São nada menos que 30 milhões de propriedades nessa situação. Em Minas, 3 milhões não têm registro
 
Moradora de Virginópolis, de 10 mil habitantes, no Vale do Rio Doce, a técnica em enfermagem Suely Alves do Perpétuo Silva diz que realizou um verdadeiro sonho ao receber a escritura do imóvel onde a família mora há mais de 10 anos. No Norte do estado, em Mirabela, o comerciante Elias Soares da Fonseca ainda aguarda ansiosamente para ter em mãos a documentação do seu estabelecimento na chamada “terra do santo”, área que tem São Sebastião como “dono”, desde que fazendeiros doaram uma gleba para o santo no fim século 19.
 
A situação da técnica em enfermagem e do comerciante está relacionada a um problema histórico, que atinge milhões de brasileiros – maciçamente, a população de baixa renda –, afetando duramente a economia e que está sendo amenizado por uma lei promulgada recentemente: a falta de legalização dos imóveis urbanos. De acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento Regional (que incorporou o antigo Ministério das Cidades), cerca de 50% dos imóveis no Brasil têm algum tipo de irregularidade. São 60 milhões de domicílios urbanos, sendo 30 milhões irregulares – ou seja: os seus ocupantes nunca foram a um cartório para providenciar a escritura. Em Minas, levantamento aponta que 3 milhões de imóveis são irregulares, segundo o Colégio Registral Imobiliário de Minas Gerais (Cori/MG).
 
Loteamento à revelia da lei
A “informalidade” dos imóveis não distingue classes sociais: vai de favelas a condomínios de luxo. As causas da situação irregular também são diversas, indo desde as invasões a loteamentos que foram criados à revelia da lei – ou que não foram aprovados e não registrados – passando também pela venda ilegal de imóveis e por outros motivos, como a “doação para o santo”, que ocorre em outros municípios brasileiros, além de Mirabela. Além de acentuar o crescimento desordenado e a infraestrutura precária das cidades, ela acarreta enormes prejuízos econômicos para o país ao abrir caminho para a sonegação fiscal, fazendo com que a União, estados e municípios deixem de arrecadar bilhões em tributos como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e o Imposto de Renda (IR). Também provoca perdas para o comércio e para o sistema financeiro, já que, sem o documento legalizado, os proprietários não podem oferecer os imóveis em garantia de financiamentos, com dificuldades até para fazer cadastros e ter acesso a empréstimos e crediários, por exemplo.
 
As perdas com a irregularidade imobiliária são ressaltadas pelo advogado Renato Góes, presidente da Comissão de Regularização Fundiária da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo. Ele é um dos autores da Lei Federal 13.465/17, a chamada “Reurb” (Regularização Fundiária Urbana) e que também abrange a questão de interesse social (“Reurb-S”), destinada à população de baixa renda e que tem o objetivo de legalizar a situação dos milhões de proprietários urbanos “sem escritura”. Foi iniciado em Minas um projeto de legalização desses imóveis, com base na Reurb-S, que beneficia moradores de Belo Horizonte e várias outras cidades mineiras. A iniciativa é do Cori-MG, que oferece apoio técnico às prefeituras, capacitando servidores sobre os procedimentos previstos na nova legislação para a regularização dos imóveis das pessoas de baixa renda.
 
O advogado afirma que o percentual elevado de imóveis irregulares é um problema que se arrasta desde o descobrimento do Brasil. “Deve-se ressaltar que a irregularidade fundiária é um problema complexo que surgiu em 22 de abril de 1500 e vem se agravando a cada dia”, diz. “O problema começou em 1500, pois a legislação aplicada por Portugal não foi capaz de regrar o uso do solo brasileiro em face de sua dimensão e peculiaridade. Durante três séculos o Brasil insistiu no sistema de sesmarias, criado em Portugal em 1375 para outra realidade fundiária bem diversa da brasileira”.
 
Causas Múltiplas
Entre as várias causas do quadro irregular, Góes aponta “a equivocada e antiga máxima de que o direito de propriedade é absoluto, irrestrito e ilimitado, o excesso de normas e conflito de competências entre os entes federativos, a ausência de política pública específica, confusão de regularização fundiária com política habitacional; ausência ou ineficiência do controle do uso do solo, crescimento populacional desenfreado e ausência de planejamento urbano”, além da crise econômica e da especulação imobiliária.
 
O diretor do Departamento de Regularização Fundiária do Cori -MG, José Celso Ribeiro Vilela de Oliveira, salienta que uma das razões da falta de documentação dos terrenos é que “o processo de urbanização massiva enfrentado em nosso país nas últimas décadas do século 20 se deu sem organização ou controle”. Ele lembra que, “ao parcelar uma gleba, o loteador tem deveres para com a municipalidade e a coletividade”, devendo transferir um percentual de áreas públicas para que a prefeitura possa instalar serviços como postos de saúde, escolas e áreas verdes.
 
