(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca – parte 36)
755. O tema da perempção da hipoteca –de que vamos agora tratar, com recomendável brevidade, embora– suscita algumas questões interessantes relativas ao direito registral, das quais três parecem avultar:
(i) a do motivo de ser da perempção hipotecária, que, se não simpliciter, mas, em principal medida, concerne à conveniência da publicidade registral;
(ii) a do aparente confronto dessa perempção com a legitimação registral;
(iii) a da exigência –ou não– da instância ou rogação registrária para o cancelamento do registro de hipoteca perempta.
756. Entende-se por perempção da hipoteca a extinção ou perecimento da hipoteca pelo decurso do prazo máximo da garantia.
O vernáculo «perempção» deriva do substantivo latino peremptio, peremptionis, que tem a acepção própria de “morte violenta”, “assassínio” (Torrinha, Santos Saraiva), que se indica resultar do verbo pereo (infinitivo perire: desaparecer, perecer, morrer).
A exemplo do que ocorre com os institutos da decadência, da prescrição e da preclusão, também a ideia de perempção está ligada a de tempo, e, no direito romano, correspondia não à mors litis (morte da lide), mas, em muitas hipóteses, à mors iuris (morte do direito) pelo decurso de dado prazo: a perempção, com efeito, é, por primeiro, uma categoria ligada ao processo, não só em Roma, senão que, assim se verá adiante, por igual entre nós. Daí que se justifique, para a boa compreensão do instituto, uma visita, ainda que rápida e superficial, a sua importante participação no campo do processo, sobretudo o civil –a que se remeterão as linhas que se seguem, embora não se deva desconhecer a perempção no processo penal (cf., ad exemplum, o art. 60 do Código brasileiro de processo penal, que versa a perempção da demanda em que somente se proceda por meio de queixa).
Durante o período em que, no direito romano, o impulso processual era incumbência exclusiva das partes, deu-se, em uma das muitas leges iuliæ, a previsão do limite de 18 meses para a duração de um processo que se fundasse no direito civil; também as ações escoradas no direito pretoriano de Roma tinham prazo certo, qual o da duração da potestade do pretor (cf., brevitatis causa, Lopes da Costa, com forte apoio doutrinário). E se nesses prazos não terminavam, as demandas se tornavam peremptas, isto é, extintas, e, com elas, morria o direito (mors iuris).
Adiante, na fase pós-clássica do direito romano, impondo-se ao juiz o impulso na tramitação processual, já não se cogitou da perempção porque o prazo para o fim das demandas era prescrito em vista da prolação das sentenças: ou seja, um prazo para julgar-se e não para a tramitação do processo. Voltou-se, porém, mais à frente, à previsão da peremptio instantiæ –ou seja, à ideia de que “o prazo era fixado contra a morosidade da parte” (Lopes da Costa)–, mas agora com um abrandamento em relação à regulativa anterior: qual seja, o da admissibilidade de prorrogação processual (ou de restituição de prazo), o que se viabilizava, num primeiro momento, por meio de decreto imperial ou papal, e, depois, por mero despacho do juiz. A isto se designou insuflatio spiritus vitæ (ao modo, pois, não de uma ressuscitação do processo, mas da possibilidade de uma nova instância – cf., a propósito, as importantes distinções feitas por João Mendes Júnior e João Bonumá).
Até aqui, assim se vê, a perempção é somente um instituto processual romano. Não estranha, pois, que venhamos a encontrar os vestígios em vários dos corpos de regras de processo que vigoraram e ainda vigem entre nós.
Tanto as mortes litis et iuris (como efeito inexorável do decurso de um determinado prazo processual), quanto a insuflatio spiritus vitæ (renovação da instância) previram-se nas Ordenações filipinas: aquela, a perempção (stricto sensu), de maneira muito restrita à hipótese excepcional de que, transcorrido o prazo de três meses de uma demanda promovida, sem reiteração, junto às Almotaçarias (vidē ao fim do parágrafo), já não pudesse “jamais seguir a dita causa” -Livro III, 68-62). A outra, a absolutio cum insuflatione, como instituto de todo comum: nela, decorrido o prazo de seis meses de um dado processo, não se podia “falar no feito”, até que a parte fosse “novamente citada” (Livro I, 84-28). Assinale-se que não se tratava aí, propriamente, de uma peremptio instantiæ, mas só de uma sua absolução, permitindo-se renovar-se.[Almotaçaria é a denominação do cargo de almotacés ou do tribunal que um almotacés presida; é o servidor –ao tempo medieval e moderno– que tem o dever de fiscalizar a exatidão dos pesos e medidas, a taxação de alguns preços e a distribuição de gêneros destinados ao consumo público; em algum tempo, coube-lhe também a função de polícia nas cidades, incluindo a vigilância da limpeza pública –cf. De Plácido e Silva, António Manuel Hespanha].
