“O correr da vida embrulha tudo,

A vida é assim: esquenta e esfria,

Aperta e afrouxa, sossega e depois desinquieta.

O que ela quer da gente é coragem.”

Guimarães Rosa

 

Uma das maiores mudanças na configuração da sociedade brasileira, de acordo com o Censo de 2022 do IBGE (realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), consiste no envelhecimento populacional.

 

A chamada “pirâmide populacional” brasileira, que sempre retratara a baixa idade média da nossa população, com o alargamento da figura inversamente proporcional à faixa etária retratada, agora geometricamente mais se assemelha a um pentágono — não obstante se mantenha a tradição da nomenclatura. [1]

 

O número de pessoas com 65 anos ou mais de idade cresceu 57,4% em apenas 12 anos.[2] A faixa etária em maior volume passou a corresponder aos brasileiros entre 40 e 44 anos de idade, sendo certo que a população dos chamados “superidosos”, ou seja, pessoas com mais de 80 anos de idade, tem inequívoca representatividade na estatística.

 

E, como qualquer outra alteração social significativa, o envelhecimento populacional traz impactos para o Direito, desafiando os operadores a repensar institutos como forma de atender aos anseios emergentes.

 

Em verdade, as estatísticas divulgadas apenas atestam o que já se constatava nos balcões dos cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais do país. O número de idosos atendidos, especialmente aqueles que almejam dar entrada em processos de habilitação de casamento ou formalizar união estável, aumenta expressivamente ano após ano.

 

Com o incremento da expectativa de vida e o avanço da medicina, que propicia aos idosos usufruir das terceira e quarta idades com bem-estar e qualidade de vida, esse segmento da sociedade tem iniciado novos projetos de vida, o que abarca, não raro, a iniciativa de se divorciar ou extinguir união estável e, ao depois, contrair novas núpcias ou formalizar outra união estável. De igual modo, após a viuvez, os idosos se permitem renovar os seus sonhos e se unir a um(a) novo(a) cônjuge ou companheiro(a).

 

 

Trata-se da busca da felicidade, que vem sendo considerada, na atualidade, valor social e projeção da dignidade da pessoa humana, a merecer tutela, especialmente nas relações familiares. [3]

 

Essas mudanças estão influindo diretamente no tratamento dispensado ao regime de bens a ser adotado em casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoas idosas.

 

Embora a liberdade seja um valor fundamental em nosso ordenamento jurídico, prevista no artigo 5º, caput, da Constituição de 1988, e a autonomia privada na escolha do regime de bens seja correlatamente prestigiada, como regra, no artigo 1639 do Código Civil em vigor, a legislação infraconstitucional tem previsto, há décadas, restrições (normas de ordem pública) à possibilidade de escolha do regime de bens do casamento em função da idade dos nubentes, como medida voltada à proteção de seus interesses.

 

Nesse sentido, o artigo 258, inciso II, do Código Civil de 1916, previa a adoção do regime da separação obrigatória de bens, caso o noivo fosse maior de 60 anos de idade ou a noiva fosse maior de 50 anos de idade.

 

A redação original do Código Civil de 2002, por seu turno, dispunha, no artigo 1.641, inciso II, a obrigatoriedade do regime da separação de bens, caso qualquer dos nubentes fosse maior de 60 anos — ou seja, aumentou, em dez anos, a idade em relação à nubente virago, comparativamente com a codificação anterior.

 

 

Em 2010, foi editada a Lei Federal nº 12.344, que alterou a redação do referido inciso, a fim de impor o regime da separação obrigatória de bens aos nubentes com mais de 70 anos de idade — dessa vez, aumentando em dez anos a idade para ambos os nubentes, indistintamente. [4]–[5]

 

Com o advento dessa alteração legislativa, em 2010, verificamos, em nossa rotina profissional, a mobilização de casais que, por terem contraído núpcias sob a égide da lei anterior, com idade entre 60 anos (completos) e 70 anos (incompletos), se submeteram ao regime da separação obrigatória de bens.

 

Eles recorreram, com êxito, ao Poder Judiciário, tendo obtido autorização judicial para optar por outro regime de bens. Em cumprimento à sentença de procedência, houve a expedição de mandado judicial ao Registro Civil de Pessoas Naturais para a respectiva averbação à margem do assento de casamento.

 

O Superior Tribunal de Justiça também passou a autorizar, especialmente a partir de 2016, o afastamento da separação obrigatória de bens para o casamento, caso os nubentes idosos tivessem união estável anterior, iniciada quando ainda não tinham restrição legal à escolha do regime de bens. [6]

 

Tema 1.236

 

Recentemente, em 1º de fevereiro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) fixou o Tema 1.236 da repercussão geral, nos seguintes termos:

 

“Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1,641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública.” [7]

 

Em outras palavras, pessoas com mais de 70 anos de idade que pretendam se casar ou formalizar união estável podem livremente escolher o regime de bens de sua preferência, afastando, assim, o regime da separação obrigatória, sendo necessária, para tanto, a lavratura de escritura pública.

