Entre todas as mudanças que chacoalharam o mundo desde o advento da pandemia de covid-19, a mais íntima é, para muita gente, o fato de estar mais tempo em casa
Um efeito colateral desse status caseiro foi que as inconveniências domésticas se alargaram de modo inversamente proporcional aos horizontes.
O novo modo de vida, provisório ou não, acabou fazendo com que mais e mais pessoas se vissem insatisfeitas com suas moradias — e não foram poucas as que resolveram mudar de casa em plena pandemia.
Para a empresária Michele Barcena Molinaro, de 39 anos, a covid-19 precipitou a realização daquele sonho que antes parecia ser reservado apenas para a aposentadoria: mudar-se da cidade de São Paulo para a praia.
“Meu apartamento na zona norte de São Paulo tem 50 metros quadrados. Meu marido [o comerciante Leandro Lopes Molinaro, de 48 anos] e eu já frequentávamos Maresias havia muitos anos, sempre alugando e pagando pousada”, conta ela. “Então veio a decisão de mudarmos.”
Logo que a pandemia foi decretada, ainda no ano passado, o casal alugou uma suíte em um condomínio na cidade litorânea, com aquele objetivo de “quarentenar” fora da cidade grande. “Mas era complicado, não tinha fogão, não tinha micro-ondas. Começamos a sentir necessidade de uma casa”, recorda.
Foi um período de fazer contas, juntar dinheiro e concretizar o sonho. No segundo semestre de 2020, o papo ficou sério. “Colocamos carro no meio, juntamos todas as economias, nos organizamos e, enfim, compramos um flat pertinho do canto da praia que a gente gosta”, diz.
Mercado aquecido
Histórias como essa se tornaram relativamente comuns. O efeito colateral pode ser visto nos números: mesmo com o país vivendo um período de forte crise econômica, o mercado imobiliário se aqueceu em 2020.
Dados obtidos pela BBC News Brasil junto à seção paulista do Colégio Notarial do Brasil mostram um aumento no registro de compra e venda de imóveis no Estado. Foram 336.968 transações oficializadas em 2020, um aumento de quase 37% em relação às 246.410 formalizadas dez anos atrás.
“Mesmo com a pandemia, os números mostram que esse segmento se manteve aquecido. O dado mostra que um imóvel ainda é o bem mais valioso para uma família brasileira”, afirma o presidente do CNB/SP, Daniel Paes de Almeida.
Sócia da imobiliária Refúgios Urbanos, a arquiteta e corretora Camila Raghi reconhece que houve um aumento no volume de vendas. “Nossos números já haviam sido bastante positivos em 2019 e, surpreendentemente, apesar da crise que enfrentamos desde o início da pandemia, 2020 foi ainda mais positivo”, diz ela.
Raghi deposita a explicação do fenômeno a uma confluência de fatores. “No âmbito financeiro, a existência de uma Selic (a taxa básica de juros) historicamente muito baixa, aliada a um baixo rendimento de investimento em renda fixa e um alto risco em investimento em ações [dado o contexto da pandemia]”, enumera.
Ela também acredita que houve uma alta no valor dos aluguéis, o que levou “inúmeros clientes a decidirem trocar a parcela do aluguel por uma de um financiamento imobiliário”.
“A ideia de imobilizar o capital em um investimento seguro, que constantemente se valoriza, tem se tornado cada vez mais atrativa”, comenta.
“No âmbito social, uma brusca mudança de vida causada pela pandemia fez com que as pessoas passassem mais tempo em suas casas e, portanto, mais atentas à qualidade de vida que seus lares proporcionam”, acrescenta. “Deriva dessa ideia a busca cada vez maior por aspectos relacionados à qualidade de vida, como sol, iluminação e ventilação naturais, além de áreas externas.”
Ela também viu o mercado se movimentar por conta das “eternas mudanças que a vida de todos costuma sofrer, e que são acelerados durante uma pandemia”. No caso, a corretora se referia a fins e inícios de relacionamentos, aumento da família e vontade de mudar de cidade.
