Em meio à pandemia do novo Coronavírus, há expectativa, por parte do mercado, de que a
Assembleia Legislativa e o Governador do Estado de São Paulo aprovem, em breve, o Projeto de Lei n. 250/20 (o “Projeto”). Este Projeto se propõe a modificar a Lei SP 10.705/2000, que trata do ITCMD – imposto incidente sobre doações e heranças (a “Lei do ITCMD”), para o fim de majorar a alíquota do imposto, alterar critérios de avaliação de certos bens e estabelecer outras providências.
 
O presente informe analisa os principais temas do Projeto e explica as consequências práticas prováveis que o fisco almeja com as alterações. Em razão de o Projeto ainda estar em discussão e de ser possível que seu texto sofra alterações, não faremos menções específicas a artigos.
 
1) ALTERAÇÃO DE ALÍQUOTAS E PATAMARES DE NÃO INCIDÊNCIA
 
Segundo o Projeto, as alíquotas na doação e no inventário deixarão de ser fixas (no patamar atual de 4%) e passarão a ser progressivas, indo de 4% a 8%, a depender do valor total dos bens que estiverem sendo doados ou inventariados, conforme a seguir:

Juntamente com a alteração das alíquotas, o Projeto resolve um problema existente com uma regra de isenção. Até o momento, na hipótese de uma pessoa doar R$69.025,00 a outra, a operação é isenta (não incide imposto algum). Contudo, se a pessoa doar a quantia de R$69.025,01 (ou seja, um só centavo a mais), o imposto incide sobre a totalidade do valor (R$69.025,01), não apenas sobre a diferença (R$0,01). A previsão atual causa espécie nas pessoas e atrapalha a legítima disposição de bens pelos interessados. O Projeto simplifica o assunto, estabelecendo os patamares acima tabelados (assim, se for feita uma doação de R$69.025,01, o imposto somente incidirá sobre R$0,01).
 
2) PARTICIPAÇÕES SOCIETÁRIAS
 
Umas das mais impactantes alterações do Projeto é a forma de avaliação do valor de participações societárias.
 
Segundo as normas por ora ainda em vigor, as ações e quotas de sociedade não negociadas em bolsa (seja por nunca terem sido negociadas, seja por não terem sido nos 180 dias antecedentes à doação ou falecimento) são tributadas pelo valor patrimonial (patrimônio líquido) social. Ocorre que, atualmente, não há lei que expresse se este valor patrimonial deva ser meramente contábil ou real.
 
Conforme vínhamos explanando, a Fazenda há muito tempo pretendia que as sociedades tivessem seu patrimônio avaliado de acordo com o real valor de mercado, não se contentando com o valor nominal ou contábil (Consulta SEFAZ SP 16707/2017). Holdings e arranjos societários têm sido preocupação crescente da fiscalização. A adoção do valor real poderia, em tese, majorar significativamente o valor patrimonial das sociedades.
 
A jurisprudência do TJSP, por ora, tem entendimento dominante no sentido que o valor patrimonial da sociedade, para fins de recolhimento de ITCMD, pode ser o meramente contábil, em razão da até agora ausência de determinação legal no sentido de que os bens que componham o acervo social devam ser avaliados de acordo com o valor de mercado (TJSP, Agravo Inst. n. 2173893-71.2018.8.26.0000, 6a C., p. 22/04/2020).
 
De acordo com o Projeto, o patrimônio passará a ser aferido “pela reavaliação dos ativos e passivos, incluindo-se a atualização dos ativos ao valor de mercado na data do fato gerador”. Ou seja, se aprovado o Projeto, será necessário perícia ou balanço especial que demonstre o valor de mercado dos ativos e passivo – o suposto valor real dos bens.
 
Consideramos que, em relação a este ponto, a tendência é de alteração do posicionamento jurisprudencial, para se passar a exigir a apuração do valor patrimonial real. Isso deverá ocorrer tanto em virtude da alteração da norma base de análise, como porque a nova regra será consentânea com a forma de avaliação já praticada para outros bens dos inventários e doações, em que o valor adotado pela Fazenda não precisa ser o contábil.
 
A discussão que será aberta, certamente, será referente aos critérios que deverão ser adotados nas reavaliações patrimoniais.
 
Alertamos, ainda, que isto poderá ter repercussões direta na avaliação de holdings, sociedades controladas, sociedades coligadas e fundos exclusivos.
 
