(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a locação – parte 3)
Des. Ricardo Dip
770. Tratemos agora do arrendamento, entre cujas variadas acepções –“vocablo de significación amplísima”, assim o observou Frederico Puig Peña–, uma delas havendo que equivale, simpliciter, ao conceito de locação, e outras, no entanto, que sugerem particular atenção quanto ao tema de sua discutida registrabilidade.
O vocábulo arrendamento parece provir do latim reditus, us –com o sentido de renda, rendimento, lucro–, e o verbo arrendar traz a acepção de “guardar com rendas” (Antônio Geraldo da Cunha).
Há no direito romano uma primeira equivalência entre arrendamento e, em todo seu gênero, a locatio conductio (com suas três espécies, pois): esses dois termos são tratados qual sinônimos no dicionário de Gutiérrez-Alviz, e Álvaro D’Ors também manifesta essa equivalência com o uso de uma disjuntiva: “la locación-conducción (locatio conductio) o arrendamiento”, observando, entretanto, a seguir, uma restrição, dizendo que “en su esquema más general, [o arrendamento] es un contracto por el que una persona llamada locator (arrendador) «coloca» temporalmente algo em manos de otra llamada conductor (arrendatario), que «lleva» aquela cosa”. Vale por dizer, que já aí o arrendamento não incluiria as locationes operarum et operis, limitando-se ao campo da locatio rerum –a locação de coisas.
Ter-se-ia desta referência orsiana uma primeira impressão no sentido de que, por llevar la cosa, o arrendamento dissesse respeito apenas a coisas móveis; todavia, D’Ors acena ao fato de que, no direito romano, também “el colono «lleva» la tierra que trabaja”, além de um possível precedente remoto do arrendamento serem as locationes censoriæ, que tinham por objeto imóveis rurais.
O fato é que o conceito de arrendamento repercute muito as variações legislativas locais, e é frequente o discrimen entre, de um lado, o arrendamento (ou locação) de serviços e o de obras, e, de outro lado, o arrendamento de coisas, com suas subdivisões: coisas móveis, coisas imóveis; imóveis urbanos e prédios rurais (no direito alemão: Miethe e Bacht, respectivamente, aquele incluindo, no entanto, as coisas móveis); arrendamento de uso (bail à loyer, no direito suíço) e de uso e desfrute (bail à ferme).
Também entre nós pode falar-se em diversos modos de arrendamento:
(i) arrendamentos de imóveis urbanos –o que se diz inquilinato– e de imóveis rurais, o colonato (expressão de utilização menos comum; ambos esses vocábulos provêm do latim: inquilinus era o arrendatário de prédios urbanos, ao passo em que colonus, o arrendatário de imóveis rurais; observe-se que nosso atual Código civil, no inc. V de seu art. 1.747, refere-se ao “arrendamento de bens de raiz”);
(ii) arrendamento de coisas móveis (p.ex., de animais, plantas de viveiro, água, pomares),
(iii) arrendamento mercantil– o leasing, cujo objeto tanto pode ser móvel, quanto imóvel;
(iv) o Decreto brasileiro 24.150/1934 (de 20-4), versando a locação de imóveis destinados a fins comerciais ou industriais, designa-a expressamente de arrendamento: “Não havendo acordo entre os interessados, a renovação dos contratos de arrendamento de prédio, urbano ou rústico, destinado, pelo locatário, a uso comercial ou industrial, será sempre feita na conformidade do disposto nesta lei” (art. 1º).
771. A Lei brasileira 8.245, de 1991, que é a normativa referente aos imóveis urbanos, prevê, no parágrafo único de seu art. 1º, que continuam regulados pelo Código Civil e pelas leis especiais”, (i) as locações de prédios de propriedade da União, dos estados e dos municípios, bem como de suas autarquias e fundações públicas; (ii) as locações de vagas autônomas de garagem ou de espaços para estacionamento de veículos; (iii) as locações de espaços destinados à publicidade; (iv) as locações em apart-hotéis, hotéis-residência ou equiparados, assim considerados aqueles que prestam serviços regulares a seus usuários e como tais sejam autorizados a funcionar; (v) o arrendamento mercantil, em qualquer de suas modalidades.
De par com isto, a Lei nacional 4.504/1964 (de 30-11) trata do arrendamento rural, prevendo-se em seu art. 92: “A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agro-industrial e extrativa, nos termos desta Lei”, contrato que, sempre temporário, não exige forma especial (lê-se na primeira parte do art. 11 de um regulamento dessa lei, o Decreto 59.566, de 14-11-1966, que “Os contratos de arrendamento e de parceria poderão ser escritos ou verbais”) e permite que o preço seja estabelecido segundo “partilha dos frutos, produtos ou lucros havidos, com expressa menção dos modos, formas e épocas” (inc. VIII do art. 12 do Dec. 59.566).
A normativa brasileira referente ao arrendamento rural prevê, havendo alienação do imóvel arrendado, que “o arrendatário terá preferência para adquiri-lo em igualdade de condições, devendo o proprietário dar-lhe conhecimento da venda, a fim de que possa exercitar o direito de perempção dentro de trinta dias, a contar da notificação judicial ou comprovadamente efetuada, mediante recibo” (§ 3º do art. 92 da Lei 4.504), tal que, à míngua dessa notificação oportuna, possa o arrendatário, “depositando o preço, haver para si o imóvel arrendado”, desde que o requeira dentro no prazo de seis meses, “a contar da transcrição do ato de alienação no Registro de Imóveis” (§ 4º do art. 92 da Lei 4.504).
Outro direito de preferência há em benefício do arrendatário, qual o direito de renovação do arrendamento rural, desde que, em igualdade de condições com terceiros, o proprietário o tenha notificado, até 6 (seis) meses antes do vencimento do contrato, acerca das propostas existentes (ver também art. 22 do Dec. 59.566).
Ambos esses direitos de preferência em favor do arrendatário de imóvel rural não demandam –de lege lata com caráter expresso– o registro do título de locação, embora isto pareça convir, a bem da publicidade ampla da existência do ajuste de arrendamento. Diversamente, o Decreto 24.150, que trata da locação de imóveis para fins comerciais ou industriais, prevê, quanto ao contrato prorrogado, que, nele havendo a cláusula de sua vigência em hipótese de alienação do prédio, seja o arrendamento registrado no ofício de imóveis (§ 2º do art. 19), sem prejuízo de sua inscrição em títulos e documentos (caput do art. 19; cf. também inc. VI do art. 127 da Lei n. 6.015, de 1973).
Assinalável, a propósito, é que a previsão de registro do arrendamento do Decreto 24.150 guarda correspondência com o item 3º do inciso I do art. 167 da Lei n. 6.015/1973 (que versa o registro stricto sensu “dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada”), e o que deve realçar-se é o fato de o preceito do Decreto 24.150 abranger não importa qual tipo de imóvel, é dizer, se urbano ou rural, de conformidade com o que enuncia seu art. 1º –que se reporta expressamente a contratos de arrendamento de prédio, urbano ou rústico.
Assim, parece que mais amplamente (ou seja, não só de modo restrito ao quadro das locações de prédios para uso comercial ou industrial objeto do Decreto 24.150) devam entender-se incluídas no âmbito da previsão do item 3º do inciso I do art. 167 da Lei 6.015 todas as locações de imóveis, sejam urbanos, sejam rurais, dando-se razão, assim, à doutrina de Campos Batalha, para quem as locações se sujeitam a registro, para que sejam oponíveis a terceiros, ainda que seus contratos “não se encontrem albergados pelo Decreto n. 24.150/1934”.