As homenagens ao grande mestre Zeno Veloso seguem, com o intuito de propagar ainda mais as suas ideias e perpetuar o seu legado, como grande jurista que foi. Entre essas louváveis iniciativas, fiquei muito honrado com o convite formulado pela Diretoria da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), na pessoa da sua presidente, a professora Viviane Girardi, para uma edição especial da sua prestigiada Revista do Advogado, que prestará mais uma homenagem ao jurista, coordenada pelos professores Giselda Hironaka e José Fernando Simão.
 
O meu texto – escrito em coautoria com o professor Anderson Schreiber – trata de algumas das contribuições do homenageado para o tema da invalidade do negócio jurídico, assunto tratado em um de seus principais livros, que muito me influenciou, com o título Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, publicado pela Editora Del Rey, sendo a sua segunda e última edição do ano de 2005, com comentários sobre o Código Civil de 2002.
 
Neste meu artigo, procurarei discorrer sobre apenas um dos assuntos que constam daquele nosso texto, qual seja, os efeitos da sentença da ação anulatória do negócio jurídico, em se tratando de nulidade relativa ou de anulabilidade, o que repercute diretamente para asobre a ação de anulação do casamento, cujas hipóteses estão no art. 1.550 do Código Civil. Zeno Veloso, na minha leitura, foi um dos principais responsáveis pela mudança de pensamento a respeito desse tema, por ter dado um giro de cento e oitenta graus quanto à sua interpretação.
 
O debate gravita em torno da eficácia ex nunc (não retroativa) ou ex tunc (retroativa) da decisão que acolhe o pleito de anulação do negócio jurídico, o que alcança o casamento. No vigente Código Civil, a corrente que sustenta a eficácia não retroativa está fundada na primeira parte do art. 177, segundo o qual “a anulabilidade não tem efeito antes de julgada por sentença”. A vertente que defende os efeitos retroativos, por sua vez, baseia-se no art. 182, in verbis: “anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”. Ao contrário do que ocorre com a nulidade absoluta do casamento, não há regra específica relativa à sentença da ação baseada na nulidade relativa ou anulabilidade. Como é notório, é a redação do art. 1.563 do Código Civil: “a sentença que decretar a nulidade do casamento retroagirá à data da sua celebração, sem prejudicar a aquisição de direitos, a título oneroso, por terceiros de boa-fé, nem a resultante de sentença transitada em julgado”. Porém, segundo o entendimento que prevalece, essa última regra somente se aplica à nulidade absoluta do casamento.
 
O homenageado sempre esteve filiado à corrente que defende a eficácia ex tunc da sentença anulatória e, sobre a corrente contrária, ponderava: “trata-se, sem dúvida, de entendimento equivocado, que decorre, talvez, da leitura distorcida do art. 177, primeira parte (…), que corresponde ao art. 152, primeira parte, do Código Civil de 1916” (VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2ª Edição, 2005. p. 331). Sobre este tema em particular, arrematava o jurista:
 

“O que o artigo 177, primeira parte, enuncia é que o negócio anulável ingressa no mundo jurídico produzindo os respectivos efeitos e depende de uma ação judicial, da sentença, para ser decretada a sua anulação. Os efeitos do negócio anulável são precários, provisórios. Advindo a sentença anulatória, os efeitos que vinham produzindo o negócio inquinado são desfeitos. Nada resta, nada sobra, nada fica, pois a desconstituição é retroativa, vai à base, ao começo, ao nascimento do negócio defeituoso e carente, o que, enfática e inequivocamente, afirma o artigo 182, como já dizia, no Código velho, no artigo 158. Quanto a isso não há mudança alguma, em nosso entendimento. O artigo 177, primeira parte, deve ser visto e recebido diante do sistema e interpretado conjuntamente com o artigo 182, que transcrevemos acima” (VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2ª Edição, 2005. p. 331-332).

 
Desse modo, como lecionava o mestre do Pará, seria plausível defender que a sentença anulatória produz efeitos retroativos parciais, eis que se deve buscar o retorno à situação primitiva, anterior à celebração do negócio anulado, se isso for possível. Caso não seja viável esse retorno, a parte prejudicada pela anulação do negócio jurídico poderá pleitear a indenização correspondente. Cite-se, a propósito, justamente o caso de anulação de um casamento, em que as partes voltam a ser solteiras. Percebe-se claramente a presença de efeitos retroativos nessa situação concreta. Na minha percepção, a obra de Zeno Veloso foi determinante para intensificar essa discussão, fazendo com que uma corrente então considerada minoritária ganhasse espaço e passasse a ser a corrente dominante.
 
