Apesar da crise mundial em decorrência da pandemia da Covid-19, na contramão de outros importantes setores da economia o mercado imobiliário nacional vem apresentando números positivos.
 
Tal resultado decorre de fatores fundamentais, sem os quais não seria possível alcançarmos o resultado expressivo do setor, entre esses podemos destacar a concessão de crédito para financiamento de obras e aquisição de imóveis.
 
Já há algum tempo o financiamento imobiliário destaca-se no mercado por conta de seu baixo custo, muitas vezes com taxas de juros inferiores a 1% ao mês.
 
Isso se deve à robustez da garantia utilizada para viabilizar tal crédito, ou seja, na hipótese de inadimplência, o imóvel objeto do contrato responderá pelos prejuízos a serem suportados pelo agente financeiro.
 
Essa mesma sistemática acontece não só para aquisição de imóveis pelos consumidores finais, mas também para as incorporadoras que necessitam obter crédito para realização e posterior comercialização de seus empreendimentos.
 
Por muito tempo a principal forma de garantia praticada entre as incorporadoras e os agentes financeiros se traduzia na hipoteca.
 
Estando tal garantia embutida no rol dos direitos reais, em caso de inadimplência esperava-se que o imóvel gravado responderia pelo saldo devedor, minimizando, assim, o custo de risco do agente financiador da obra.
 
Todavia, após a edição da Súmula 308 pelo Superior Tribunal de Justiça, o Poder Judiciário firmou o entendimento de que a garantia hipotecária pactuada entre a construtora e o agente financeiro não produzia efeitos perante os adquirentes das unidades imobiliárias.
 
Em suma, tal entendimento desconstituiu a garantia anteriormente existente em favor da instituição responsável pela liberação do crédito, devendo eventual prejuízo ser objeto de execução judicial, a qual será exitosa apenas na hipótese de o devedor possuir outros bens.
 
Na prática, a aplicação do entendimento sedimentado pela Súmula 308 do STJ retira a hipoteca do rol das garantias reais, haja vista a ausência de lastro referente ao crédito liberado.
 
Como consequência direta, houve aumento no custo do crédito, obviamente repassado aos consumidores finais.
 
Visando a viabilizar a retomada do baixo custo de crédito, o mercado buscou soluções para minimizar os riscos de eventual inadimplência, encontrando na alienação fiduciária uma forma segura para o recebimento dos créditos liberados.
 
Diferentemente da hipoteca, como o próprio nome sugere, a alienação fiduciária consiste na transferência da propriedade resolúvel ao credor em garantia dos valores liberados.
 
Com a quitação das obrigações, procede-se o cancelamento da garantia junto à matrícula do imóvel, sobrevindo a propriedade plena em favor do comprador do imóvel.
 
Todavia, em caso de inadimplência, cabe à instituição financeira credora dar início ao procedimento de execução extrajudicial da dívida, a ser realizado perante o Cartório de Registro de Imóveis, a fim de viabilizar a observância dos requisitos legais para tanto e conferir legalidade ao ato.
 
Ocorre que, em analogia ao entendimento sumulado pelo STJ acerca da garantia hipotecária, o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, como também o Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial nº 1576164/DF), vêm produzindo entendimento no sentido de que eventual alienação fiduciária firmada entre o agente financeiro e a construtora não teria validade com relação a terceiros adquirentes.
 
Entretanto algumas considerações importantes devem ser feitas.
 
Diferentemente da hipoteca, o gravame instituído pela formalização de alienação fiduciária implica obrigatoriamente a transmissão de propriedade do imóvel ao patrimônio do credor.
 
Vale ressaltar que tal transferência decorre de exigência legal, sendo o ato devidamente registrado na matrícula do imóvel.
 
Pois bem, passando tal imóvel a integrar o patrimônio da instituição financeira, como seria possível para a incorporadora vender (formalmente) bem que não mais lhe pertence?
 
A resposta é simples: legalmente, tal possibilidade não existe, a não ser que haja a anuência do credor fiduciário.
 
Não bastasse a impossibilidade jurídica do negócio celebrado entre a incorporadora e terceiro adquirente, o que causa maior indignação na aplicação por analogia da Súmula 308 para os casos de alienação fiduciária reside no fato do Judiciário conferir melhor direito ao instrumento particular de promessa de compra e venda celebrado entre o comprador e a incorporadora em detrimento do contrato de alienação fiduciária (com força de escritura pública) celebrado entre o agente financeiro e a construtora, devidamente registrado em matrícula.
 
É certo que tal entendimento visa a resguardar os direitos relacionados à moradia e dignidade da pessoa humana.
 
Todavia, ao resguardar o direito de poucos (apenas aqueles que guardam condição de judicializar o impasse), ironicamente o Poder Judiciário acaba por prejudicar a maior parcela da população, haja vista que em decorrência da insegurança jurídica o custo do crédito certamente aumentará, alcançando a todos.