Proposta costurada junto ao Ministério da Economia tenta preencher lacunas da legislação em vigor
 
O Brasil aprovou há 15 anos uma das mais modernas leis de falência do mundo, inspirada na experiência dos Estados Unidos. A recuperação de crédito nas massas falidas se multiplicou por 100, mas mesmo assim o nosso índice representa menos de um quarto dos americanos – intrigando economistas, que passaram esse tempo investigando porque a lei não pegou tão bem.
 
Hoje, será feita uma nova tentativa de atualizar a Lei de Falências, com a inclusão na pauta de votações da Câmara de um projeto relatado pelo deputado Hugo Leal (PSD-RJ) que procura fortalecer a negociação extrajudicial como o principal instrumento de solução para empresas em dificuldades.
 
A nova proposta, desenhada em conjunto pelo parlamentar e a equipe do Ministério da Economia, corrige algumas outras lacunas da lei anterior, como o grande poder do fisco para disputar recursos na massa falida, falta de garantias para investidores que resolvem manter linhas de crédito para recuperar empresas em dificuldades e ausência de harmonização com regras internacionais que se aplicam a multinacionais.
 
A solução extrajudicial já era permitida na lei de 2005. Mas frequentemente era inviabilizada porque as execuções não eram interrompidas enquanto credores e devedores negociavam, atropelando eventuais soluções de consenso. O relatório do deputado Leal suspende o processo por 60 dias para as partes negociarem. Feito um acordo, ele será submetido à homologação do juiz. Outro ponto importante é a redução do quorum para aprovar o plano de recuperação extrajudicial. Antes era de mais de 60% dos créditos de cada espécie. Passa a ser mais de metade.
 
O diagnóstico dos economistas é que uma lei moderna não resolveu sozinha o problema das falências, pois depende do ambiente da economia em que é aplicada. Varas de julgamento congestionadas, viés dos juízes em favor do devedor, contrariando o que diz a lei, e estrutura tributária caótica determinam muito da eficácia da lei.
 
Até 2005, quando entraram em vigor as regras atuais, os credores de empresas em dificuldades no Brasil recuperavam, em média, apenas R$ 0,20 de cada R$ 100 emprestados. Com a Lei de Falências, a recuperação de créditos subiu a um pico de R$ 25,80; mais recentemente caiu para R$ 18,20. “A lei anterior, de concordatas, era muito inspirada na Itália, como a legislação trabalhista, meio fascista”, diz o assessor especial do Ministério da Economia Aloisio Araujo, que contribuiu na lei de 2005 e volta a trabalhar na proposta atual. “Não foi fácil aprovar a lei na época, os bancos tinham muito medo, achavam que poderia sair pior do que uma nova legislação”, completa ele, que é professor da Fundação Getulio Vargas (FGV).
 
Araujo diz que, embora seja preciso atualizar a legislação para aproximar os seus resultados dos padrões internacionais, há muita injustiça na avaliação sobre os avanços da lei atual. O índice de recuperação de créditos, argumenta, deve ser bem maior do que o dito pelas estatísticas, que avalia como incompletas. Isso porque uma das novidades da legislação de 2005 foi tirar os créditos garantidos – a alienação fiduciária representa a maior parte dos empréstimos – da massa falida. Ou seja, o índice de recuperação de créditos do Brasil exclui justamente os créditos com as melhores garantias, cuja recuperação é mais alta.
 
Uma das formas de medir os resultados da lei de 2005 é seu resultado no aumento de crédito na economia. “O Brasil tem um viés enormemente contra os credores, e isso acabou como mercado de crédito”, diz Araujo. “A favela é um substituto do mercado de crédito. Como não tem mercado de crédito, as pessoas vão comprando tijolo a tijolo para construir suas casas, em vez de tomar um financiamento da casa pronta.”
 
Durante anos, houve uma controvérsia se a nova Lei de Falências, que fortaleceu direitos de credores, de fato ajudou a ampliar o crédito. Muitos economistas argumentavam que a expansão de crédito após 2005 foi um fenômeno ocorrido na América Latina como um todo. Araujo fez um estudo em conjunto com o atual secretário do Tesouro Nacional, Bruno Funchal, e o professor de economia da USP Rafael Ferreira que mostra, empiricamente, que a Lei de Falências provocou alta do crédito corporativo de 80%, na sua relação com o PIB. O Brasil, nesse segmento, avançou bem mais do que seus pares.
 
