Introdução
 
Usando linguagem popular, é comum pais “colocarem” imóveis no nome do filho, mas manterem, para si, de forma vitalícia, o direito de usar ou alugar o imóvel. Trata-se de prática comum, que inevitavelmente frequenta os cartórios de notas e os de imóveis.
 
Juridicamente, há dois caminhos mais comuns para esse tipo de operação: um é o usufruto deducto e o outro é a compra e venda bipartida (com doação de dinheiro).
 
Trataremos dessas figuras com olhos nos aspectos registrais, tributários e sucessórios.
 
Para tanto, começaremos explicando o direito real de usufruto. Em seguida, passaremos a tratar das figuras do usufruto deducto e da compra e venda bipartida. Por fim, enfrentaremos a aplicação dessas figuras como forma de os pais “colocarem” imóveis no nome do filho.
 
Direito real de usufruto
 
Regulado pelos arts. 1.390 ao 1.411 do CC, o usufruto é um direito real outorgado pelo proprietário – que se torna nu proprietário – ao usufrutuário a fim de que este possa exercer as faculdades de usar e fruir da coisa.
 
As partes envolvidas são: (1) nu-proprietário: o titular do direito real de propriedade onerado pelo usufruto; e (2) usufrutuário: o titular do direito real de usufruto.
 
O direito real propriedade onerada pelo usufruto é chamado também de “nua-propriedade” por uma metáfora: como o titular do imóvel onerado não pode usar ou fruir, mas apenas dispor, a sua propriedade está metaforicamente desnuda.
 
O usufruto pode incidir sobre móvel, imóvel ou patrimônio e estende-se aos acessórios (pertenças, benfeitorias, frutos e etc.) e aos seus acrescidos (arts. 1.390 e 1.392, CC). Esses acrescidos são as acessões, como um edifício construído no imóvel objeto do usufruto.
 
Em regra, a constituição do usufruto ocorre com: (1) o registro do título na matrícula do imóvel no Cartório, no caso de imóvel (art. 1.391, CC); (2) a tradição, no caso de móvel (art. 1.226, CC); e (3) o transcurso do tempo no caso de usucapião, que pode envolver móvel ou imóvel.
 
O usufruto é inalienável, embora o seu exercício não o seja (art. 1.393, CC). O motivo é que o usufruto é instituído em favor de uma determinada pessoa, levando em conta suas particularidades, donde dizer-se que ele é instituído intuitu personae. Um exemplo disso é que, ao instituir um usufruto vitalício para um idoso de 100 anos, o instituidor tem a expectativa de que o usufruto virá a se extinguir de modo mais breve do que se tivesse instituído em prol de um jovem de 12 anos, tendo em vista a diferença da expectativa de vida restante de cada um. Não pode o idoso ceder o usufruto para um jovem, frustrando a expectativa do instituidor.
 
Assim, se instituo o usufruto em favor de João sobre um apartamento, ele sempre será o usufrutuário e, portanto, no caso de sua morte, o usufruto se extinguirá (art. 1.410, I, CC). Não poderá João alienar o usufruto para uma criança recém-nascida a fim de evitar essa extinção com a sua morte, pois o usufruto não pode ser alienado. Isso, porém, não impede que João ceda o exercício do usufruto para outrem, que iria poder morar ou alugar o apartamento.
 
Daí decorre que credores de usufrutuários não podem pedir a penhora do usufruto diante de sua inalienabilidade, mas podem pleitear a penhora do “exercício” do usufruto, de sorte que a constrição recairá sobre o direito à percepção dos frutos e privará o usufrutuário de fruí-los provisoriamente.
 
Usufruto Deducto
 
O usufruto deducto ou reservado se dá quando alguém aliena a propriedade a outrem, mas reserva o usufruto para si. No popular, isso ocorre quando, por exemplo, os pais querem colocar o apartamento no nome do filho, mas pretendem garantir, para si próprio, o direito de continuar morando e fruindo do imóvel. Nesse caso, o pai pode doar o apartamento com reserva de usufruto, de modo que ele ficará com o direito real de usufruto, e o filho, com a nua propriedade.
 
O CC reconhece essa prática expressamente (art. 1.400, parágrafo único).
 
Apesar de o art. 1.400, parágrafo único, do CC mencionar o usufruto deducto em sede de doação, ele não proíbe que a prática seja feita com base em outro tipo de contrato, como uma compra e venda. Assim, temos por plenamente viável uma venda da nua propriedade com reserva do usufruto.
 
O usufruto deducto pode ser instituído, inclusive, em testamento, quando o testador lega a propriedade da coisa a uma pessoa e reserva o usufruto para os herdeiros ou para um terceiro.
 
