O droit de saisine, no Brasil, está corporificado no art. 1.784 do Código Civil (“CC”). Aberta a sucessão, “a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”.

Sublinhei “herança” pois os herdeiros, com a abertura da sucessão, passam, de pleno direito, a ser titulares de direitos de uma fração – ou do todo, em caso de beneficiário único – daquela universalidade de direito, com conteúdo econômico, que se chama monte hereditário.

A esse monte desprovido de personalidade jurídica dá-se o nome de espólio, que só desaparece com a partilha, judicial ou extrajudicial. Homologada a partilha por sentença judicial, ou assinada a escritura, a propriedade dos bens do de cujus é desde logo transferida, e o registro imobiliário, neste caso, tem efeitos meramente declaratórios.

Enquanto o espólio persiste, o direito dos sucessores quanto à propriedade e posse da herança é indivisível, e pode ser alienado a terceiros, mediante cessão gratuita ou onerosa. Em outras palavras, o herdeiro pode, sem alvará judicial, ceder seus direitos hereditários, no todo ou em parte, a quem desejar, observado o direito de preferência dos demais (CC, art. 1.794).

Contudo, o CC traz duas restrições importantíssimas: (i) a cessão hereditária de um ou mais bens do monte, especificamente, só pode ser feita por todos os sucessores em conjunto, sob pena de ineficácia (art. 1.793, §2º); e (ii) a venda de ativos, singularmente considerados, só pode ser feita com autorização do juiz do inventário (art. 1.793, §3º).

O Lei não dispõe assim, mas em alguns lugares não se admite a cessão hereditária relativa a um bem singular sem alvará, mesmo que assinada por todos os sucessores, o que representa um alargamento indevido da restrição do art. 1.793, §2º.
Contudo, o foco deste breve texto é outro.

Sem autorização judicial, o inventariante não pode assinar escritura de promessa de venda em nome do espólio ainda que todos os herdeiros aceitem comparecer ao ato e anuir. Da mesma forma, nenhum deles pode alienar a qualquer título o ativo pertencente ao acervo. A vedação do art. 1.793, §3º, do Código Civil determina a ineficácia dessa disposição.

A dúvida consiste em saber se um herdeiro (e não o espólio) poderia assinar uma escritura pública de promessa de compra e venda sob condição. O notário estaria impedido de lavrá-la?

Antes de responder, um parêntese: “condição” é a cláusula que deriva da vontade das partes e vincula o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto, o conhecido “se e quando”.[1] Se for suspensiva, enquanto esta não se verificar, não se terá adquirido o direito a que o negócio visa. Se for apenas resolutiva, o negócio produz efeitos até que sobrevenha (se sobrevier) a condição, quando se extingue, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe (um exemplo é a transmissão da propriedade fiduciária).

Pois bem. Em tal caso, a subordinação seria dupla: (i) suspensiva, pois a disposição só produziria efeitos se e quando sobreviesse a partilha em favor do promitente vendedor; e (ii) resolutiva, pois o contrato se resolveria na hipótese de a divisão favorecer outra pessoa.

No exercício da qualificação notarial, o tabelião deve se recusar a lavrar atos que configurem fraude à lei, ou que deixem de seguir certos requisitos específicos.
Então volto à pergunta: a disposição, pelo herdeiro, de um imóvel que ainda não é seu (e talvez nunca venha a sê-lo), sujeita a condições suspensiva e resolutiva, viola o art. 1.793, §3º, do Código Civil?

A resposta é claramente negativa. Se o próprio contrato traz condição suspensiva, a disposição é ineficaz, nos exatos termos legais. O negócio jurídico possui três planos: existência, validade e eficácia, e o dispositivo em análise só disse respeito a um deles: o plano da eficácia. A promessa, como ato de disposição, existe e é válida, apesar de ineficaz. Se o negócio jurídico é válido, não se pode cogitar de ilegalidade.

Disso decorre uma consequência importante: a disposição, mesmo sendo ineficaz, confere ao promitente comprador o direito de adotar todas as providências destinadas a conservá-la (CC, art. 130).  Isto significa que o eventual adquirente pode, por exemplo, ingressar nos autos do inventário para defender o direito do herdeiro ao imóvel (frente a outros indivíduos ou credores), ou para ajuizar uma medida competente a fim de preservar o próprio bem, quando necessário.