Tal posicionamento restou acolhido em obra coletiva escrita com Anderson Schreiber, a comprovar a efetiva influência exercida pelo pensamento de Zeno Veloso sobre os nossos trabalhos. Ao comentar o artigo 182 do Código Civil, o meu coautor afirma: “a rigor, o presente dispositivo infirma a sempre repetida lição segundo a qual a nulidade produziria efeitos ex tunc, enquanto a anulabilidade se daria ex nunc. Ao referir-se ao negócio 'anulado', o artigo atribui o efeito usualmente reconhecido pela doutrina ao negócio nulo: 'Restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam'. Segundo a letra do artigo, portanto, mesmo a anulação do negócio produziria efeitos retroativos, desfazendo-se todos os efeitos operados desde a celebração” (SCHREIBER, Anderson. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 127).
 
Ainda a tal propósito, quando da VI Jornada de Direito Civil – evento realizado pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em 2013 -, foi feita proposta de enunciado doutrinário no sentido de ser a corrente liderada por Zeno Veloso a majoritária. De acordo com o exato teor da proposição: “os efeitos da anulabilidade do negócio jurídico, excetuadas situações particulares como as obrigações de trato sucessivo, relações trabalhistas e em matéria societária, são idênticos aos da nulidade e ocorrem de forma ex tunc. Anulado o negócio, os efeitos se projetam para o futuro e também de forma retroativa para o passado”.
 
Nas suas justificativas, o autor da proposta, Juiz de Direito e Professor da Universidade Federal do Espírito Santo Augusto Passamani Bufulin, ressaltou: “no Brasil, apesar de haver uma corrente que defende a eficácia ex nunc da ação anulatória, como Maria Helena Diniz, Carlos Roberto Gonçalves e Arnaldo Rizzardo, a corrente majoritária, defendida por Humberto Theodoro Júnior, Zeno Veloso, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Paulo Nader, Renan Lotufo, Flávio Tartuce, Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald, Leonardo Mattietto, Orlando Gomes e Silvio Rodrigues, afirma que os efeitos da anulabilidade e da nulidade são idênticos no plano da eficácia e operam de forma ex nunc, para o futuro, e ex tunc, retroativamente ao passado, pois o vício encontra-se presente desde a formação do negócio. Esse é o entendimento correto a ser dado ao art. 182 do CC”. Como se pode perceber, a sugestão de enunciado doutrinário colocava a corrente dos efeitos ex tunc como majoritária. De toda sorte, a não aprovação do enunciado doutrinário em questão demonstrou que tal tema ainda mereceria ser melhor debatido no ambiente jurídico brasileiro.
 
Todavia, ao final do ano de 2016, surgiu importante decisão monocrática sobre a matéria no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, proferida pela Ministra Maria Isabel Gallotti, em que se afirmou o seguinte:
 

“Na doutrina, não se desconhece da divergência quanto à eficácia da ação anulatória. Segundo defende a doutrina clássica, os efeitos da decisão judicial na ação anulatória não são retro-operantes, possuindo efeitos apenas para o futuro (Maria Helena Diniz, Carlos Roberto Gonçalves, Arnaldo Rizzardo, Caio Mário, e Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Nery), de outro giro, a corrente majoritária defende que os efeitos da anulabilidade, no plano da eficácia, são idênticos ao da nulidade, e operam efeitos tanto para o futuro como para o passado, uma vez que algo que é ilegal não pode produzir efeitos (Humberto Theodoro Júnior, Zeno Veloso, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Paulo Nader, Renan Lotufo, Flávio Tartuce, Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald, Orlando Gomes e Silvio Rodrigues). Esse é o entendimento que se infere do art. 182 do CC/2002. (…). Como se observa, o art. 182 do CC/2002 reza que os efeitos do negócio jurídico inválido devem cessar a partir da sua anulação, se anuláveis, ou não devem produzir efeitos, se nulos. Ressalte-se que é comando imperativo da parte final do art. 182 do CC/2002, a restituição das partes ao estado anterior, ou se impossível a restituição, que haja indenização com o equivalente, como consequência dos efeitos retro-operantes da nulidade ou anulabilidade de qualquer negócio jurídico. Isso porque a restituição das partes ao estado anterior é inerente à eficácia restituitória contida na decisão judicial, sob pena de flagrante injustiça, mesmo em se tratando de anulabilidade de negócio jurídico” (STJ, Decisão monocrática no Recurso Especial 1.420.839/MG, Min. Maria Isabel Gallotti, julgada em 07.10.2016).

 
A referida decisão reforça, sem dúvida, a corrente doutrinária capitaneada por Zeno Veloso, no sentido de que a anulabilidade reconhecida por sentença também produz efeitos ex tunc. Ao que tudo indica, essa é a posição majoritária no momento, tendo ocorrido o citado giro de cento e oitenta graus na civilística nacional, a demonstrar mais uma imprescindível contribuição do Mestre do Pará para o Direito Privado Brasileiro.