Quais os atos devem ser lançados na matrícula do imóvel no caso de um usufruto deducto?
 
Segundo doutrina e jurisprudência majoritárias, devem ser feitos dois registros na matrícula: um para a alienação da propriedade e outro para a constituição do usufruto1.
 
Há uma cautela importante a ser levada em conta na redação do título a ser registrado no Cartório. É preciso que do título conste expressamente a reserva do usufruto; não basta a mera menção à alienação da nua-propriedade, à vista da necessidade de uma instituição de usufruto. O usufruto não pode ser constituído pelo proprietário da coisa em prol de si mesmo, pois é direito sobre coisa alheia. O usufruto só pode ser constituído pelo proprietário em prol de outrem. Isso decorre do art. 1.391 do CC, que vincula a constituição do usufruto ao seu registro no CRI2.
 
Compra e venda bipartida com doação de numerário
 
Prática comum é a “compra e venda bipartida”, assim entendida uma venda da nua-propriedade em favor de uma pessoa concomitantemente à instituição onerosa do usufruto em prol de outra pessoa.
 
De fato, o proprietário de um bem pode instituir o usufruto a uma pessoa e, em seguida, vender a nua propriedade para outra. Tem de ser observada essa ordem na redação da escritura (se os negócios forem formalizados na mesma escritura) e no lançamento dos atos de registro na matrícula perante o competente Cartório de Imóveis. É que, se o proprietário, em primeiro lugar, vender a nua propriedade e reservar para si o usufruto, não haverá como ele posteriormente transferir o usufruto a terceiros em razão da sua inalienabilidade (art. 1.393, CC).
 
Haverá dois fatos geradores de ITBI aí: um pela transmissão onerosa da nua propriedade e outro pela instituição (=transmissão) onerosa do usufruto (o usufruto é um bem imóvel por determinação legal, conforme art. 80, I, CC).
 
A base de cálculo é diferente para cada um dos fatos geradores. As leis municipais costumam indicar o valor dessa base de cálculo. Por exemplo, no Distrito Federal, a base de cálculo do ITBI incidente sobre a aquisição onerosa da nua propriedade toma o valor de 30% do valor venal do imóvel, deixando os outros 70% para a instituição do usufruto3.
 
Compra e venda bipartida com doação modal de dinheiro e com cláusula de inalienabilidade: aspectos registrais
 
É comum os pais, ficando com o usufruto, comprarem imóveis no nome do filho como uma “forma de doação” destinada a garantir o conforto material do filho no caso de falecimento dos pais. Nesses casos, é comum também os pais quererem tornar o direito dos filhos inalienáveis para que, ao menos, o filho sempre tenha um imóvel onde viver.
 
Esses arranjos negociais podem ser chamados de “compra e venda bipartida com doação de numerário (dinheiro) e com cláusula de inalienabilidade”. Cuida-se, em geral, de compra e venda de imóvel em favor de filho menor, com dinheiro de seu pai, cumulada com instituição de usufruto vitalício em prol do pai e com imposição de cláusula de inalienabilidade sobre o imóvel.
 
Há vários modos de representar a operação. A mais adequada é entender que há os seguintes negócios jurídicos: (1) instituição onerosa de usufruto vitalício em favor dos pais com direito de acrescer; (2) doação de dinheiro dos pais em prol do filho com o encargo de comprar a nua propriedade e com cláusula de inalienabilidade – doação modal -; (3) compra e venda da nua propriedade pelos filhos com cláusula de inalienabilidade que recaía sobre o dinheiro e que, por sub-rogação real, passa para o imóvel.
 
Daí decorre que, na matrícula do imóvel no Cartório, seriam praticados os seguintes atos: (1) registro da instituição onerosa do usufruto para os pais com direito de acrescer; (2) registro da compra e venda da nua propriedade; (3) averbação da cláusula de inalienabilidade.
 
Não importa se o filho é menor de idade. Não haverá necessidade de alvará judicial para esses negócios. E há diferentes formas de justificar isso.
 
A primeira forma é que, em termos práticos, temos um efeito similar a uma doação pura da nua propriedade em favor do filho, a qual pode ser recebida pelo absolutamente incapaz mesmo sem sua aceitação (art. 543, CC). A própria cláusula de inalienabilidade não passa de uma proteção ao próprio incapaz. Ademais, os pais estão a representar o filho incapaz nesses negócios, o que deve ser tido por suficiente para a prática dos atos. O Conselho Superior da Magistratura já decidiu assim (CSM-TJSP, Apelação cível 78.532-0/3, Rel. Corregedor-Geral de Justiça Luís de Macedo, j. 30/08/20014).
 
