O regime jurídico do direito real sobre bem imóvel submete-se ao princípio da publicidade, de modo que apenas terá a propriedade sob um bem imóvel aquele em cujo nome o imóvel estiver registrado
É princípio estruturante do ordenamento jurídico pátrio o reconhecimento do direito fundamental de propriedade. Tal condição peculiar pode ser observada, além da estatura de direito inscrito na Ordem Fundante, pelo formalismo que a legislação impõe à prática dos negócios jurídicos que envolvem a sua transferência.
Como bem leciona Maria Helena Diniz, o regime jurídico do direito real sobre bem imóvel submete-se ao princípio da publicidade, de modo que apenas terá a propriedade sob um bem imóvel aquele em cujo nome o imóvel estiver registrado. A publicidade legalmente atribuída aos negócios jurídicos que tratam sobre direitos imobiliários objetiva, precipuamente, conferir maior segurança jurídica a estes contratos e, logicamente, às partes que dele participam.
Por isso mesmo, é possível concluir que a simples celebração de um negócio jurídico não é suficiente para operar a transferência da propriedade de um bem imóvel – o domínio desta espécie de bem demanda registro formal pelas partes alienante e adquirente.
Em linhas gerais, qualquer negócio jurídico envolvendo um bem imóvel deverá, para produzir efeitos em face de terceiros, observar o princípio da publicidade registral. E tal condição somente é atingida quando o negócio jurídico é devidamente registrado na matrícula deste bem imóvel – isto é, os contratantes deverão, necessariamente, providenciar o registro do negócio jurídico celebrado, o qual deverá ser feito no cartório da circunscrição do imóvel.
Neste sentido, é importante destacar que a matrícula é considerada ato registral inaugural, posto que designa a primeira inscrição. Tendo como base os ensinamentos de Afrânio de Carvalho, tem-se que “ao unificar os antigos livros no chamado 'Registro Geral', destinado a funcionar como fólio real, a nova lei de Registro deu à primeira inscrição neste livro o nome de 'matrícula'”.
Essa inscrição inicial do imóvel, com a sua situação geográfica e a sua descrição, precisa ser especialmente assinalada para distinguir-se de qualquer outra que, tomando-a como base, faça-se depois para transmitir ou gravar o objeto dela.
Portanto, é correto afirmar que a natureza jurídica da matrícula é de ato de registro, tendo em vista tratar-se de ato praticado junto aos Registros de Imóveis, o qual dá origem à individualidade do imóvel na sistemática registral. Significa dizer que, com a abertura da matrícula, o imóvel passará a sempre ser identificado pelo número de ordem que tomar e ganhará um atributo de domínio derivado: a matrícula do imóvel passa a figurar como prova suficiente da propriedade do imóvel. Confira-se, nessa linha, o que lecionam Vitor Frederico Kumpel e Carla Modina Ferrari:
A matrícula, inclusive, por sua natureza cadastral, tem caráter de permanência e de razoável imutabilidade, devendo obedecer ao princípio da unitariedade matricial, equivale dizer, cada imóvel será objeto de uma matrícula e cada matrícula descreverá apenas um imóvel. Sobre o tema, Narciso Orlandi Neto é claro:
É nítida a intenção do legislador em impingir formalidade, publicidade e, consequentemente, segurança jurídica aos negócios jurídicos imobiliários: o art. 167 da lei 6.015/73, inclusive, elenca todos os atos passíveis de averbação e registro no Cartório de Imóveis – condição que deve ser inequivocamente observada a fim de produzir os respectivos efeitos.
Ocorre que o inciso I do art. 169 da lei 6.015/73 traz uma exceção à regra que, a depender da interpretação adotada, cria toda sorte de dúvidas e inseguranças na estrutura criada para a proteção da propriedade imobiliária. A disposição legal em comento determina que as averbações, que serão efetuadas na matrícula ou à margem do registro a que se referirem, ainda que o imóvel tenha passado a pertencer a outra circunscrição.
Não há como se deixar de observar que a interpretação literal do texto em questão representa enorme contradição à própria vontade do legislador: a letra fria do regramento acima traduzido autorizaria, nos casos de desmembramento e/ou transferência da competência de uma serventia sobre um dado imóvel, que o cartório outrora competente continuasse com a prática de atos de averbações na matrícula do bem, ainda que nova matrícula tenha sido aberta na nova circunscrição.
A situação descrita afronta diretamente os princípios da territorialidade e da unitariedade matricial do direito registral imobiliário. Se, como visto, o legislador buscou criar verdadeiro sistema protetivo à propriedade imobiliária – inclusive condicionando a eficácia dos negócios jurídicos imobiliários ao seu registro e publicidade, a aplicação isolada dos ditames do inciso I do art. 169 da lei 6.015/73 pode ensejar que um mesmo imóvel tenha duas matrículas e, consequentemente, que qualquer uma delas não detenha todas as informações circunstanciais daquele bem.