Isso não significa que a lei de 2005 colheu todos os benefícios esperados. Os economistas desconfiavam que um dos problemas era o congestionamento das cortes, que fazem com que os processos sejam mais demorados. Na antiga Lei de Concordata, os processos levavam em média dez anos. Com a modernização, o prazo caiu para quatro anos. Ainda assim, o Brasil está distante dos EUA, onde um processo é resolvido em média em apenas um ano.
 
O difícil é estabelecer, porém, com base nos dados, uma relação entre o congestionamento das cortes e a baixa recuperação de crédito. O economista italiano Jacopo Ponticelli, professor de finanças nos Estados Unidos da Kellogg School of Management, da Northwestern University, chegou muito próximo disso, em pesquisa com o brasileiro Leonardo Alencar, do Banco Central.
 
“As novas regras de direitos do credor [no Brasil] são similares às do Estados Unidos”, afirma a introdução do estudo. “No entanto, a diferença em termos de recuperação de crédito pelos credores permanece alta.” Ponticelli e Alencar identificaram as juridições no Rio Grande do Sul, que são mais congestionadas, e compararam com as menos congestionadas, para medir o impacto desse fator no volume de crédito em cada localidade, no volume de investimento das empresas e no volume produzido.
 
A conclusão – rigorosa o suficiente para estabelecer relação de causa e efeito – é que as cortes que são 28,3% menos congestionadas do que a média apresentam aumento de 5% nos empréstimos garantidos. Os investimentos das empresas são 0,46 ponto percentual maiores e a produção das empresas cresce 2,3%.
 
Economistas, há muito tempo, também atribuem o resultado aquém do esperado a um viés dos juízes em favor dos devedores. Há mais de duas décadas, Araujo, matemático de formação e professor emérito do Instituto de Matemática Aplicada (Impa), tem estudado qual é o melhor equilíbrio entre direitos dos devedores e credores. Especialista em modelos de equilíbrio geral, conjunto de equações que procuram reproduzir de forma idealizada o funcionamento da economia, ele passou a se dedicar ao estudo dos chamados mercados incompletos. Um dos pontos mais intrigantes é quando agentes econômicos, agindo de forma racional, não cumprem a suas promessas de pagar suas dívidas. A legislação pode ajudar a corrigir, pelo menos parcialmente, esse problema. Há 20 anos, ele foi convidado a lidar com o problema de forma prática pelo então presidente do BC Arminio Fraga, que lançou uma agenda para aumentar o volume de crédito no país.
 
“Juízes de países anglo-saxões tendem a ser mais pró-credores, e isso é atribuído à tradição de ‘common law’”, afirma Araujo. “Países emergentes tendem a ser pró-devedores, e nisso o Brasil não é diferente.” Recente linha de pesquisa criou um índice que mede o grau de viés das comarcas em favor dos credores: ele examina com que frequência as decisões contrariam o que está textualmente escrito na lei, em geral com o argumentos em favor de salvar empresas e postos de trabalho.
 
Uma das novidades da lei de 2005 foi a possibilidade de recuperação judicial, inspirado no instrumento americano Chapter 11, com a apresentação de um plano aprovado pelos credores. Mas, em muitos casos, a interferência do juiz dificulta ou atrasa a resolução dos conflitos. Para os economistas, se o processo for resolvido na via extrajudicial, menor o risco de ficar numa prateleira de uma vara congestionada ou cair nas mãos de juízes não especializados ou com viés excessivo pró-devedor.
 
Enquanto economistas faziam as suas pesquisas, os próprios juízes foram se acostumando à ideia de resolução extrajudicial de conflitos, com passos importantes como juizado de pequenas causas e audiências de conciliação nos assuntos de direito de família. A proposta do deputado Leal segue recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para solução extrajudicial nesses casos.
 
Faltava, porém, amadurecimento político. Desde a gestão Michel Temer o governo trabalha na reforma da Lei de Falências. No governo Jair Bolsonaro, foi elaborada nova proposta. Ambas, porém, não previam mecanismos extrajudiciais. A ideia ganhou força com a crise do coronavírus, quando juízes ficaram preocupados com o esperado aumento de falências. Simulação feita pela Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Economia diz que a crise poderá fazer o número de pedidos de recuperação judicial esperado no ano saltar de 1.110 para 1.858 num cenário de choque moderado ou 3.513 num choque adverso.
 
Nessa crise, a Câmara dos Deputados aprovou uma reforma da Lei de Falências que admitia, temporariamente, um maior protagonismo de soluções extrajudiciais. Mas o projeto ficou parado no Senado devido a desacordo sobre detalhes do texto. Agora, está mais forte entre os parlamentares a visão favorável a uma reforma definitiva da Lei de Falências com um maior papel extrajudicial.