A segunda forma de justificar a dispensa de alvará judicial é enxergando o fenômeno acima de maneira diversa, mas chegando ao mesmo resultado final. Basta pensar que, na verdade, teria havido uma doação do dinheiro para o filho com o encargo de que este deveria adquirir o imóvel e, ato contínuo, instituir o usufruto ao pai, como enxerga Gilberto Valente (2007).
 
Uma terceira forma é cogitar na aquisição do imóvel pelo pai que, ato contínuo, doa-o, com reserva de usufruto e com a cláusula de inalienabilidade. O resultado prático, porém, é o mesmo.
 
Por fim, indaga-se: como ficam os tributos?
 
Será devido ITCD pela doação do dinheiro, além de: (1) ITBI sobre a instituição onerosa do usufruto e (2) ITBI sobre a venda da nua propriedade. Lembre-se que o somatório das bases de cálculos desses dois ITBIs corresponderá ao valor total do imóvel.
 
Usufruto para deixar imóvel “no nome do filho”: aspectos tributários, sucessórios e dever de colação
 
É comum os pais ficarem com o usufruto para colocarem uma casa no nome do filho.
 
Isso pode ocorrer por meio de uma doação com reserva de usufruto (“o usufruto deducto”) ou de uma compra e venda bipartida com doação de numerário.
 
No mais das vezes, o objetivo é antecipar e proteger a herança.
 
Há as seguintes vantagens nesse tipo de postura:
 

(1) a operação é uma espécie de antecipação de herança em que o bem doado é, no caso de compra e venda bipartida, apenas o valor do dinheiro utilizado na compra da nua propriedade ou, no caso de doação com reserva de usufruto, apenas a nua propriedade;
 
(2) futuros credores do pai não poderão penhorar a nua propriedade, mas apenas o exercício do usufruto, o que protegerá a herança do filho no caso de naufrágio financeiro posterior do pai;
 
(3) a consolidação da propriedade pelo filho no caso de morte do pai não dependerá de inventário e partilha, pois a morte do pai é hipótese de extinção do usufruto: basta o filho apresentar a certidão de óbito ao Cartório de Imóveis e pedir a averbação do cancelamento da nua propriedade.

 
Do ponto de vista tributário, no momento da operação, será devido ITCD com base de cálculo correspondente ao valor da nua propriedade. No futuro, com a morte dos pais – a causar a extinção do usufruto -, será devido ITCD com base de cálculo correspondente ao valor do usufruto5.
 
Como doação a filho é considerada uma antecipação de herança, a liberalidade ora tratada terá de ser colacionada na forma dos arts. 544 e 2.002 ao 2.012 do CC. Nesse caso, indaga-se: o que deve ser colacionado no caso de doação, a um filho, de um imóvel com reserva de usufruto?
 
Temos duas hipóteses a analisar: uma envolvendo usufruto deducto e outra, a compra e venda bipartida.
 
De um lado, no caso de o pai ter feito doação com reserva de usufruto (usufruto deducto), o objeto a ser colacionado é apenas a nua propriedade, e não a propriedade plena.
 
Afinal de contas, o filho não tem a propriedade plena do bem. Ele não pode alugar a coisa, usá-la ou explorá-la economicamente, pois é nu proprietário. Só quando, no futuro, ocorrer a consolidação da propriedade é que o filho passará a ter a propriedade plena. A consolidação da propriedade ocorrerá com a extinção do usufruto, extinção essa que, entre outras causas, ocorre com a morte do usufrutuário.
 
A título ilustrativo, repare que os filhos podem ter alienado a nua propriedade a terceiros, caso em que a consolidação da propriedade irá beneficiar o terceiro que adquiriu a nua propriedade. Seria, pois, uma atecnia jurídica dizer que a colação deveria recair sobre o valor do imóvel inteiro. Só o valor da nua propriedade é que deve ser colacionado.
 
De outro lado, no caso de o pai ter feito uma compra e venda bipartida com doação de numerário, o resultado é próximo (mas não idêntico): o objeto a ser colacionado deve ser o dinheiro doado para a aquisição da nua propriedade, dinheiro esse que corresponde ao valor da nua propriedade no momento da operação. Entendemos que a liberalidade aí não é a nua propriedade, e sim o dinheiro doado.
 
Conclusão
 
O direito real de usufruto é a via legalmente mais adequada para acomodar a pretensão de pais que pretendem colocar um “imóvel” no nome dos filhos sem perder o direito de vitaliciamente usufruir do bem.
 
Esmiuçamos aqui os aspectos civis, registrais e tributários nesses casos, com inclusão da definição de qual bem o filho donatário deverá colacionar em futura sucessão causa mortis dos pais.