Não dispondo de todos os dados sobre a situação fática de um bem imóvel, a matrícula perde sua principal função, e também experimenta iminente risco à segurança jurídica dos negócios jurídicos que envolverem aquele imóvel.
Aliás, o interessado na aquisição do bem não poderá restringir a due diligence imobiliária apenas no registro atualmente competente, tendo em vista a probabilidade de existir algum ônus registrado ou averbado à margem da transcrição ou da matrícula do Registro de Imóveis anteriormente competente, o que poderá obstar, por exemplo, o conhecimento de que aquele imóvel, fora, anteriormente, alienado a terceiro ou mesmo que aquele bem é objeto de penhora.
Por isso, é fruto do bom senso entender que as averbações a que se refere o inciso I do art. 169 da lei 6.015/73 são aquelas residuais e excepcionais, que não têm como origem a vontade do proprietário, ou seja, as oriundas de indisponibilidades de bens, ordens judiciais e atos da administração pública. Havendo manifestação de vontade do proprietário, os registros e averbações devem ser efetuadas no registro da nova circunscrição, sob pena de não apenas desestabilizar o objetivo precípuo de conceder aos usuários a segurança jurídica inerentes aos Registros de Imóveis, como também ocasionar grave violação aos princípios da territorialidade e unitariedade matricial.
Nota-se que, a partir da instalação de uma nova serventia, a lógica do sistema impõe que todo e qualquer ato de registro e de averbação, definidos no artigo 167, I e II, da lei 6.015/73 (lei de Registros Públicos), salvo os oriundos da Administração Pública, deve ser praticado junto ao novo Registro, quanto aos bairros e municípios que são da sua competência, sendo nulo qualquer ato praticado em desrespeito ao princípio da territorialidade. Novamente, cita-se o entendimento de Vitor Frederico Kumpel e Carla Modina Ferrari:
A criação ou desmembramento de circunscrições registrais imobiliárias gera atribuições à nova serventia, que deverá transportar as matrículas e, a partir de então, escriturar os registros e as averbações da competência territorial que lhe foi atribuída. Em contrapartida, ao antigo registrador ficará vedada a prática de atos registrais em relação mesmo imóvel, ressalvado o lançamento de averbações ou anotações enquanto não aberta a matrícula na nova serventia (art. 295 da LRP). (…) Aberta a nova matrícula, em decorrência de alteração da circunscrição imobiliária, entende-se que a serventia anterior deverá encerrar a matrícula ou a transcrição que ensejou o transporte da nova matrícula. Muito embora inexista previsão legal correspondente, trata-se de um imperativo de segurança jurídica, visando impedir a coexistência de duas matrículas relativas a um mesmo imóvel, em serventias diversas.
Não se pode olvidar que a prática registral revela uma certa tendência de se interpretar o inciso I do artigo 169 da lei 6.015/73 como regra de competência, quando, em verdade, trata-se de uma nítida exceção trazida pela lei, com o intuito de manter a competência do antigo Registro de Imóveis apenas para a prática de atos oriundos da Administração Pública para os imóveis que ainda não encontram-se devidamente matriculados na nova serventia, preservando-se sobremaneira a regra do caput do referido artigo 169.
Aliás, é defensável que o registro ou averbação seja praticado no novo Registro cuja competência territorial a própria lei a definiu, inexistindo qualquer fundamento no ordenamento jurídico pátrio para que se possa autorizar a manutenção da prática dos referidos atos na antiga delegação, sob pena de inexistir razão para a criação da nova serventia registral.
Seguindo este entendimento, que visa à interpretação dinâmica do conjunto de regramentos que envolvem o registro dos negócios imobiliários e a intenção legislativa que os circunda, observam-se diversas movimentações dos operadores do direito, com o fito de suprimir a contradição legal.
