O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 8)
Recordemos –e isto parece sempre um exercício prudente (repetitio mater studiorum est)– que, nesta sequência de pequenos artigos dedicados ao capítulo “O notário e a moralidade pública”, estamos a examinar os hábitos (mais exatamente, as virtudes) que o notário não só deve, pessoalmente, possuir, mas que também deve ensinar, pela palavra e, sobremodo pelo exemplo, para o bem de toda a comunidade.
Trata-se de virtudes que, sendo exigíveis de todos, mais satisfazem, pela palavra e a exemplaridade, quando, em gradação social superior, observam-nas os detentores de autoridade e de poder político, assim, por exemplo, os juízes, os notários, os registradores, os professores.
Adotamos, brevitatis causa, a classificação das virtudes público-morais apontada pelo notário Bernardino Montejano em seu opúsculo Ética pública (Buenos Aires: Cruzamante, 1966). Não as elegeu ele por seu capricho, mas, sim, fundado na dotrina clássica, o que, pois, mais justifica nossa adesão a seu autorizado critério de escolha.
Dentre as várias virtudes alistadas por este grande jurista, já visitamos nós a da religião, anexa da virtude cardeal da justiça, parte do hábito da veneração. As outras duas partes potenciais da veneração –também indicadas por Montejano– são a piedade e a observância.
Tratemos um tanto agora da virtude da piedade.
Num certo sentido, a palavra piedade apresenta-se como sinônima do termo religião (Prümmer, Royo Marín), o que explica não só possa dizer-se “homem ímpio” aquele que se volta contra Deus, e “piedoso” o que é devoto, o que se entrega ao culto de Deus.
Todavia, de maneira específica, enquanto a religião dirige a Deus honra e culto como forma de, ainda que sem possível igualdade, retribuir a existência de cada um de nós e o cuidado providencial de nossas necessidades, já a virtude da piedade está, propriamente, destinada a recompensar os pais e a pátria –e de modo mais estendido, os amigos, os parentes e os benfeitores de cada um de nós–, por quanto lhes devemos, aos pais, a geração, a eles e a outros, o sustento, a educação, os conselhos, a solidariedade nos momentos difíceis e nas alegrias, os benefícios todos que deles recebemos, espirituais, intelectuais, morais e materiais (cf., por todos, Zalba, Prümmer, Lumbreras, Royo Marín, Gerlaud).
Depois de Deus, aqueles a quem mais devemos são nossos pais e a pátria (S.Tomás, S.th., II-II, 101-1), e, por isso, a piedade é uma virtude pela qual lhes tributamos amor (II-II, 101-3, ad1). Assim já o indicara Cícero, dizendo que a piedade implica o oferecimento e o culto diligente a quem nos está unido no sangue e no amor da pátria: num dos conselhos que S.Paulo dá a Timóteo, lê-se que “piedade é útil para tudo” (I Tim., IV-8), e na Carta dirigida a Tito, o mesmo Apóstolo das Gentes exorta a que vivamos “piedosamente no século atual” (I-12).
A piedade é uma parte potencial da justiça, porque, exigida por debitum, não se consegue saldá-lo, ou seja, a piedade nunca satisfaz a igualdade: “la piedad no es pagable ni soluble” (Yurre). De fato, não há valor que pague o quanto cada um de nós deve por nossa existência e o que se providenciou para nossa vida, tanto em relação a Deus, causa primeira de nosso ser e de nosso governo, quanto em relação aos princípios secundários de nossa existência, nossos pais e nossa pátria.
Consiste o objeto material da piedade em todos os atos de honra, reverência, serviço, ajuda material, moral, intelectual e espiritual que se tributam aos pais (parentes, amigos e benfeitores) e à pátria (Royo, Prümer, Zalba), e seu objeto formal, o débito correspondente.
Tal se vê, há duas espécies de piedade em acepção estrita: a filial e a patriótica.
Comecemos pela primeira delas. Um dos preceitos do Decálogo (Êxodo, XX-12) é exatamente o de honrar pai e mãe, preceito que se estende logo a todos os membros da família, incluídos os vínculos civis (p.ex., o conjugal), e, na sequência, aos liames entre amigos e entre mestres e discípulos (Gerlaud).
Diz S.Tomás de Aquino que de dois modos algo é devido aos pais: diretamente, devemos-lhes reverência e submissão (enquanto estivermos sujeitos à sua autoridade), e, indiretamente, na enfermidade, o dever de visita e assistência; na pobreza, o de seu sustento. Pode ainda acrescentar-se, com S.Agostinho, o dever de respeito e culto que se expressa mediante a recordação dos pais e a frequência de seu trato (Civ.Dei, X).
Em continuação, vamos tratar das obrigações específicas que se compreendem na piedade filial, e nisto seguiremos as clássicas referências deste grande pensador da moral que foi S.Afonso Maria de Ligório, cuja Theologia moralis nunca se havia publicado em língua romance, até que, recentemente (2018), foi traduzida para o português e editada no Rio de Janeiro (editora CDB).
Antes de encerrar este nosso pequeno artigo, consideremos o que, numa comunidade, causaria de espanto o fato –aqui só hipotético– de um notário tratar de modo irreverente os próprios pais, ou o de faltar-lhes ao sustento exigível e à assistência na enfermidade. Se estes pecados trazem repulsa em geral, quanto mais não a trazem e escandalizam quando os vícios se originam dos que detêm autoridade e poder público?