O Decreto brasileiro n. 3.084/1898 (de 5-11), em seu art. 68, fez referência à “perempção da instância e da ação”; topamos, adiante, com a ideia não só de suspensão da instância pelo transcurso de dados prazos (cf. a Consolidação das leis do processo civil do Conselheiro Ribas, § 1º do art. 253; os Códigos de processo civil do Espírito Santo, art. 52; de Minas Gerais, art. 135; de Pernambuco, art. 140; do Rio Grande do Sul, art. 309; os Códigos judiciários do Rio de Janeiro, art. 1.135, e de Santa Catarina, art. 591), mas também com a de interrupção da instância: no Código de processo do Distrito Federal (art. 102: “pelo abandono, ou silêncio, das partes, deixando o processo parado em cartório por mais de seis meses”) e no Código de processo civil de São Paulo (Lei paulista n. 2.421, de 14-1-1930), em que se lia no art. 222: “Interrompe-se a instância (…) quando não se tenha falado no feito, parado em cartório, pelo lapso de um ano” (admitia-se, porém, a renovação da instância, por meio de nova citação). Trata-se de vestígios da peremptio instantiæ romana, mas não propriamente de perempção, pois que a instância não se extingue quando se suspende ou se interrompe.
O Código de processo civil brasileiro de 1939 previu em seu art. 201 exatamente a absolvição da instância, corrigindo o equívoco terminológico, um absolução que não impedia renovar-se a instância, salvo na hipótese indicada no art. 204 (em que, aí sim, dava-se a peremptio instantiæ; viu-o muito bem José Manoel de Arruda Alvim, no antigo Curso de direito processual civil, II-148), dispositivo em que se lia:
“Se o autor der causa a três (3) absolvições, por qualquer dos motivos previstos no art. 201, ficará perempto o seu direito de demandar o réu sobre o mesmo objeto.
Parágrafo único. Verificada a hipótese de perempção, só em defesa poderá ser oposto o direito do titular.”
Têm-se aí, pois, duas categorias processuais: a da absolutio instantiæ como “perempção” suscetível de insuflatio (renovação), e, para a hipótese de três absolutiones instantiæ, a verdadeira perempção (que a lei refere como perempção do direito de demandar), i.e., uma peremptio sem possível ressuscitação ou renovação da instância.
O Código brasileiro de processo civil de 1973, em que pese a mais não se referir nominalmente à absolvição de instância, preferindo o termo “extinção do processo”, manteve, no entanto, ainda que com menor abrangência, o instituto da perempção. Lendo-se no inciso III de seu art. 267 que se extinguirá o processo, sem resolução de mérito, “quando, por não promover os atos e diligências que Ihe competir, o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta) dias”, dispõe o parágrafo único do art. 268:
“Se o autor der causa, por três vezes, à extinção do processo pelo fundamento previsto no nº III do artigo anterior, não poderá intentar nova ação contra o réu com o mesmo objeto, ficando-lhe ressalvada, entretanto, a possibilidade de alegar em defesa o seu direito.”
Ao passo em que, pois, no Código processual civil de 1939, dar causa o autor a três absolvições de instância por não importa qual dos motivos elencados a tanto levaria à perempção sem a insuflatio, já no Código de processo civil brasileiro de 1973 a tríplice extinção do processo sem solução de mérito apenas acarretaria a perempção definitiva (ou seja, sem possível renovação) na hipótese de abandono da causa, pelo autor, por mais de 30 dias.
Nosso atual Código de processo civil reitera a orientação mais restrita adotada pelo Código de 1973, moldando a peremptio sine insuflatione à situação de o autor “dar causa, por 3 (três) vezes, a sentença fundada em abandono da causa”, hipótese em que “não poderá propor nova ação contra o réu com o mesmo objeto, ficando-lhe ressalvada, entretanto, a possibilidade de alegar em defesa o seu direito” (§ 3º do art. 486).