Em princípio, a expressão “circunstância” me deu a estranha sensação de me encontrar dentro de um texto fora da ciência do direito da família
“A circunstância de ter duas relações conjugais paralelas e estáveis não é um impedimento para o reconhecimento dos efeitos legais para ambos e, portanto, o reconhecimento da existência de dois núcleos familiares”
Este parágrafo, extraído de decisão judicial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS) de nosso país irmão, o Brasil, me deu a oportunidade de refletir sobre alguns de seus extremos que compartilharei a seguir.
Em princípio, a expressão “circunstância” me deu a estranha sensação de me encontrar dentro de um texto fora da ciência do direito da família.
E isso se deve ao fato de que a localização de uma situação familiar não pode ser reduzida a uma mera circunstância, como uma espécie de fato acidental, alheio à plena vontade de uma pessoa, e a quem a lei dinâmica deve dar uma resposta necessária.
Não acredito na existência de um direito das circunstâncias, não faço distinção desempenho ou necessidade de tratamento.
Se, em um caso específico, uma pessoa tem dois status de família, não se trata de circunstância. O que se observa está muito longe disso, é um fato voluntário, consciente, determinado, que, tanto na nossa legislação, como na brasileira, se encontra expressamente proibido.
É por isso que entendo que não se pode confundir a posição jurídica que uma pessoa ocupa no seio de uma família com uma mera “circunstância”.
Continuando com a análise das expressões citadas, não compreendo como pode coexistir as características de “estável” e “paralelas” num estado de família, e, mais ainda, me resulta totalmente estranha a expressão “paralela” ao referir-se a um estado de família. É uma expressão que desconheço dentro do sistema normativo argentino e que, aparentemente, o que tentaria refletir o julgador é a coexistência de duas uniões conjugais simultâneas.
É aqui que, como nos ensina a jurista argentina Alícia García de Solavagione, é essencial para o exercício da ciência do direito, o uso correto da linguagem, e em particular, de expressões. Portanto, na expressão analisada, eu me pergunto: Como a expressão “paralelo” pode ser usada em um estado familiar ou “circunstância”? Se, por definição, paralelo, refere-se à existência de linhas equidistantes, caracterizado por nunca se tocar, embora aponte na mesma direção.
E sigo perguntando. Como se pode pretender que duas uniões conjugais não se “toquem” entre si? Como pretender regular os efeitos pessoais e patrimoniais de uma sem atentar, enfraquecer ou afetar o universo da outra? Como pretender liquidar um regime patrimonial sem afetar o outro? Como pretender que uma pessoa possua das vidas que pretende-se que não se toquem?.
É por isso que entendo que o que foi defendido, não só supera nem o mínimo controle de constitucionalidade, tampouco o de convencionalidade, mas já no ordenamento infraconstitucional surge a clara contradição.
Entendo que um dos motivos é o excessivo “encargo judicial” concedido pelos sistemas jurídicos contemporâneos, não apenas o do Brasil, mas todos os sistemas do mundo, uma vez que, como toda construção humana, não pode ser reivindicado para resolver todas as perguntas a serem feitas. Da mesma forma que pessoas e sistemas, eles são imperfeitos, mas a diferença é que alguns são imperfeitos em maior extensão do que outros.
E é daí que as principais patologias que sofrem são a contradição e a inconsistência normativa.
Por isso, alguns juízes, munidos de uma excessiva discricionariedade decidem, de maneira escandalosa, afastando-se totalmente dos princípios que informam as instituições jurídicas.
Embora não seja necessário ignorar os novos contextos social, cultural, econômico e político no qual se desenvolve o direito da família é desenvolvido, ou seja, em um quadro pós-industrial, pós-tecnológico, pós-moderna, pós-positivista, que implicaram uma quebra de paradigmas e modelos anteriores, isso não justifica a imprecisão na abordagem das instituições e, portanto, na argumentação das decisões.
Eu entendo que um dos facilitadores na obtenção de decisões judiciais confusas têm sido a precisão inadequada no chamado fenômeno de constitucionalização do direito privado, que tem sido agravado por seu necessário choque com seu fenômeno inverso, denominado neoconstitucionalismo.
Isso se deve ao fato de serem gerados dois movimentos, um de promoção de regras, princípios e valores de direito comum, de códigos civis e comerciais, de ordem infraconstitucional, no sentido da hierarquia constitucional; e outro ao contrário, de diminuição das garantias, modos de interpretação e aplicação da lei, que eram próprios do direito constitucional, e que agora impactam diretamente na análise e nas normas do direito comum, neste caso, o direito privado.
É por isso que atualmente encontramos autores como Perez Luño que afirmam o atual fenômeno do “transbordamento das fontes do direito”, cujo problema não está na quantidade, mas na determinação da supremacia de um sobre o outro.
Este processo de subida e descida constante gera uma fricção inevitável por conta da falta de precisão nas normas e fontes legais de uma sociedade e suas fontes, parecendo que hoje a pirâmide da supremacia constitucional esvaneceu, onde um princípio do direito comum pode basear um julgamento num princípio ou garantia constitucional, ou quando um princípio de uma Convenção se aplica a um princípio dogmático do Estado que o ratificou.