3) VGBL
 
Outro ponto controverso do Projeto refere-se à incidência de ITCMD sobre o VGBL (e PGBL). De acordo com a jurisprudência dominante atual, é vedada a exigência do imposto sobre o VGBL, em razão de ausência de previsão legal expressa e em vistas à natureza jurídica do VGBL, que remontaria ao contrato de seguro. O contrato de seguro, segundo a lei civil, não constitui herança (Lei Federal 10.406/2002, art. 794).
 
Ocorre que a Fazenda entende que o VGBL tem sido ofertado no mercado como “investimento”, ou forma de planejamento sucessório, por vezes com a finalidade precípua de frustrar a legislação do ITCMD. Quantias significativas passaram a ser aportadas por pessoas com idade avançada, muitas vindo a serem sucedidas em curto lapso temporal. Isto é, passou a ser comum que pessoas com idade avançada alocassem parte significativa, em investimentos do tipo VGBL, com identificação nominal dos herdeiros.
 
Segundo a Fazenda, isto desvirtua o contrato de seguro, pois o que se pretende não é celebrar um contrato aleatório, no qual, individualmente, a relação de custo-benefício, entre o valor do prêmio pago pelo estipulante e o valor da “indenização pelo sinistro”, é incerta.
 
Consideremos possível, sobretudo no contexto crise financeira dos Estados pós-pandemia, que a jurisprudência venha a alterar seu entendimento sobre o tema.
 
Outro ponto importante do Projeto é que o recolhimento de ITCMD sobre o VGBL/PPGBL seria realizado de ofício, pela própria entidade previdenciária, sem margem para postergação do recolhimento. Isto também poderá gerar discussões quanto a certas composições cabíveis por ocasião do inventário e partilha dos bens do falecido.
 
4) FORMA DE AVALIAÇÃO DE IMÓVEIS
 
Atualmente, o fiscal estadual tem sofrido sérias derrotas no âmbito judicial, no que se refere à forma de avaliação de bens (v.g., TJSP, Rec. 1009212-30.2019.8.26.0562); o judiciário considera ilegal a cobrança de ITCM com base em valores fixados por certos institutos sem previsão em lei Nesse sentido, o Projeto amplia os poderes da Fazenda para avaliação do valor dos imóveis, permitindo que ela contrate entidades ou empresas de avaliação, segundo critérios avaliativos destas. Isto dará maior autonomia ao órgão fiscal e poderá representar aumento da carga tributária, em especial em regiões interioranas conhecidas por terem o valor venal dos imóveis subestimados, bem como em relação ao valor de imóveis rurais.
 
5) DOAÇÃO COM RESERVA DE USUFRUTO
 
Segundo a atual Lei de ITCMD, a doação da nua-propriedade tem a base de cálculo equivalente a
2/3 (dois terços) do valor do bem, ao passo que o usufruto tem a base de 1/3.
Atualmente, quando o proprietário pleno doa a nua propriedade de um bem a terceiro e mantém
o usufruto, é permitido que seja recolhido, de imediato, apenas 2/3 do imposto (referentes à nuapropriedade). O 1/3 restante pode ser recolhido quando da transmissão do usufruto ao terceiro nuproprietário. Esta faculdade, de acordo com o Projeto, deixará de existir.
 
APONTAMENTOS FINAIS
 
A análise acima é sumária. Observe que o Projeto ainda não foi aprovado e poderá ser rejeitado ou alterado, parcial ou totalmente, inclusive em razão da existência de outras proposições legislativas.
 
A alteração da Lei do ITCMD, se ocorrer, não deverá ter efeitos retroativos (v.g, falecimentos já ocorridos), nem vigorará antes do próximo exercício fiscal e do decurso de um prazo mínimo de noventa dias (Constituição Federal, art. 150, III, “b” e “c”).
 
Finalmente, é de extrema relevância assinalar que não consta no Projeto fatores que possam ser considerados como “interpretação autêntica”. A “interpretação autêntica” é a regra prevista em lei que explicita como outra norma deve ser interpretada. Segundo o Código Tributário Nacional (art. 106, I), a lei interpretativa deve ser expressa quanto ao fato de ser “interpretativa”. A ausência do caráter interpretativo legitima a posição pro contribuinte em relação a atual legislação no que se refere à forma de cálculo do valor patrimonial de sociedades e de imóveis, como retro exposto.
 
*Fernando Blasco, 30º Tabelião de São Paulo.