Nuances
A distribuição dos registros em cartório ao longo do ano também são um retrato pandêmico. Se 2020 começou com as vendas de imóvel no Estado na casa dos 20 e tantos mil (23.161 em janeiro, 22.446 em fevereiro, 22.628 em março), houve uma queda brusca em abril, justamente quando a covid-19 era muito mais interrogações do que respostas.
Naquele mês, foram registradas apenas 13.107 transações imobiliárias. Trata-se do menor número na série histórica obtida pela reportagem, referente aos últimos 15 anos.
Maio ensaiou uma retomada, ainda tímida, com 16.488 registros. Em junho, foram 24.018. No segundo semestre, as transações imobiliárias em São Paulo ficaram sempre acima de 30 mil. Em dezembro, pela primeira vez em toda a série histórica, os registros superaram a barreira dos 40 mil. Foram 41.412.
Para quem acompanha o mercado, houve o efeito psicológico de quem matutou o ano todo para tomar a decisão de mudar de casa — e não quis virar o ano sem dar o passo definitivo. Raghi conta que em sua imobiliária o volume de vendas espelhou a estatística.
“Tivemos um histórico crescente desde julho. E, de fato, dezembro foi um mês em que fechamos muitos negócios”, comenta Raghi.
Professor de Economia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Agostinho Celso Pascalicchio também acredita que foi uma mescla de fatores o que ocasionou essa movimentação no mercado. “A vontade de mudar pode até ser consequência do comportamento do consumidor”, pontua.
“[Ele] reconhece um mercado que oferece baixo risco, que pode dar uma rentabilidade segura, sem algumas das incertezas causadas pela pandemia. A pessoa não considera que a aplicação financeira em um imóvel seja um investimento de alto risco.”
“Há reduzida volatilidade no preço de revenda e pouca possibilidade de perdas”, acrescenta. “O imóvel também pode se valorizar no futuro. Representa, também, uma forma de se financiar aproveitando a oportunidade de uma taxa de juros baixa. É uma oportunidade de se financiar com juros baixos e, muitas vezes, fugir de um aluguel, investindo na formação de um patrimônio futuro.”
Pascalicchio lembra que o setor da construção civil, “principalmente a partir do ano passado”, recebeu oferta de financiamento imobiliário com juros baixos. “Não foram recursos com origem apenas no FGTS. Vieram recursos, principalmente, do sistema brasileiro de poupança e empréstimo e também das operações de crédito do sistema financeiro para a construção. As pessoas, então, aproveitam esta oportunidade para adquirir imóveis.”
“A demanda ainda segue em alta se valendo desta oportunidade. Raras foram as vezes, como agora, que tivemos uma combinação de juros baixos para o financiamento com uma demanda aquecida por imóveis”, avalia.
“Este processo está acelerando os lançamentos imobiliários, causando, inclusive, uma alta nos preços dos insumos do setor. O financiamento com juros baixos ainda compensa o comportamento destes preços. Também beneficia a ocupação de mão de obra pelo setor, gerando uma alta nos empregos. O setor é tradicionalmente responsável por uma participação próxima a 6% do PIB.”
Decisões
A assistente social e advogada Raineldes Agda Alves de Melo, de 50 anos, já vinha amadurecendo a ideia de mudar de casa desde 2019. Ela morava com a filha em um apartamento alugado no bairro da Saúde, na zona sul de São Paulo.
“Tinha 100 metros quadrados e toda a estrutura do prédio, com piscina, salão de festas. Era uma proposta dessas comuns em prédios de uns tempos para cá: uma boa área comum, mas os quartos eram pequenos”, comenta.
“A pandemia me ajudou a construir uma perspectiva um pouco diferente, a procurar algo que tivesse mais estrutura na moradia em si”, compara ela.
Acabou escolhendo um imóvel no bairro da Bela Vista, na região central da cidade. “Passamos a privilegiar o conforto do morar, a localização, o que dispomos no entorno. Acabamos adquirindo um imóvel de 170 metros quadrados, dos anos 1970, com várias coisas que acabamos resgatando. É muito ventilado e tem uma história. Não tem varanda, mas tem muitos janelões”, descreve.