Se o legislador, um ator político, emitiu uma regra contraditória, porque para um mesmo fato, ou necessidade social hipotética, previu duas ou mais soluções, são os juízes, como produtores do direito no caso concreto, aqueles que devem chegar a um solução, mas sempre em aplicação dos princípios gerais.
Sempre com o conhecimento científico e com conhecimento para justificar suas sentenças, e assim evitar julgamentos naturalmente contestáveis, os quais conseguem uma breve publicidade para o seu autor, mas à custa de um adiamento dos direitos daqueles que buscam justiça, que são subjugados sob uma falsa crença, posto que entendem que conseguiram realizar o direito pretendido, mas desconhecendo a fragilidade da concessão deste direito, e, portanto, aquele que hoje conseguiu o seu patrimônio de forma correta, porém com conteúdo ilegítimo, lamentavelmente não possui a mínima e necessária argumentação e justificação legal para poder manter-se no tempo.
E, por isso me pergunto. Como podem existir dois núcleos de família diferentes?
Se o estado de família possui como catarter a universalidade e indivisibilidade, ou seja, não posso ostentar um estado para uns e outro para os demais, quer dizer, ser casado para alguns e solteiro para outros.
Continuo me perguntando. Como se pode fazer uso e gozo pleno de um estado de Família com uma pessoa que possua duas ou mais?
O sistema normativo ocidental, protetor das relações de família, não está pensado, e muito menos estruturado, para suportar duas uniões conjugais simultâneas, não há forma que se possa proteger mais de uma união em termos de efeitos pessoais e patrimoniais. Em seu caso, sempre um dos cônjuges ou conviventes vai estar desprotegido, inclusive desde uma perspectiva sociológica, tanto que a produção da riqueza e organização estatal não pode evolucionar com pessoas as quais se outorgue direitos e não se lhes imponham deveres.
Há uma tendência mundial, entendo por conta das consequências das grandes guerras, a concessão somente de direitos em a previsão de seus deveres correlatos. Isso se vê de forma evidente na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, que é o único documento internacional (regional) cujo título mostra as duas caras da mesma moeda: “Direitos e Deveres”, é o que faz com que os estados deficientes em deveres sobre os direitos virem a reduzir o estatuto familiar do cônjuge com uma mera circunstância acidental.
Compreendo que é mais do que necessário distinguir bigamia ou poligamia, que reside não só no número de uniões mas também na falta de conhecimento dos sujeitos intervenientes, porque não se trata de um caso de aberto, ou seja, não é um caso cinzento, é um caso claro de não procedência, porque está proibido, porque a monogamia é norma de ordem pública.
Com sentenças judiciais que reconheçam as circunstâncias conjugais paralelas, estamos voltando às origens de uma constituição familiar bárbara, através de uma valorização da já superada família sindiásmica. Hoje, esses julgados atrasam, confundir socioafetividade com o ato jurídico familiar atrasa, confundir socioafetividade com identidade dinâmica atrasa.
O que tento dizer não é que que o problema seja reconhecer efeitos jurídicos a feitos jurídicos familiares, senão na confusão científica da abordagem das instituições, na falta de claridade das pautas hermenêuticas e na ausência de precisão da natureza jurídica das instituições ponderadas.
Em particular, é daí que se tenta utilizar a instituição matrimonial como um fórmula de borracha, um elemento elástico, ajustável aos requerimentos de todo indivíduo da população. E isso não deve ser assim. A instituição matrimonial possui uma particularidade em sua regulamentação, o que faz que sua aplicação seja exclusiva, que seja regida por princípios e requisitos que lhes são próprios e onde a monogamia é de ordem pública.
A chave segue sendo a vontade. Entendo que igual na Argentina, o Brasil não se obriga às pessoas a contraírem matrimônio, e que a discussão na “equiparação” se encontra somente em direitos, mas não em deveres, o que dá conta, da consequência desses julgados.
Não é justo nem legítimo forçar uma das instituições mais nobres do direito, já que o único que se obtém é sua iminente destruição, que em termos científicos, é desnaturalização.
É necessário alentar os operadores jurídicos ao estudo científico das instituições de direito de família, ao reconhecimento das possibilidades de invenção que nos permite nosso sistema, e assim, evitaríamos as solicitações ou necessidade de “equiparação” e, portanto, o perigo da fragilidade dos direitos mal concedidos e a consequente metamorfose das instituições.
Por último, recordo as palavras de um autor argentino, Eduardo Martín Quintana, a quem frente à eliminação, no ano de 2015, do dever de fidelidade no casamento argentino, referiu que se nos basearmos na mais discutida doutrina contratualista do casamento concluiríamos que apesar de ser um contrato com os maiores efeitos jurídicos do sistema normativos argentino, é o único que desde o ano de 2015 não exige a boa-fé dos contratantes.