Para a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a regra da impenhorabilidade do bem de família não pode ser aplicada quando há violação do princípio da boa-fé objetiva. O colegiado negou recurso das proprietárias de um apartamento que invocavam a impenhorabilidade do bem de família oferecido em alienação fiduciária como garantia de empréstimo para empresa pertencente a uma das donas do imóvel.
 
No caso, uma das proprietárias do imóvel fez um empréstimo no banco no valor de R$ 1,1 milhão, com o objetivo de formar capital de giro na empresa da qual é a única dona. Ela ainda ofereceu como garantia o imóvel que possui em conjunto com outra pessoa e ambas assinaram o contrato de alienação fiduciária.
 
A empresária deixou de pagar as parcelas do empréstimo, com isso o banco entrou com o pedido de execução da garantia. Para não perder o imóvel, as proprietárias propuseram ação cautelar e, por meio de liminar, conseguiram afastar temporariamente as consequências do inadimplemento.
 
Em primeira instância, o pedido de nulidade do contrato de garantia foi julgado improcedente e a liminar concedida anteriormente foi cassada. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ/DF) manteve a sentença por entender que o acordo jurídico foi firmado em pleno exercício da autonomia dos envolvidos e sem nenhum defeito que o maculasse.
 
No recurso especial apresentado ao STJ, as recorrentes alegaram que uma das proprietárias do imóvel não é sócia da empresa e não teria sido beneficiada pelo empréstimo. Elas pediram o reconhecimento da impenhorabilidade do imóvel, por ser bem de família, e a declaração de nulidade da hipoteca instituída sobre ele.
 
O ministro Luis Felipe Salomão, relator do recurso, destacou que a jurisprudência do STJ reconhece que a proteção legal conferida ao bem de família pela Lei 8.009/1990 não pode ser afastada por renúncia do devedor ao privilégio, por ser princípio de ordem pública que prevalece sobre a vontade manifestada.
 
Mas, segundo ele, a regra de impenhorabilidade aplica-se às situações de uso regular do direito. “O abuso do direito de propriedade, a fraude e a má-fé do proprietário devem ser reprimidos, tornando ineficaz a norma protetiva, que não pode conviver, tolerar e premiar a atuação do agente em desconformidade com o ordenamento jurídico”, observou.
 
Decisão inovadora
 
Para Ana Carla Harmatiuk Matos, advogada e diretora nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – Ibdfam, a decisão bem denota como o Direito segue em movimento, dinamicamente construindo, mediante os julgados antecedentes, os vetores para uma jurisprudência que harmonize as regras das leis específicas com a principiologia de índole constitucional.
 
Para ela, a função teleológica da Lei 8.009/90 é uma proteção que é fundada em razões de ordem sociológica. Desse modo, procura garantir às famílias, ou a pessoa singularmente, daqueles em dificuldades econômicas um modo de saldar suas dívidas em condições mínimas de sobrevivência digna, garantido-lhes patrimônio mínimo.
 
“A lei visa a evitar que o credor, usando da lei e da estrutura judiciária para a satisfação de um crédito – um direito de simples expressão patrimonial – alcance ao extremo ético de condenar o devedor, e sua família, ao desabrigo e a falta de condições mínimas de existência”, destaca.
 
Ela diz que inclusive não se afigura possível a renúncia válida do benefício, quando o devedor citado nomeia o bem de família à penhora, ou se o exequente nomeia o bem de família à penhora, mesmo que o devedor concorde expressamente com a nomeação, restringe-se, assim, a autonomia que poderia estar contaminada por sua vulnerabilidade.
 
“Contudo, destaque-se, que hipótese notoriamente diversa é agora analisada. Segundo o noticiado uma das proprietárias do apartamento pegou emprestado o valor de R$ 1,1 milhão do banco, com o objetivo de formar capital de giro na empresa da qual é única dona. Neste contrato, ofereceu como garantia o imóvel que possui com outra pessoa, ambas assinando voluntariamente o contrato de alienação fiduciária. Trata-se, portanto, de contrato a ser interpretado segundo as normas de regência e a principiologia das relações obrigacionais”, afirma.
 
Responsabilidade patrimonial
 
A diretora nacional do Ibdfam destaca que a indicação voluntária do imóvel se deu no momento de formação do vínculo obrigacional, ausente naquele momento a premência de se saldar dívidas.
 
“Tratou-se de uma liberalidade na busca de empréstimo para investimento em negócio próprio, razão pela qual utilizou-se de um negócio jurídico de transmissão condicional -, sendo expressa e clara a cláusula de transferência da propriedade para que o banco tenha a garantia do pagamento”, destaca.
 
Assim, a restrição à responsabilidade patrimonial não pode ser abrigo para, em sua utilização abusiva, abarcar condutas as quais denotam violação ao princípio da boa-fé objetiva, configurando-se em uma distorção ética da própria razão de ser da lei de impenhorabilidade do bem de família.
 
“Concordo com a decisão pois acredito que a proteção do patrimônio mínimo do devedor não pode ser tutelado se ausente o padrão ético de conduta das partes nas relações obrigacionais, desvirtuando-se os objetivos traçados pelo espírito da lei da impenhorabilidade do bem de família. Deve-se na sua interpretação também primar pela honestidade, lealdade e probidade nas relações obrigacionais”, afirma.