 

Entende-se que a exigência da forma de escritura pública decorre da previsão contida no artigo 1.653 do Código Civil, que considera nulo o pacto antenupcial que não observar essa formalidade, embora, de lege ferenda, [8] considere-se de todo recomendável admitir que a opção pelo regime de bens também possa ser realizada por termo perante o Oficial do Registro Civil de Pessoas Naturais, que igualmente ostenta fé pública, no momento da entrada do processo de habilitação de casamento (artigo 1.525 e ss, CC/2002) ou da formalização da união estável (artigo 94-A, da Lei nº 6.015/1973).

 

De se consignar que o termo de opção lavrado diretamente perante o Oficial Registrador é o instrumento mais frequentemente adotado quando os nubentes optam pela comunhão parcial de bens (artigo 1.640, parágrafo único, CC/2002).

 

Em acréscimo, o STF modulou os efeitos do Tema 1.236, definindo que, para casamentos ou uniões estáveis contraídos antes do referido julgamento, o casal pode optar pela mudança do regime de bens, judicial ou extrajudicialmente, com efeitos ex nunc, ou seja, o novo regime de bens produzirá efeitos apenas a partir da data da formalização de sua opção, sem repercutir no período de tempo anterior, que se mantém sob a regência das regras da separação obrigatória de bens, em homenagem à segurança jurídica.

 

E o prognóstico é de incremento dessa tendência evolutiva. O anteprojeto de alteração do Código Civil, apresentado pela Comissão de Juristas ao Plenário do Senado em 17 de abril de 2024, propõe a revogação do artigo 1.641, justamente o dispositivo legal que regula as hipóteses de obrigatoriedade do regime da separação de bens no casamento. Portanto, caso a proposta se converta em lei, todas as pessoas, indistintamente, poderão escolher livremente o regime de bens do casamento ou da união estável.

 

A evolução legislativa e jurisprudencial representa uma nítida resposta à significativa mudança social mencionada ao início deste trabalho. Foi o expressivo envelhecimento populacional no Brasil, aliado às novas aspirações da população idosa, que se mantém ativa e com novos projetos de vida, que mobilizou os Poderes Legislativo e Judiciário a reconhecer que os referenciais etários como fator de limitação da autonomia privada precisariam ser paulatinamente mitigados e que pessoas idosas possuem plenas condições de exercer, também no que tange à escolha do regime de bens, a liberdade constitucionalmente assegurada, passando-se, cada vez mais, a se prestigiar a sua autodeterminação.

 

Por outro lado, em que pese o inegável avanço da medicina, que propicia a vivência da terceira e da quarta idades com qualidade de vida, forçoso convir que os operadores do Direito devem zelar pela verificação da genuína capacidade de discernimento do idoso, in concreto, no momento do exercício da opção do regime de bens. Doenças neurológicas, particularmente Alzheimer, prevalecem em pessoas com 65 anos ou mais, e já acometem 1,2 milhões de brasileiros, segundo o Ministério da Saúde. [9]

 

Acrescente-se que a Covid-19 colocou em evidência o grave cenário de violência patrimonial e financeira contra idosos em nosso país, perpetrada precipuamente por pessoas próximas a eles. Somente entre março e junho de 2020, houve mais de 25 mil denúncias para o Disque 100, mantido pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. [10] A dramática estatística persiste, com 22 mil denúncias no primeiro semestre de 2022, segundo a Casa Civil. [11]

 

Desse modo, providências objetivas e de fácil adoção, como observar o comportamento dos nubentes e solicitar certidão de interdição junto às serventias com atribuição de Interdições e Tutelas, [12] evitam que toda a evolução jurídica ora referida e festejada seja circunstancialmente utilizada em prejuízo da pessoa idosa.

 

Recomendação do CNJ

 

Com propriedade, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação nº 47, de 12 de março de 2021, recomendando aos serviços notariais e de registro do Brasil, que “adotem medidas preventivas para coibir a prática de abusos contra pessoas idosas, especialmente vulneráveis, realizando diligências se entenderem necessário, a fim de evitar violência patrimonial ou financeira”. [13]–[14]

 

Considera-se recomendável que essa cautela seja adotada por todos os profissionais do Direito, inclusive advogados e magistrados chamados a lidar com a questão.

 

Aplaude-se, portanto, a evolução legislativa e jurisprudencial em favor da autodeterminação da pessoa idosa na escolha do regime de bens do casamento e da união estável, ressalvando-se, contudo, a necessidade de se adotar um olhar atento e tomar as providências necessárias para coibir, pontualmente, casos de violência patrimonial e financeira contra a pessoa idosa por ocasião da opção do regime de bens. A atuação dos operadores do Direito em geral e dos delegatários de cartórios extrajudiciais, em especial, será o fiel da balança.