O art. 129 do Código Civil traz regra inspirada na boa-fé objetiva, que reputa verificada, “quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer”. É bom que se diga, o art. 1.793, §3º, excepciona em parte o art. 129: se o alienante deixa de dar andamento ao inventário para evitar a partilha, ainda assim a disposição não produzirá efeitos, restando ao adquirente tomar as providências para obtê-la (diretamente, se possível, ou mediante ação cominatória, quando depender de ato do vendedor).

Como se vê, esse tipo de contrato tem risco, sendo de bom tom que o notário exija do adquirente uma declaração expressa de sua ciência. Afinal, pode ser que o outorgante nunca se torne apto a assinar a escritura definitiva, ou, talvez antes ocorra algum fato que detone a resolução. E não nos iludamos: adquirir direitos hereditários traz riscos semelhantes. Afinal, quem garante que não aparecerá um filho não declarado, ou um credor que venha a tomar os bens do espólio? Portanto, insegurança jurídica não pode servir de argumento contra a lavratura do ato.

Aliás, não só a Constituição garante o espaço de liberdade privada em se tratando de direitos patrimoniais (art. 5º, II), como o próprio Código Civil permite que as partes sigam além, e façam da promessa um contrato aleatório (arts. 458 a 461). Para isso, basta que um dos contratantes assuma sozinho o risco de a condição suspensiva não se implementar. Nem é preciso imaginação: nada impede, por exemplo, que um investidor-comprador contrate com o vendedor a alienação por 60% do valor de mercado, aceitando perder tudo ou parte relevante se a partilha não acontecer; ou que seja o alienante a assumir o risco, obrigando-se a entregar outro imóvel de maior valor, que deixou em garantia, na hipótese de não cumprir sua obrigação. Havendo paridade e boa-fé, por que não?

Em resumo, são quatro distintas hipóteses:
(i) sem autorização judicial, qualquer herdeiro, individualmente, pode ceder seus direitos hereditários, sem referir-se a um dos itens do monte (CC, art. 1.793, caput);
(ii) também sem alvará, todos os sucessores, em conjunto, podem assinar a cessão de direitos hereditários, ainda que ela se refira a um dos bens do monte (art. 1.793, §2º), observado o direito de preferência (art. 1.794);
(iii) somente com autorização judicial o espólio pode dispor de um bem (art. 1.793, §3º); e
(iv) qualquer herdeiro pode, sob condições suspensiva (CC, art. 125) e resolutiva (art. 127), sem necessidade de alvará, prometer vender o imóvel, se e quando vier a tê-lo, isto é, o ato de disposição somente produzirá efeitos se a condição suspensiva se implementar, não sendo possível, antes disso, a celebração da escritura definitiva.

O assunto, claro, é polêmico. Se, por um lado, é prudente provocar a Corregedoria local, se não houver prévia manifestação sobre o tema; por outro, não se pode criar uma proibição inexistente com base numa leitura do art. 1.793, §3º, do Código Civil, em desacordo com sua real e correta finalidade: evitar a disposição atual e incondicionada do que ainda não foi partilhado.

Afinal, esse entendimento, desnecessariamente, inibe a lavratura de muitas escrituras, com prejuízo à liberdade de contratar. A tendência de toda polêmica é um dia se esvair, perder-se no passado, e tornar-se algo tão natural a ponto de nos surpreender que uma vez possa ter gerado discussão. Quem sabe não estamos diante de mais uma?
 
[1] Ao contrário do que pode parecer, não estamos diante de um bem futuro. Um apartamento não é safra que ainda não foi plantada. O imóvel existe, é presente. Futuro – e eventual – é o direito de propriedade. Em outras palavras, o outorgante está se comprometendo a transmitir o domínio ao comprador, se e quando ele mesmo o conseguir, via partilha

 


[1] Ao contrário do que pode parecer, não estamos diante de um bem futuro. Um apartamento não é safra que ainda não foi plantada. O imóvel existe, é presente. Futuro – e eventual – é o direito de propriedade. Em outras palavras, o outorgante está se comprometendo a transmitir o domínio ao comprador, se e quando ele mesmo o conseguir, via partilha.