“A pandemia influenciou na decisão. Ficar mais em casa possibilitou ter mais diálogo [com a filha, sobre os gostos em comum] e também se abrir para outras perspectivas. Ao mesmo tempo, comecei a pensar que não usava mais as áreas comuns [do prédio anterior], pois estavam fechadas e não sabíamos mais quando iam voltar a abrir”, conta.
Ela também credita ao momento sanitário a decisão, para ela fundamental: descartou qualquer imóvel que fosse em prédios muito altos ou condomínios com muitas torres. “Queria estabelecer uma conexão de amizade e compartilhamento com vizinhos, então foi bom esse apartamento mais antigo, com pessoas que moram há muito tempo, têm uma convivência de longa data.”
Outro que se encontrou na pandemia foi o cineasta Daniel Lieff, de 48 anos. Paulistano, ele morava no Rio há 18 anos. E, em pleno começo da pandemia, estava justamente em São Paulo, vivendo em um apartamento locado pelo Airbnb, realizando um trabalho de filmagem.
E a covid proporcionou que ele redescobrisse sua própria São Paulo. “Depois de tanto tempo, gostei de estar em São Paulo de novo, uma cidade com muitos serviços e muita oferta de casas”, recorda. “Sempre aluguei, mas [por causa da pandemia] passei a dar mais valor para ter a própria casa, fazer do meu jeito, e ter uma base fixa.”
Lieff acabou comprando um apartamento de 120 metros quadrados, também no bairro da Bela Vista. “O prédio me atraiu muito. É pequeno, só com três andares, sem elevador, sem portaria. Um prédio mais europeu, no sentido de construção antiga, de 1940. Gostei da vibe do apartamento”, detalha.
“A pandemia me fez olhar com outros olhos. Eu que nunca imaginava comprar uma casa, vi o valor [do imóvel próprio]”, afirma. “Um apartamento que tem a minha cara.”
“De certa forma, na pandemia as pessoas começaram a procurar casas e apartamentos um pouco maiores, começaram a valorizar suas casas. Isso foi um fenômeno. Até para comportar home office”, comenta o cineasta. “As pessoas também passaram a reparar mais nas suas casas, tanto qualidades quanto defeitos. Ficamos muito mais tempo dentro de casa e então acabamos aproveitando as pequenas coisas. E começamos a valorizar o espaço.”
“Isso aconteceu muito forte na pandemia e eu fui um felizardo”, resume ele.
Lazer no campo
Mas também há casos de quem decidiu comprar um imóvel apenas para os fins de semana — ou os períodos de quarentena. Moradora da região da Vila Mariana, a advogada Mariana Rodrigues de Carvalho Mello, de 40 anos, sentiu a necessidade de ter uma chácara, tanto para espairecer quanto para que as filhas, de 7 e 5 anos, tivessem contato com a natureza.
Acabaram comprando em Mairinque, na região metropolitana de São Paulo. “Já fazia tempo que pensávamos nisso. Para que as meninas pudessem se conectar mais com a natureza, pisar no chão e brincar com a terra, olhar para o céu e ver passarinho, plantar, colher, enfim, aprender que as coisas não vêm do supermercado”, conta.
“Veio a pandemia e fiquei em casa com elas. Aquilo começou a virar aquele inferno, duas crianças pequenas sem espaço.”
Então a advogada reparou que uma colega da filha, nas aulas online, tinha um fundo bonito, que indicava que estava em algum local verde e bucólico. “Falei com a mãe e ela me contou que haviam comprado uma chácara e estavam lá”, narra.
O primeiro movimento foi um test-drive: alugaram uma chácara para conhecer o lugar e ver se aquela vida era mesmo tão legal assim. Foi questão de dias e ela e o marido já estavam em imobiliárias, buscando um imóvel semelhante à venda.
Deu certo. Desde então, a vida da família é urbana de segunda a sexta — e rural aos fins de semana.