 

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[1] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pirâmide Etária. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18318-piramide-etaria.html Consulta realizada em 24/04/2024.

 

[2] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo 2022: número de pessoas com 65 anos ou mais de idade cresceu 57,% em 12 anos. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38186-censo-2022-numero-de-pessoas-com-65-anos-ou-mais-de-idade-cresceu-57-4-em-12-anos#:~:text=A%20idade%20mediana%20da%20popula%C3%A7%C3%A3o,de%200%20a%2014%20anos. Consulta em 24/04/2024.

 

[3] ALVES, Jones Figueirêdo. “Direito à felicidade deve ter a família como base normativa”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-dez-01/jones-figueiredo-direito-felicidade-familia-base-normativa/ Consulta realizada em 24/04/2024.

 

[4] De se consignar que o Enunciado 125, da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal considera preconceituosa qualquer restrição à liberdade de escolha do regime do casamento ou da união estável em virtude da idade do casal. CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciado 125. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/i-jornada-de-direito-civil.pdf Consulta em 24/04/2024.

 

[5] Flavio Tartuce reputa inconstitucional qualquer previsão legal que restrinja a autonomia privada na escolha do regime de bens em virtude da idade do interessado, considerando tal previsão com “feição estritamente patrimonialista” e “discriminatória”, que “não protege o idoso, mas seus herdeiros”. TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil. Volume Único. 11. Ed. Rio de Janeiro: Forense Método. 2021. p. 1226.

 

[6] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Separação de bens não é obrigatória para idosos quando casamento é precedido de união estável. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2016/2016-12-16_08-02_Separacao-de-bens-nao-e-obrigatoria-para-idosos-quando-casamento-e-precedido-de-uniao-estavel.aspx Consulta em 24/04/2024.

 

[7] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ARE 1.309.642. Tema 1.236. Tribunal Pleno. Julgamento em 01/02/2024.

 

[8] Infelizmente, o Anteprojeto de alteração do Código Civil mantém a exigência de escritura pública para a opção por regime de bens diverso da comunhão parcial, no artigo 1640, §1º. Espera-se que, durante a tramitação do projeto, o legislador altere o referido dispositivo, para admitir a formalização da opção por qualquer regime de bens por termo perante o Oficial Registrador, como já ocorre em relação à comunhão parcial.

 

[9] EMPRESA BRASILEIRA DE COMUNICAÇÃO. Alzheimer: condição afeta 1,2 milhão de pessoas no Brasil. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202310/alzheimer-condicao-afeta-1-2-milhao-de-pessoas-no-brasil Consulta realizada em 24/04/2024.

 

[10] G1. Bem estar. Cresce 50% o número de denúncias de violência contra o idoso no Brasil durante a pandemia da Covid-19. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/10/29/cresce-59percent-o-numero-de-denuncias-de-violencia-contra-o-idoso-no-brasil-durante-a-pandemia-da-covid-19.ghtml Consulta em 24/02024.4

 

[11] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. CASAL CIVIL. Violência patrimonial e financeira: pessoas idosas são as maiores vítimas no Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2022/setembro/violencia-patrimonial-e-financeira-pessoas-idosas-sao-as-maiores-vitimas-no-brasil Consulta em 24/04/2024.

 

[12] Cf. Artigo 89, da Lei Federal nº 6.10/1973 (Lei de Registros Públicos).

 

[13] Entende-se que a observação, pelo delegatário do serviço extrajudicial, do comportamento do idoso em cada caso concreto é fundamental para que se detectem potenciais casos de abuso patrimonial e financeiro e se verifique a necessidade de adotar diligências adicionais para coibi-la, como, de fato, constou da Recomendação do CNJ ao adotar a expressão “se entenderem necessário”. Por tal razão, considera-se inadequada, embora aspirando a valores nobres, a medida adotada pela E. Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que, ao editar o Provimento CGJ 69/2021, determinou que todos os atos notariais envolvendo pessoas maiores de 80 anos de idade sejam gravados em vídeo, com o registro em imagem da presença de, no mínimo, dois integrantes da serventia. Isso porque, conforme exposto ao longo deste trabalho, a idade, por si só, não mais pode ser tida isoladamente como fator de comprometimento da capacidade de discernimento da pessoa. É de todo importante alcançar um ponto de equilíbrio, em que a falta de discernimento da pessoa idosa não seja tida como regra e que a tentativa de proteção não acabe por gerar desnecessário constrangimento e parecer, aos olhos do interessado idoso, uma medida etarista.

 

[14] CORREGEDOIA-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Provimento nº 69, de 05 de agosto de 2021. Disponível em: https://www3.tjrj.jus.br/consultadje/consultaDJE.aspx?dtPub=05/08/2021&caderno=A&pagina=21 Consulta em 24/04/2024.

 

Fonte: Conjur

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