O notário e a Moralidade Pública (parte 17)
Examinadas –e isto, com a brevidade que se mostra conveniente a estas pequenas notas–, mas dizia: examinadas as virtudes de veneração (a saber, a religião, a piedade e a observância), e depois de nelas aferir uma hierarquia de bens que permite graduar os hábitos de veneração desde o ínfimo (a observância) até o mais graduado (a religião), tratemos agora, ainda uma vez de maneira concisa, das virtudes próprias da honestidade, quais sejam: a gratidão, a vindicta e a veracidade.
Deve entender-se, neste passo, a ideia de «honestidade» como correspondente a um estado de honra –status honoris, tal o apontou S.Isidoro de Sevilha, nas Etimologias:
“Honestus, que não possui torpeza alguma. Pois, que é a honestidade senão a honra imperecedoura, algo assim como se se dissesse «possessão constante da honra» (honoris status)?”
Embora a honestidade seja, em muitos de seus aspectos, mais próxima da virtude da temperança do que do hábito da justiça, o tributo de honra que se confere a determinadas pessoas ou atos –mediante a gratidão, a vindicta e a veracidade– é mais acercado da virtude da justiça: considere-se, a propósito, que, p.ex., distinguindo a retribuição exigida de conformidade com os princípios da justiça comutativa –versando-se, pois, um débito legal (debitum legale)–, S.Tomás refere-se, na S.th. (q. 106-1 da IIa.-IIæ.), ao débito de honestidade (debitum honestatis), que se satisfaz de modo voluntário (sponte facit) e não de maneira compulsória; eis aí o que é a gratidão (cf. também o.c., q. 106-6).
Com efeito, a satisfação de um débito –ou recompensa por um benefício– pode participar de três diversas virtudes:
(i) da justiça: quando a dívida tem caráter legal, e a recompensa mede-se pela quantidade do recebido –secundum quantitatem dati;
(ii) da amizade: quando o débito é moral, e a recompensa mede-se pela causa da amizade: se essa causa é a utilidade, conta-se o útil como critério de mensuração do benefício recebido; se a causa é a virtude, sua medida é a vontade e o afeto do amigo benfeitor, porque nestes, vontade e afeto, consiste a virtude da amizade;
(iii) da gratidão: quando se “tem por motivo um benefício recebido graciosamente, o que é obra do afeto”, e a recompensa, então, deve antes medir-se pelo afeto do benfeitor do que pelo efeito do benefício.
Que ela seja, a gratidão, uma virtude especial anexa ao hábito da justiça, isto já o ensinara Cícero, virtude aquela com que a reta razão indica devamos recompensar os benefícios que graciosamente recebemos, desde os mais superiores –como são os benefícios concedidos por Deus (a vida, a saúde, os bens interiores, os bens exteriores)–, passando pelos benefícios que nos concedem nossos pais e amigos, chegando aos benefícios que nos outorgam as pessoas constituídas em dignidade: e, neste sentido, a gratidão confunde-se, em parte, com a religião, a piedade e a observância.
Mas a gratidão vai além, porque temos de ser gratos por todos os benefícios e a todos e cada um de nossos benfeitores: S.Paulo, numa de suas epístolas, ordena que devamos em todas as coisas dar graças –in omnibus gratias agite (I Tes. 5,18)–, de maneira que se atendam aos débitos morais e não apenas aos legais.
Daí que se caracterize de modo notório ser a gratidão uma parte potencial ou hábito anexo à virtude da justiça, porque recompensamos ou retribuimos, por meio da gratidão, dívidas que não são legais, mas, sim e diversamente, débitos morais.
Melhor se verá, talvez, a relevância da virtude da gratidão quando, assim o faremos a seguir, tratarmos de seu vício oposto: a ingratidão.