“É do loteador o ônus de custear as obras de infraestrutura e todo esse plano de loteamento deve ser previamente aprovado pelo município. Em seguida, a documentação deve ser apresentada ao registro de imóveis, como condição para que se possa legalmente vender os lotes, pois há necessidade de proteger os consumidores dessa oferta pública. Contudo, em regra, nada disso vinha sendo observado e os municípios, salvo poucas exceções, não exerceram satisfatoriamente seu papel fiscalizador. Por outro lado, diversas áreas públicas, dos municípios, do estado ou da União foram objeto de ocupação irregular”, relata o diretor do Cori/MG.
 
Quanto ao fato de o problema da irregularidade fundiária urbana atingir mais as áreas carentes, José Celso Oliveira explica: “A propriedade imobiliária é um ativo econômico. Como tal, as áreas com melhor localização e vocação do uso urbano são mais valorizadas. Portanto, o valor de venda de lotes nessas áreas é suficiente para o loteador arcar com o alto custo de parcelar regularmente um terreno. O inverso ocorre nas áreas menos valorizadas, ao que se normalmente agrega o alto custo de obras de infraestrutura, pois, na maioria das vezes, também a topografia é desfavorável”.
 
Vantagens econômicas da regularização fundiária
O advogado Renato Góes destaca que a regularização fundiária urbana, facilitada pela Lei da Reurb, da qual ele foi um dos autores, apresenta vantagens com bons  resultados para a economia. “A regularização fundiária gera vantagens de diversas searas (jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais) e a melhoria dessas searas gera ganho econômico às pessoas que residem no núcleo regularizado, às pessoas que moram na cidade, ao poder público (municípios, estados e União)”, afirma Góes.
 
“A primeira vantagem econômica é a valorização imobiliária de quem passa a ter um título de propriedade, que permite não só dar segurança jurídica ao ocupante, mas também ao eventual adquirente, além de permitir e facilitar o uso do sistema financeiro, valorizando os imóveis então irregulares. Um imóvel fundiariamente regularizado será dotado de infraestrutura e gerará ganhos diversos, impactando na economia local”, acrescenta.
 
O diretor do Cori, José Celso Oliveira, também destaca as vantagens da regularização. “A Reurb permite valorização dos imóveis, possibilitando mais investimentos públicos para as áreas, até mesmo com recursos federais e internacionais. Além disso, os proprietários podem obter financiamentos para melhoria das moradias ou para abrir empreendimentos a juros mais baixos”, enfatiza. Ele ressalta que os municípios também são beneficiados. “As administrações públicas passam a arrecadar tributos, como IPTU e ITBI, possibilitando que o município se desenvolva com qualidade e aprimore a prestação de serviços para a população. Em diversos casos, a Reurb é acompanhada da melhoria dos equipamentos públicos e de infraestrutura urbana, que passam a ser oferecidos à população”, observa.
 
De acordo com o Cori/MG, vários municípios já iniciaram a regularização de imóveis pela Reurb-S, englobando os núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda. Entre os municípios que desenvolvem a ação estão Belo Horizonte (bairros Jatobá, São Lucas, Itaipu, Urucuia e Jardim Leblon, entre outros), Brumadinho e Vespasiano (região metropolitana), Inhapim (Leste), Nova Porteirinha e Janaúba (Norte), Novo Cruzeiro e Catuji (Vale do Jequitinhonha) e Virginópolis (Vale do Rio Doce). Segundo dados do Cori/MG, os números de imóveis regularizados no estado por meio do projeto subiram de 3.761 em 2017 para 5.245 em 2018. Em 2019, já foram 4.498 terrenos e construções “legalizados” em Minas.
 
O diretor do órgão ressalta que a regularização dos núcleos urbanos exige ação coletiva, envolvendo o poder público e a comunidade. “As palavras de ordem para a regularização ir adiante em um município são coordenação de esforços e escala. Os municípios são os grandes atores responsáveis por realizá-las, mas a população deve se organizar para solicitar a demanda. E não adianta tentar a regularização individual ou de poucas casas. Quanto maior a escala de contratação, mais baixo fica o custo individual”, assegura José Celso.
 
Inserção na economia
O professor Pedro Seixas, coordenador do MBA em gestão de negócios de incorporação e construção imobiliária da Fundação Getulio Vargas, salienta que o índice de 50% de imóveis é um problema que precisa ser enfrentado. “Mas é preciso entender como esse percentual de imóveis irregulares está distribuído entre as classes sociais e em quais regiões ele se encontra. Temos a questão das favelas e das construções irregulares, mas a informalidade não é exclusividade dos imóveis mais baratos e mais precários”, informa Seixas.
 
Ele ressalta que a falta dos títulos de posse dos terrenos e das construções “cria uma barreira” para os proprietários, por não terem como dar o patrimônio como garantia em empréstimos. O especialista enfatiza a importância da regularização para a inclusão das pessoas na economia. “A formalização dos imóveis vai trazer vantagens econômicas para uma população que fica à margem do sistema financeiro. A partir da regularização, teremos a inserção econômica de muitas famílias”, afirma.