Nesta linha, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo já havia consignado o entendimento de que a competência para a prática de atos de averbação é da nova circunscrição imobiliária:
REGISTRO DE IMÓVEIS – Solicitação de providências para a averbação de penhora determinada em ação trabalhista – Necessidade, contudo, de apresentação do título ao Oficial de Registro de Imóveis competente, para que seja protocolado e submetido ao procedimento de qualificação registrária, cabendo de eventual manutenção da recusa da prática do ato insurgência dirigida ao MM. Juiz Corregedor Permanente, mediante procedimento administrativo próprio, com recurso, da decisão por aquele prolatada, ao Corregedor Geral da Justiça. (Processo CG 2008/15475, São Paulo, com parecer em 10/06/2008, aprovação em 16/06/2008, publicada no D.J.E. de 26/08/2008)
REGISTRO DE IMÓVEIS – Retificação administrativa de registro – Conflito negativo de competência – Inexistência de impugnação perante o Juiz Corregedor Permanente, manifestada pelos requerentes, contra a recusa do Oficial de Registro de Imóveis supostamente competente para processar o requerimento de retificação do registro – Competência do Juiz Corregedor Permanente para, em primeira instância, apreciar a impugnação manifestada contra essa recusa – Inviabilidade de consulta à Corregedoria Geral da Justiça visando afastar conflito que somente em tese pode vir a existir – Conflito de competência não conhecido, com observação. (Processo CG 2008/6037, Itapecerica da Serra, com parecer em 18/03/2008, aprovação em 31/03/2008, publicada no D.J.E. de 02/06/2008)
Imperioso destacar que, recentemente, esta mesma Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, após ouvir as considerações da ARIe, uma vez aberta nova matrícula (i) todas as averbações e registros passarão a ser realizados junto à nova circunscrição e (ii) a antiga circunscrição averbará a comunicação de abertura SP no procedimento 2018/00081973, editou novas normas relacionadas aos serviços dos cartórios extrajudiciais e expressamente consignou qudo novo registro no antigo:
68.1. Também não serão feitas averbações nas matrículas de imóveis que passarem a pertencer a outra circunscrição, se estiverem matriculados na nova unidade.
68.2. Para tal finalidade, incumbe à nova circunscrição informar a abertura de matrícula à antiga por meio do sistema Ofício Eletrônico (funcionalidade PEC) em até 2 (dois) dias, indicando o número da matrícula ou transcrição da antiga circunscrição e o número correspondente na nova unidade.
68.3. Recebida a informação, a antiga circunscrição averbará de ofício a abertura da matrícula na nova unidade, indicando-lhe o número.
A mudança normativa sugerida pela ARISP e efetivamente seguida pela CGJSP teve sua justificativa pautada justamente na necessidade de proteção e manutenção da segurança jurídica dos negócios imobiliários, de modo a suprir a lacuna legal aberta pelo texto do inciso I do art. 169 da lei 6.015/73 (fls. 846 do procedimento público 2018/00081973):
Há de se destacar também a própria legitimidade da nova circunscrição imobiliária para a abertura da matrícula, ou mesmo para o encerramento da transcrição, mediante a existência de título. Como bem lembrou o IRIB, o título poderá ser o próprio requerimento de quem demonstre legítimo interesse, ainda que não haja ato a ser registrado.
O esforço das serventias imobiliárias do Estado de São Paulo, conjuntamente com a CJGSP é louvável e deve caminhar para a uniformização de entendimentos em âmbito nacional, eis que não são poucos os exemplos de má-utilização desse conceito Brasil afora, criando verdadeira concorrência entre os Registros de Imóveis.
Contudo, ainda que (i) o Código de Processo Civil de 2015 tenha prezado pela aplicação e respeito aos precedentes jurisprudenciais, tendo em vista a constitucionalização do processo civil na busca pela isonomia, segurança jurídica, celeridade processual e uniformização da jurisprudência, a fim de evitar decisões díspares em casos análogos; e (ii) o próprio ordenamento jurídico permita que Estados criem disposições suplementares à lei federal, o que se observa é que ambos os institutos podem não se afigurar como suficientes à garantia de proteção aos pilares da publicidade e segurança jurídica que sempre se buscou garantir aos negócios imobiliários, justamente por conta de sua aplicação local.
A fragilidade sistêmica e as interpretações outorgadas ao inciso I do art. 169 da lei 6.015/73 demandam cautela em sua aplicação prática, a fim de se evitar a duplicidade de matrículas entre imóveis e, como consequência, a instabilidade jurídica do sistema registral.
Portanto, tem-se que o oficial registrador da serventia originária não pode abrir matrículas de imóveis situados em regiões e bairros que não mais pertencem à sua circunscrição, incluindo tal regra também para a hipótese de abertura de matrícula de imóveis que ainda possuem transcrições, sob pena de não apenas violar o princípio da territorialidade, como ser totalmente nula a abertura da matrícula e os demais atos de registro ou averbação ali praticados.
Ademais, tal situação demanda até mesmo a necessidade de correção do próprio dispositivo legal em nível nacional – ora, em sendo clara a intenção legal de se impingir aos negócios jurídicos imobiliários segurança jurídica formal, urge a reforma da redação da disposição federal que abre mácula na estrutura registral criada para assegurar a proteção do imóvel, de seu proprietário e potenciais interessados no bem, a partir de interpretações distorcidas da norma fixada inciso I do art. 169 da lei 6.015/73.