Na caixa, há um gato. Ao lado dele, uma substância radioativa que pode (ou não) matá-lo. A caixa é à prova de som, está lacrada e não pode ser mexida. Não há como saber o que se passa ali dentro sem abri-la. Para nós, mortais, há somente duas possibilidades: o gato está vivo ou o felino está morto. Questão de bom senso. Lógica clássica.
 
Mas, para o austríaco Erwin Schrödinger, Nobel de Física em 1933, enquanto o recipiente está fechado, dá-se o estado de superposição: o bichano está vivo e morto! Sim. Ao mesmo tempo. Nem tente entender. Acredite na ciência. Gente bem mais entendida que nós, como Albert Einstein, aprovou esse experimento, conhecido como “O Gato de Schrödinger”, que trouxe um dos fundamentos mais importantes da incompreensível e revolucionária mecânica quântica.
 
Pausa para o Direito. Como se sabe, hoje o procedimento extrajudicial do reconhecimento de usucapião é regulado pelo art. 216-A da Lei 6.015/73, que por sua vez foi alvo do Provimento 65/2017, editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece “diretrizes” dirigidas aos serviços notariais e de registro de imóveis.
 
O Provimento, cuja minuta passou por demorada consulta pública, tem o mérito inegável de ajudar, sobremaneira, a tornar o procedimento um pouco mais homogêneo em todo o país. Se você acha que a situação varia muito em cada serventia, certamente a situação estaria bem pior sem essa norma.
 
O §1º do art. 13 traz um rol exemplificativo dos títulos que podem fundamentar o pedido, dentre eles o compromisso ou recibo de compra e venda, a cessão de direitos e a promessa de cessão.
 
Na sequência, o §2º dispõe que “em qualquer dos casos”, isto é, apresentado qualquer dos títulos acima, “deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários”. Ao final, o dispositivo impõe ao registrador o dever de alertar o requerente e as testemunhas de que “a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei”.[1]          
 
Leia-se: o requerente não pode usar o procedimento para chasquear os sistemas notarial (art. 108 do Código Civil), registral (em especial, o princípio da continuidade) e fiscal (recolhimento de ITBI ou ITIV, conforme o município).
 
A regra está correta, e faz todo o sentido. Afinal, há situações em que o promitente comprador ou cessionário simula, e finge preencher as condições da usucapião, visando a regularizar a propriedade de modo menos custoso. O oficial, como responsável tributário, tem o dever de fiscalizar e coibir tal prática.
 
Entretanto, a vacina transformou-se em veneno. Multiplicam-se as situações de cartórios que examinam a pretensão, diagnosticam ilegalidade e medicam a esfera judicial da adjudicação compulsória. E… Voilà! A física quântica esbulhou o Direito.
 
Ora, se o examinador, depois de analisar os documentos, concluir que o pedido não se encaixa em nenhuma das modalidades de usucapião[2], deve indeferi-lo. Porém, se as premissas estiverem preenchidas, o art. 13, §2º, do Provimento não pode ser uma trava ao registro.
 
Insisto nesta minúcia: Direito não é mecânica quântica. O gato não pode, simultaneamente, estar morto e vivo. Igualmente, ninguém pode, com os mesmos fatos, usucapir e não usucapir. Não é juridicamente possível que a prescrição aquisitiva, consumada antes do início do procedimento cartorial, tenha e não tenha ocorrido.
 
Lembre-se, o registro de tal meio de aquisição da propriedade é meramente declaratório; é uma admissão do que aconteceu em passado breve ou distante. Simples assim. Não existe uma terceira via. Se o pedido preencheu os requisitos legais; se a legislação foi atendida, a hipótese de fraude à lei seria uma contradictio in terminis. Então, se os pressupostos estão ausentes, que se negue a solicitação. Se, porém, estão presentes, o registrador tem que reconhecê-la, sem exigir recolhimento de imposto ou escritura definitiva. Não por mera coincidência, o art. 24 do Provimento estatui, categoricamente, que o oficial “não exigirá, para o ato de registro da usucapião, o pagamento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis“. O sistema é coerente.
 
Aliás, de acordo com o próprio caput do art. 13, a apresentação do contrato preliminar somente é obrigatória em duas situações: se o requerente quer a dispensa da notificação do proprietário; ou em caso de usucapião ordinário, em que o justo título é um dos elementos. Além disso, a promessa de compra e venda vem sendo reiteradamente reconhecida pela jurisprudência como justo título[3].
 
Por isso é que o Conselho da Magistratura do TJ/RJ acertou ao decidir que se “a parte preenche os requisitos à aquisição da propriedade por usucapião, … é-lhe facultado promover assim a demanda… sem que, com base apenas nessa lícita eleição, se cogite de burla fiscal”.[4]      
 
Embora tenha acertado no resultado, discordo do acórdão na parte em que menciona “eleição” do caminho. Pois, se as condições para o acolhimento do pedido foram todas atendidas, o requerente já é, de pleno direito, proprietário, faltando apenas a declaração no registro. Inexiste, assim, interesse de agir para a adjudicação compulsória, pois não posso exigir a celebração do contrato de transferência de uma propriedade que já é minha, pela prescrição aquisitiva. Não é possível, neste caso, postular em juízo e obter a escritura[5]. Caso de extinção do processo sem resolução de mérito. Existe, para usar o texto do Provimento, “óbice  à correta escrituração” desse negócio jurídico.
 
Logo, não há dimensão quântica no Direito. Se os requisitos não foram atendidos, o oficial há de recusar o reconhecimento da usucapião, só restando, talvez, a estrada da adjudicação compulsória; e se as condições estão presentes, não há real interesse jurídico na celebração forçada de escritura definitiva para transferir o imóvel, isto é, existe “óbice à correta escrituração”, o que deve ser declarado pelo requerente e testemunhas em atendimento ao art. 13, §2º, do Provimento 65/17 do CNJ. Coerente, lícito e eficaz. Por que não?

 


[1] A atual redação do parágrafo 2º do art. 13 já constava da minuta original do Provimento, então numerado como §2º do art. 6º, e foi mantido intacto.
 
[2] Para uma visão panorâmica das modalidades: ABELHA, André. O labirinto e a origem subconsciente do usucapião extrajudicial: a nova lei 13.465/17 (Parte III). Disponível em https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI263849,81042-O+labirinto+e+a+origem+subconsciente+do+usucapiao+extrajudicial+a. Acesso em 13.set.2019.
 
[3] Confira-se, por todos, o seguinte acórdão: “RECURSO ESPECIAL. IMÓVEL OBJETO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. INSTRUMENTO QUE ATENDE AO REQUISITO DE JUSTO TÍTULO… O instrumento de promessa de compra e venda insere-se na categoria de justo título apto a ensejar a declaração de usucapião ordinária… Se a jurisprudência tem conferido ao promitente comprador o direito à adjudicação compulsória do imóvel independentemente de registro (Súmula n. 239) e, quando registrado, o compromisso de compra e venda foi erigido à seleta categoria de direito real pelo Código Civil de 2002 (art. 1.225, inciso VII), nada mais lógico do que considerá-lo também como “justo título” apto a ensejar a aquisição da propriedade…” (REsp 941.464/SC, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª. TURMA, j. em 24/04/2012).
[4] TJRJ, Conselho da Magistratura, Apelação Cível 0101669-64.2018.8.19.0001. Rel. Des. Elisabete Filizzola. Acórdão unânime. Julgado em 08/11/2018.
 
[5] Ou, em caso de recusa do promitente-vendedor em assinar a escritura, a substituição, pela sentença, da sua manifestação de vontade.