Bonfante, Gutiérrez-Alviz), Jörs e Kunkel põem em dúvida sua utilização nas instituições do direito romano: “Coisa notável –diz ele– é que, para significar isto [ou seja, o superfluum], use-se hoje exclusivamente na literatura moderna a expressão grega hyperocha, que só aparece uma vez nas fontes romanas em uma consulta formulada a Trifonino (…)”; ainda assim, prosseguem esses autores, “cabe duvidar se o fragmento não está interpolado”. No mesmo sentido crítico, Álvaro D’Ors vem dizer que a difusão do termo hyperocha na romanística moderna é de todo imprópria.